Para onde? perguntou Flora
ansiosa.
E ficou a olhar, esperando. Não
tinha casa amiga, ou não se lembrava, e queria que ele mesmo escolhesse alguma,
onde quer que fosse, e quanto mais longe, melhor. Foi o que ele leu nos olhos
parados. É ler muito, mas os bons diplomatas guardam o talento de saber tudo o
que lhes diz um rosto calado, e até o contrário. Aires fora diplomata
excelente, apesar da aventura de Caracas, se não é que essa mesma lhe aguçou a
vocação de descobrir e encobrir. Toda a diplomacia estar nestes dous verbos
parentes.
XCIX
A título de ares novos
A título de ares novos
—Vou arranjar-lhe uma casa boa, disse ele, à despedida.
Desde que estava em Petrópolis,
Aires não ia jantar a Andaraí, com a irmã, às quintas-feiras, segundo ajustara
e consta do capítulo XXXII. Agora foi lá, e cinco dias depois Flora
transferia-se para a casa dela, a título de ares novos. D. Rita não consentiu
que D. Cláudia lhe levasse a filha, ela mesma a foi buscar a S. Clemente, e
Aires acompanhou as três.
A mocidade de Fiora na casa de D.
Rita foi como uma rosa nascida ao pé do paredão velho. O paredão remoçou. A
simples flor, ainda que pálida, alegrou o barro gretado e as pedras despidas.
D. Rita vivia encantada; Flora pagava o agasalho da dona da casa com tanta
ingenuidade e graça, que esta acabou por lhe dizer que a roubaria à mãe e ao
pai, e foi ainda ocasião de riso para as duas.
Você me deu um lindo presente com
esta moça, escrevia D. Rita ao irmão; foi uma alma nova, e veio em boa ocasião,
porque a minha anda já caduca.
É muito docilzinha, conversa, toca e desenha que
faz gosto, tem aqui tirado riscos de várias cousas, e eu saio com ela para lhe
mostrar vistas apreciáveis. As vezes, apresenta uma cara triste, olha
vagamente, e suspira; mas eu pergunto-lhe se são saudades de S. Clemente, ela
sorri e faz um gesto de indiferença Não Ihe falo dos nervos, para a afligir,
mas creio que vai melhor...
Flora também escreveu ao
Conselheiro Aires, e as duas cartas chegaram à mesma hora a Petrópolis. A de
Flora era um agradecimento grande e cordial, mal entremeado de alguma palavra
saudosa; confirmava assim a carta da outra, posto não a houvesse lido. Aires
comparou-as, lendo duas vezes a da moça para ver se ela escondia mais do que
transparecia do papel. Em suma, confiava no remédio.
"Não os vendo,
esquece-os", pensou ele; "e na vizinhança houver alguém que pensa em
gostar dela, é possível que acabe casando".
Respondeu a ambas, na mesma
noite, dizendo-lhes que na quinta-feira iria almoçar com elas. A D. Cláudia
escreveu mandando-lhe a carta da irmã, e foi passar a noite em casa de
Natividade, a quem deu a ler as cinco cartas. Natividade aprovou tudo. Notava
só que os filhos não lhe escreviam, e deviam estar desesperados.
—A Santa Casa cura, e a Biblioteca Nacional também, retorquiu Aires.
Na quinta-feira, Aires desceu e
foi almoçar a Andaraí. Achou-as como as tinha lido nas cartas. Interrogou-as
separadamente para ouvir por boca as confissões do papel; eram as mesmas. D.
Rita parecia ainda mais encantada. Talvez a causa recente fosse a confidência
que fez a moça, na véspera. Como falassem de cabelos, D. Rita referiu o que
também consta do cap. XXXII, isto é, que cortara os seus para os meter no
caixão do marido, quando o levaram a enterrar. Flora não a deixou acabar;
pegou-lhe das mãos e apertou-as muito.
—Nenhuma outra viúva faria isto, disse ela.
Aqui foi D. Rita que lhe pegou
nas mãos, pô-las sobre os seus ombros, e concluiu o gesto por um abraço. Todas
as pessoas louvaram-lhe a abnegação do ato; esta era a primeira que a achou
única. E daí outro abraço longo, mais longo...
