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domingo, 6 de abril de 2014

Esaú e Jacó - Machado de Assis [parte 23]

Apesar de tudo, não acabava de entender a situação, e resolveu acabar com ela ou consigo. Todo esse dia foi inquieto e complicado. Flora pensou em ir ao teatro para que os gêmeos não a achassem à noite. Iria cedo, antes da hora da visita. A mãe mandou comprar o camarote, e o pai aprovou a diversão, quando veio jantar, mas a filha acabou com dor de cabeça, e o camarote ficou perdido.
        —Vou mandá-lo aos jovens Santos, insinuou Batista.
D. Cláudia opôs-se e guardou o camarote. A razão era de mãe; posto lhe tardasse a escolha e a casamento, ela queria vê-los ali consigo, falando, rindo, debatendo que fosse, com os olhos pendentes da filha. Batista não entendeu logo nem depois: mas para não desagradar à esposa, deixou de obsequiar os rapazes. Uma ocasião tão boa! Não era muito para eles que possuíam com que despender, e despendiam. o obséquio estava na lembranças e também na cartinha que lhes escreveria, mandando o camarote. Chegou a redigi-la de cabeça, apesar de já inútil. A mulher, ao vê-lo calado e sério, cuidou que fosse zanga e quis fazer as pazes; o marido arredou-a brandamente com a mão. Redigia a cartinha, punha no texto um gracejo sisudo, dobrava o papel e lançava-lhe este sobrescrito gêmeo: "Aos jovens apóstolos Pedro e Paulo". O trabalho intelectual tornou mais dura a oposição de D. Cláudia. Uma cartinha tão bonita!


XCIV
Gestos opostos
 
Como pode um só tecto cobrir tão diversos pensamentos? Assim é também este céu claro ou brusco, — outro tecto vastíssimo que os cobre com o mesmo zelo da galinha aos seus pintos... Nem esqueça o próprio crânio do homem, que os cobre igualmente, não só diversos, senão opostos.
Flora, no quarto, não cuidava então de bilhetes nem camarotes; também não acudia à dor de cabeça, que não tinha. Se falou nela foi por ser uma razão próxima e aceitável, breve ou longa, conforme a necessidade da ocasião. Não suponhas que está rezando, embora tenha ali um oratório e um crucifixo. Não viria pedir a Jesus que lhe livrasse a alma daquela inclinação desencontrada. Posta à beira da cama, os olhos no chão, pensava naturalmente em alguma cousa grave, se não era nada, que também agarra os olhos e o pensamento de uma pessoa. Mordeu os beiços sem raiva; meteu a cabeça entre as mãos, como se quisesse concertar os cabelos, mas os cabelos estavam e ficavam como dantes.
Quando se levantou era totalmente noite, e acendeu uma vela. Não queria gás. Queria uma claridade branda que desse pouca vida ao quarto e aos seus móveis, que deixasse algumas partes na meia escuridade. O espelho, se fosse a ele, não lhe repetiria a beleza de todos os dias, com a vela posta em cima de uma papeleira antiga, a distancia. Mostrar-lhe-ia a nota de palidez e de melancolia, é verdade, mas a nossa amiguinha não se sabia pálida, sem se sentia melancólica. Tinha na tristeza desvairada daquela ocasião uma pontinha de abatimento.
Como tudo isso se combinava, não sei, nem ela mesma. Ao contrário, Flora parecia, às vezes, tomada de um espanto, outras de uma inquietação vaga, e, se buscava o repouso de uma cadeira de balanço, era para o deixar logo. Ouviu bater oito horas. Daí a pouco, entrariam provavelmente Pedro e Paulo. Teve lembrança de ir dizer à mãe que a não mandasse chamar; estava de cama. Esta ideia não durou o que me custa escrevê-la, e aliás já lá vai na outra linha. Recuou a tempo.
        —E um despropósito, disse consigo; basta não aparecer. Mamãe dirá que estou adoentada, tanto que perdemos o teatro, e, se vier aqui, digo-lhe que não posso aparecer...
As últimas palavras saíram-lhe de viva voz, para maior firmeza da resolução. Projetou reclinar-se já na cama; depois achou melhor fazê-lo quando ouvisse o passo da mãe no corredor. Todas essas alternativas podiam vir de si mesmas, entretanto, não é impossível que fosse também um modo de sacudir quaisquer lembranças aborrecíveis. A moça temia ir atrás delas.
 