C
Duas cabeças
Duas cabeças
Tão longo foi o abraço que tomou
o resto ao capítulo. Este começa sem ele nem outro. O mesmo aperto de mão de
Aires e Flora, se foi demorado, também acabou. O almoço fez gastar algum tempo
mais que de costume, porque Aires, além de conversador emérito, não se fartava
de ouvir as duas, principalmente a moça. Achava-lhe um toque de languidez,
abatimento ou cousa próxima, que não encontro no meu vocabulário.
Flora mostrou-lhe os desenhos que
fizera, paisagens, figuras, um pedaço da estrada da Tijuca, um chafariz antigo,
um Princípio de casa. Era uma dessas casas, que alguém começou muitos anos
antes, e ninguém acabou, ficando só duas ou três paredes, ruína sem história.
Havia ainda outros desenhos, uma revoada de pássaros, um vaso à janela. Aires
ia folheando, cheio de curiosidade e paciência — a intenção da obra supria a
perfeição, e a fidelidade devia ser aproximada. Enfim, a moça atou os cordões à
pasta. Aires, parecendo-lhe que ficara um desenho último e escondido, pediu que
lho mostrasse.
É um esboço, não vale a pena.
—Tudo vale a pena; quero acompanhar as tentativas da artista; deixe ver.
—Não vale a pena...
Aires insistiu; ela não pôde
recusar mais tempo, abriu a pasta, e tirou um pedaço de papel grosso em que
estavam desenhadas duas cabeças juntas e iguais. Não teriam a perfeição
desejada por ela; não obstante, dispensavam os nomes. Aires considerou a obra, durante
alguns minutos, e duas ou três vezes levantou os olhos para a autora. Flora já
os esperava, interrogativa; queria ouvir o louvor ou a crítica, mas não ouviu
nada. Aires acabou de observar as duas cabeças, e pousou o desenho entre os
papéis.
—Não lhe dizia que era um esboço? perguntou Flora, a ver se lhe arrancava uma
palavra.
Mas o ex-ministro preferiu não
dizer nada. Em vez de achar quase extinta a influência dos gêmeos, vinha dar
com ela feita consolação da ausência, tão viva que bastava a memória, sem
presença dos modelos. As duas cabeças estavam ligadas por um veículo escondido.
Flora, vendo continuar o silêncio de Aires, compreendeu acaso parte do que lhe
passava no espírito. Com um gesto pronto, pegou do desenho e deu-lho. Não lhe
disse nada, menos ainda escreveu qualquer palavra. Qualquer .que fosse, seria
indiscreta. Demais, era o único desenho a que ela não pôs assinatura. Deu-lho
como se fora um penhor de arrependimento. Em seguida, atou novamente as fitas
da pasta, enquanto Aires rasgava calado o desenho e metia os pedaços no bolso.
Flora ficou por um instante parada, boca entreaberta mas logo lhe apertou a
mão, agradecida. Não pôde evitar que lhe caíssem duas pequenas lágrimas, — como
outras tantas fitas que lhe atavam para sempre a pasta do passado.
A imagem não é boa, nem
verdadeira; foi a que acudiu ao conselheiro, andando, ao voltar de Andaraí.
Chegou a escrevê-la no Memorial, depois riscou-a, e escreveu uma reflexão menos
definitiva: "Talvez seja uma lágrima para cada gêmeo".
"Pode acabar com o tempo,
pensou ele indo para a barca de Petrópolis. Não importa; é um caso
embrulhado."
CI
O caso embrulhado
O caso embrulhado
Também os gêmeos achavam o caso
embrulhado. Quando iam a S. Clemente, tinham notícias da moça, sem que lhes
dessem certeza do regresso. O tempo andava; não tardaria que consultassem a
sorte, como dous antigos.
A giro, não contavam as semanas
de interrupção, uma vez que a escolha se não dava, e eles podiam trazer da
consulta o contrário da inclinação definitiva da moça. Reflexão justa, posto
que interessada. Cada um deles não queria mais que prolongar a batalha,
esperando vencê-la. Entretanto, não confiavam um do outro este pensamento
gêmeo, como eles. Ambos se iam sentindo exclusivos, a afeição tinha agora o seu
pudor e necessidade de calar. Já não falavam de Flora.
Nem só de Flora. Crescendo a
oposição, recorriam ao silêncio. Evitavam-se; se podiam, não comiam juntos; se
comiam juntos, diziam pouco ou nada. As vezes, falavam para tirar aos criados
qualquer suspeita, mas não advertiam que falavam mal e forçadamente, e que os
criados iam comentar as palavras e a expressão deles na copa. A satisfação com
que estes comunicavam os seus achados e conclusões é das pousas que adoçam o
serviço doméstico, geralmente rude. Não chegavam, porém, ao ponto de concluir
tudo o que os ia tornando cada vez mais avessos, a ponta de ódio que crescia
com a ausência da mãe. Era mais que Flora, como sabeis; eram as próprias
pessoas inconciliáveis. Um dia houve na copa e na cozinha grande novidade. Pedro,
a pretexto de sentir mais calor que Paulo, mudou de quarto e foi dormir mal em
outro não menos quente que o primeiro.
CII
Visão pede meia sombra
Visão pede meia sombra
Entretanto, a bela moça não os
tirava da mesma alcova sua, por mais que buscasse deveras fugir-lhes. A memória
os trazia pela mão, eles entravam e ficavam. Iam depois embora, ou de si
mesmos, ou empurrados por ela. Quando tornavam, era de surpresa. Um dia. Flora
aproveitou a presença para fazer um desenho igual ao que dera ao conselheiro,
mais perfeito agora, muito mais acabado.
Também cansava. Então saía do
quarto e ia para o piano. Eles iam com ela, sentavam-se aos lados ou ficavam
defronte, em pé, e ouviam com atenção religiosa, ora um noturno, ora uma
tarantela. Flora tocava ao sabor de ambos, sem deliberação; os dedos é que
obedeciam à mecânica da alma. Para os não ver, inclinava a cabeça sobre o
teclado; mas o campo da visão os guardava, se não era a respiração que se fazia
sentir defronte ou dos lados. Tal era a sutileza dos seus sentidos.
Se fechava o piano e descia ao
jardim, sucedia muita vez que os ia achar ali, passeando, e a cumprimentavam
com tão boa sombra, que ela esquecia por instantes a impaciência. Depois, sem
que os mandasse, iam embora. Nos primeiros tempos, Flora tinha medo que a houvessem
abandonado de todo, e chamava-os dentro de si. Ambos tornavam logo, tão dóceis,
que ela acabou de se convencer que a fuga não era fuga, nem eles sentiam
desespero, e não os evocou mais. No jardim era mais rápido o desaparecimento,
talvez pela extrema claridade do lugar. Visão pede meia sombra.
—A senhora sabe se serei feliz?
perguntou.
—Creio que sim; agora, o futuro é que confirmará ou não.
—Esperemos que o futuro chegue, conquanto me pareça muito demorado. Não nego as
qualidades daquele homem, parece bom, e trata-me bem, mas eu não quero casar,
D. Rita.
—Realmente, a idade... Mas nem, ao menos, quer pensar alguns dias?
—Está pensado.
D. Rita ainda esperou um dia. A
resposta negativa, dado que Flora viesse a mudar de opinião, podia ser uma
desgraça para esta. Uso os próprios termos dela, consigo, grande desgraça,
posição esplêndida, sentimento profundo. D. Rita ia aos extremos, diante
daquele rico-homem dos últimos anos do século.
CIV
A Resposta
A Resposta
Não querendo dar a resposta nua e
crua. D. Rita consultou a moça, que lhe respondeu simplesmente:
—Diga que não pretendo casar.
Quando Nóbrega recebeu as poucas
linhas que D. Rita lhe mandou, ficou assombrado. Não contava com recusas. Ao
contrário, era tão certa a aceitação que ele tinha já um programa do noivado.
Imaginava a moça, os olhos tímidos, a boca cerrada, o céu que lhe cobriria a
linda carinha, a delicadeza dele, as palavras que lhe diria entrando em casa.
Tinha já composto uma invocação à Mãe Santíssima, para que os fizesse felizes.