 XCV
O Terceiro
 
Temendo ir atrás delas, que havia de fazer Flora? Abriu uma das janelas do quarto, que dava para a rua, encostou-se à grade e enfiou os olhos para baixo e para cima. Viu a noite sem estrelas, pouca gente que passava, calada ou conversando, algumas salas abertas, com luzes, uma com piano. Não viu certa figura de homem na calçada oposta, parada, olhando para a casa de Batista. Nem a viu, nem lhe importaria saber quem fosse. A figura é que tão depressa a viu como estremeceu e não despegou mais os olhos dela, nem os pés do chão.
Lembras-te daquela veranista de Petrópolis que atribuiu um terceiro namorado à nossa amiguinha? "Um dos três", disse ela. Pois aqui está o terceiro namorado, e pode ser que ainda apareça outro. Este mundo é dos namorados. Tudo se pode dispensar nele; dia virá em que se dispensem até os governos, a anarquia se organizará de si mesma, como nos primeiros dias do paraíso. Quanto à comida, virá de Boston ou de Nova Iorque um processo para que a gente se nutra com a simples respiração do ar. Os namorados é que serão perpétuos.
Aquele era oficial de secretaria. Geralmente os empregados de secretaria casam cedo. Gouveia era solteiro, andava às moças. Um domingo, à missa, reparou na filha do ex-presidente, e saiu da igreja tão apaixonado que não quis outra promoção. Tinha gostado de muitas acompanhou algumas, esta foi a primeira que o feriu deveras. Pensava nela dia e noite. A Rua de S. Clemente era o caminho que o levava e trazia da repartição. Se a via, olhava muito para ela, detinha-se a distancia, à porta de uma casa, ou então fingia acompanhar com os olhos um carro que passava, e tirava-os do carro para a moça.
Quando amanuense; fizera versos; nomeado oficial, perdeu o costume, mas um dos efeitos da paixão foi restituir-lhe. Consigo, em casa da mãe, gastava papel e tinta a metrificar as esperanças. Os versos escorriam da pena, a rima com eles, e as estrofes vinham seguindo direitas e alinhadas, como companhias de batalhão — o título seria o coronel, a epígrafe a música, uma vez que regulava a marcha dos pensamentos. Bastaria essa força à conquista? Gouveia imprimiu alguns em jornais, com esta dedicatória: A alguém. Nem assim a praça se rendia.
Uma vez deu-lhe na cabeça mandar uma declaração de amor. Paixão concebe despropósitos. Escreveu duas cartas, sem o mesmo estilo antes contrário. A primeira era de poeta — dava-lhe tu, como nos versos, adjetivava muito, chamava-lhe deusa por alusão ao nome de Flora, e citava Musset e Casimiro de Abreu. A segunda carta foi um desforço do oficial sobre o amanuense. Saiu-lhe ao estilo das informações e dos ofícios, grave, respeitoso, com