"Dou-lhe carro, dizia consigo, joias, muitas joias, as melhores joias do
mundo..." Nóbrega não fazia ideia exata do mundo; era expressão. "Hei
de dar-lhe tudo, sapatinhos de seda, meias de seda, que eu mesmo lhe
calçarei..." Estremecia de cor, ao calçar-lhe as meias. Beijava-lhe os pés
e os joelhos.
Tinha imaginado que ela, ao ler a
carta, devia ficar tão pasmada e agradecida, que nos primeiros instantes não
pudera responder a D. Rita; mas logo depois as palavras sairiam do coração às
golfadas. "Sim, senhora, queria, aceitava; não pensara em outra
cousa." Escreveria logo ao pai e à mãe para lhes pedir licença; eles
viriam correndo, incrédulos, mas, vendo a carta, ouvindo a filha e D. Rita, não
duvidariam da verdade, e dariam o consentimento. Talvez o pai lho fosse dar em
pessoa. E nada, nada, nada, absolutamente nada, uma simples recusa, uma recusa
atrevida, por que enfim quem era ela, apesar da beleza? uma criatura sem
vintém, modestamente vestida, sem brincos, nunca lhe vira brincos às orelhas,
duas perolazinhas que fossem. E por que é que lhe furaram as orelhas, se não
tinham brincos que lhe dar? Considerou que às mais pobres meninas do mundo
furam as orelhas para os brincos que Ihes possam cair da céu. E vem esta, e
recusa os mais ricos brincos que o céu ia chover sobre ela...
Ao jantar, os amigos da casa
notaram que ele estava preocupado. De noite, ele e o secretário saíram a pé.
Nóbrega buscou em si o gesto mais frio e indiferente que pôde, quase alegre, e
anunciou ao secretário que Flora não queria casar. Não se descreve a admiração
do secretário, em seguida a consternação, finalmente a indignação. Nóbrega
respondia magnânimo:
—Não foi por mal; foi talvez por se julgar abaixo, muito abaixo da fortuna.
Creia que é boa moça. Pode ser também, quem sabe? por ter sido um mau conselho
do coração. Aquela moça é doente.
—Doente?
—Não afirmo; digo que pode ser.
O secretário afirmou.
—Só a doença, disse ele, explicará a ingratidão, porque o ato é de pura
ingratidão.
Aqui tornou a nota da indignação,
nota sincera, como as outras. Nóbrega gostou de ouvi-la; era um compadecimento.
No fim, cumpriu a ideia que trazia ao sair de casa; aumentou-lhe o ordenado.
Podia ser a paga da simpatia; o beneficiado foi mais longe, achou que era o
preço do silêncio, e ninguém soube de nada.
CV
A Realidade
A Realidade
A moléstia, dada por explicação à
recusa do casamento, passou à realidade daí a dias. Flora adoeceu levemente; D.
Rita, para não alarmar os pais, cuidou de a tratar com remédios caseiros;
depois mandou chamar um médico, o seu médico, e a cara que este fez não foi
boa, antes má. D. Rita, que costumava ler a gravidade das suas moléstias no
rosto dele, e sempre as achava gravíssimas, cuidou de avisar os pais da moça.
Os pais vieram logo. Natividade também desceu de Petrópolis, não de vez; em
cima, tinham medo de algum movimento cá embaixo. Veio a visitar a moça, e, a
pedido desta ficou alguns dias. — Só a senhora pode me curar, disse Flora; não
creio nos remédios que me dão. As suas palavras é que são boas. e os seus
carinhos... Mamãe também, e D. Rita, mas não sei, há uma diferença, uma
cousa... Veja; parece-me que até já rio.
—Já, já; ria mais.
Flora sorriu, ainda que daquele
sorriso descorado que aparece na boca do enfermo, quando a moléstia consente,
ou ele força a seriedade própria da dor. Natividade dizia-lhe palavras de
animação; fê-la prometer que iria convalescer em Petrópolis. A enfermidade
começou a ceder. D. Cláudia aceitou a oferta de D. Rita, e lá ficou aposentada.
Natividade ia à noite para Botafogo e voltava de manhã Aires descia de Petrópolis
um dia sim, um dia não.
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