Excelências. Comparando as duas cartas, não acabou de escolher nenhuma. Não foi só o texto diverso e contrário, foi principalmente a falta de autorização que o levou a rasgar as cartas. Flora não o conhecia; quando menos, fugia de o conhecer. Os olhos dela, se encontravam os dele, retiravam-se logo indiferentes. Uma só vez cuidou que traziam a intenção de perdoar. Que esse breve raio de luz lhe desabotoasse as flores da esperança (começo a falar com a primeira carta) era possível e até certo; tão certo que lhe fez perder o ponto na repartição. Felizmente, era ótimo empregado; o diretor ampliou o quarto de hora de tolerância, e atendeu à dor de cabeça, causa de triste insônia.
        —Dormi sobre a madrugada, acabou o oficial.
        —Assine.
Senão quando, morre-lhe o padrinho ao Gouveia, e em testamento deixou ao afilhado três contos de réis. Qualquer acharia nisso um benefício, Gouveia achou dous — o legado e a ocasião de travar relações com o pai de Flora. Correu a pedir-lhe que aceitasse a procuração de legatário, ajustando logo os honorários e as despesas. Com pouco, foi procurá-lo à casa, e para que o advogado desse a notícia do constituinte à família, empregou muitos ditos subtis e graciosos, contou anedotas do padrinho, expôs conceitos filosóficos e um programa de marido. Descreveu também a situação administrativa, a promoção iminente, os louvores recebidos, comissões e gratificações, tudo o — que o distinguia de outros companheiros. De resto, ninguém na repartição lhe queria mal. Aqueles mesmos que se creram prejudicados, acabavam confessam do que era justa a preferência dada ao Gouveia. Não seria tudo exato; ele o cria assim, ao menos, e, se não cria tudo, não desmentiu nada. Perdeu tempo e trabalho. Flora não soube da conversação.
Nem soube da conversação, nem deu agora pelo vulto, como lá disse. Também disse que a noite era escura. Acrescento que começou a pingar fino e a ventar fresco. Gouveia trazia guarda-chuva e ia a abri-lo, mas recuou. O que se passou na alma dele foi uma luta igual à dos dous textos da carta. O oficial queria abrigar-se da chuva, o amanuense queria apanhá-la, isto é, o poeta renascia contra as intempéries, sem medo ao mal, prestes a morrer por sua dama, como nos tempos da cavalaria. Guarda-chuva era ridículo; poupar-se à constipação desmentia a adoração. Tal foi a luta e o desfecho; venceu o amanuense, enquanto a chuva ia pingando grosso, e outra gente passava abrigada e depressa. Flora entrou e fechou a janela. O amanuense esperou ainda algum tempo, até que o oficial abriu o guarda-chuva e fez como os outros. Em casa achou a triste consolação da mãe.

XCVI
Retraimento
 
Aquela noite acabou sem incidente. Os gêmeos vieram, Flora não apareceu, e no dia seguinte duas cartinhas perguntavam a D. Cláudia como passara a filha. A mãe respondeu que bem. Nem por isso Flora os recebeu com a alegria do costume. Tinha alguma cousa que a fazia falar pouco. Pediram-lhe música, tocou; foi bom, porque era um meio de se meter consigo. Não respondeu aos apertos de mão .Como eles supunham que fazia até há pouco. Assim foi essa noite, assim foram as outras. Ora um, ora outro chegava primeiro, imaginando que a presença do rival é que tolhia a moça; mas a precedência não valia nada.

XCVII
Um cristo particular
 
Tudo isso lhe custava tanto, que ela acabou pedindo ao seu Cristo um lugar de governador para o pai, — ou qualquer comissão fora daqui. Jesus Cristo não distribui os governos deste mundo. O povo é que os entrega a quem merece, por meio de cédulas fechadas, metidas dentro de uma urna de madeira, contadas, abertas, lidas, somadas e multiplicadas. A comissão podia vir, isso sim; a questão era saber se Jesus Cristo acudirá a todos os que lhe pedem a mesma cousa. Os comissários seriam infinitamente mais que as comissões. Esta objeção foi logo expelida do espírito de Flora, porque ela pedia ao seu Cristo, um de marfim velho, deixa da avó, um Cristo que nunca lhe negou nada, e a quem as outras pessoas não vinham importunar com súplicas. A própria mãe tinha o seu particular, confidente de ambições, consolo de desenganos; não recorria ao da filha. Tal era a fé ingênua da moça.
Certamente, já lhe havia pedido que a livrasse daquela complicação de sentimentos, que não acabavam de ceder um ao outro, daquela hesitação cansativa, daquele empuxar para ambos os lados. Não foi ouvida. A causa seria talvez por não haver dado ao pedido a forma clara que aqui lhe ponho, com escândalo do leitor. Efetivamente, não era fácil pedir assim por palavras seguidas, faladas ou só pensadas; Flora não formulou a súplica. Pôs os olhos na imagem e esqueceu-se de si, para que a imagem lesse dentro dela o seu desejo. Era demais; requerer o favor do céu e obrigá-lo a adivinhar o que era... Assim cuidou Flora, e resolveu emendar a mão. Não chegou lá; não ousou dizer a Jesus o que não dizia a si mesma. Pensava nos dous, sem confessar a nenhum. Sentia a contradição, sem ousar encará-la por muito tempo.
 
XCVIII
O Médico Aires
 
Um dia pareceu à mãe que a filha andava nervosa. Interrogou-a e apenas descobriu que Flora padecia de vertigens e esquecimentos. Foi justamente um dia em que Aires lá apareceu de visita, com recados de Natividade. A mãe falou-lhe primeiro e confiou-lhe os seus sustos. Pediu-lhe que a interrogasse também. Aires fez de médico, e, quando a moça apareceu e a mãe os deixou na sala, cuidou de a interrogar cautelosamente.
Vão propósito, porque ela mesma iniciou a conversação, queixando-se de dor de cabeça. Aires observou que dor de cabeça era moléstia de moça bonita, e, tendo confessado que este dito era banal, descobriu-lhe o motivo. Não queria perder a ocasião de lhe dizer o que toda a gente sabia e dizia, não só aqui, como em Petrópolis.
        —Por que não vai a Petrópolis? concluiu.
        —Espero fazer outra viagem mais longa. muito longa...
        —Para o outro mundo, aposto?
        —Acertou.
        —Já tem bilhete de passagem?
        —Comprarei no dia do embarque.
        —Talvez não ache. Há grande concorrência para aquelas paragens; melhor é comprar antes, e, se quer, eu me encarrego disso; comprarei outro para mim, e iremos juntos. A travessia, quando não há conhecidos, deve ser fastidiosa; às vezes, os próprios conhecidos aborrecem, como sucede neste mundo. As saudades da vida é que são agradáveis. A gente de bordo é vulgar, mas o comandante impõe confiança. Não abre a boca, dá as suas ordens por gestos, e não consta que haja naufragado.
        —O senhor está caçoando comigo; eu creio até que estou com febre.
        —Deixe ver.
Flora estendeu-lhe o pulso; ele, com ar profundo:
        —Está; febre de quarenta e sete graus, a mão está ardendo, mas isto mesmo prova que não é nada, porque aquelas viagens fazem-se com as mãos frias. Há de ser constipação, fale a sua mãe.
        —Mamãe não cura.
        —Pode curar, há remédios caseiros, em todo caso, peça-lhe, e ela pode mandar chamar um médico.
        —Médico dá tisanas, e eu no gosto de tisanas.
        —Nem eu, mas tolero-as. Por que não experimenta a homeopatia, que não tem gosto, como a alopatia?
        —Qual é a que lhe parece melhor?
        —A melhor? Só Deus é grande.
Flora sorriu, de um sorriso pálido, e o conselheiro percebeu algo que não era tristeza de passagem ou de criança. Novamente lhe falou de Petrópolis, mas não insistiu. Petrópolis era a agravação do momento atual.
        —Petrópolis tem o mal das chuvas, continuou. Eu, se fosse a senhora, saía desta casa e desta rua; vá para outro bairro, casa amiga, com sua mãe ou sem ela...


Um comentário:

Unknown disse...

Vinicius Peres 8º ano 3

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