XXXI
Flora
Flora
Tal era aquele casal de políticos. Um
filho, se eles tivessem um filho varão, podia ser a fusão das suas
qualidades opostas, e talvez um homem de Estado. Mas o Céu
negou-lhes essa consolação dinástica.
Tinham uma filha única, que era tudo
o contrário deles. Nem a paixão de D. Cláudia, nem o aspecto
governamental de Batista distinguia a alma ou a figura da jovem
Flora. Quem a conhecesse por esses dias, poderia compará-la a um
vaso quebradiço ou à flor de uma só manhã, e teria matéria para
uma doce elegia. Já então possuía os olhos grandes e claros, menos
sabedores, mas dotados de um mover particular, que não era o
espalhado da mãe, nem o apagado do pai, antes mavioso e pensativo,
tão cheio de graça que faria amável a cara de um avarento. Põe-lhe
o nariz aquilino, rasga-lhe a boca meio risonha, formando tudo um
rosto comprido, alisa-lhe os cabelos ruivos, e aí tens a moça
Flora.
Nasceu
em agosto de 1871. A mãe, que datava por ministérios, nunca negou a
idade da filha:
—Flora
nasceu no ministério Rio Branco, e foi sempre tão fácil de
aprender, que já no ministério Sinimbu sabia ler e escrever
correntemente.
Era retraída e modesta, avessa a
festas públicas, e dificilmente consentiu em aprender a dançar.
Gostava de música, e mais do piano que do canto. Ao piano, entregue
a si mesma, era capaz de não comer um dia inteiro. Há aí o seu
tanto de exagerado, mas a hipérbole é deste mundo, e as orelhas da
gente andam já tão entupidas que só à força de muita retórica
se pode meter por elas um sopro de verdade.
Até aqui nada há que
extraordinariamente distinga esta moça das outras, suas
contemporâneas, desde que a modéstia vai com a graça, e em certa
idade é tão natural o devaneio como a travessura. Flora, aos quinze
anos, dava-lhe para se meter consigo. Aires, que a conheceu por esse
tempo, em casa de Natividade. acreditava que a moça viria a ser uma
inexplicável.
—Verdadeiramente, não digo nada,
emendou Aires; mas, se me permite dizer alguma cousa, direi que esta
moça resume as raras prendas de sua mãe.
—Mas eu não sou inexplicável,
replicou D. Cláudia sorrindo.
—Ao contrário, minha senhora. Tudo
está, porém, na definição que dermos a esta palavra. Talvez não
haja nenhuma certa. Suponhamos uma criatura para quem não exista
perfeição na terra, e julgue que a mais bela alma não passa de um
ponto de vista; se tudo muda com o ponto de vista, a perfeição...
—A perfeição é copas, insinuou
Santos.
Era
um convite ao voltarete. Aires não teve animo de aceitar, tão
inquieta lhe pareceu Flora, com os olhos nele, interrogativos,
curiosos de saber por que é que ela era ou viria a ser inexplicável.
Além disso, preferia a conversação das mulheres. É dele esta
frase do Memorial: "Na mulher, o sexo corrige a banalidade; no
homem, agrava".
Não
foi preciso aceitar nem recusar o convite de Santos; chegaram dous
habituados do jogo, e com eles Batista, que estava na saleta próxima,
Santos foi ao recreio de todas as noites. Um daqueles era o velho
Plácido, doutor em espiritismo; o segundo era um corretor da praça,
chamado Lopes, que amava as cartas pelas cartas, e sentia menos
perder dinheiro que partidas. Lá se foram ao voltarete, enquanto
Aires ficava no salão, a ouvir a um canto as damas, sem que os olhos
de Flora se despegassem dele.
XXXII
O Aposentado
O Aposentado
Já
então este ex-ministro estava aposentado. Regressou ao Rio de
Janeiro, depois de um último olhar às cousas vistas, para aqui
viver o resto dos seus dias. Podia fazê-lo em qualquer cidade, era
homem de todos os climas, mas tinha particular amor à sua terra, e
porventura estava cansado de outras. Não atribuía a estas tantas
calamidades. A febre amarela, por exemplo, à força de a desmentir
lá fora, perdeu-lhe a fé, e cá dentro, quando via publicados
alguns casos, estava já corrompido por aquele credo que atribui
todas as moléstias a uma variedade de nomes. Talvez porque era homem
sadio.
Não
mudara inteiramente; era o mesmo ou quase. Encalveceu mais, é certo,
terá menos carnes, algumas rugas; ao cabo, uma velhice rija de
sessenta anos. Os bigodes continuam a trazer as pontas finas e
agudas. O passo é firme, o gesto grave, com aquele toque de
galanteria, que nunca perdeu. Na botoeira, a mesma flor eterna.
Também a cidade não lhe pareceu que
houvesse mudado muito. Achou algum movimento mais, alguma ópera
menos, cabeças brancas, pessoas defuntas; mas a velha cidade era a
mesma. A própria casa dele no Catete estava bem conservada. Aires
despediu o inquilino, tão polidamente como se recebesse o ministro
dos negócios estrangeiros, e meteu-se nela a si e a um criado, por
mais que a irmã teimasse em levá-lo para, Andaraí.
—De
sangue e de coração, isso é, concordou ele; pode acrescentar que a
melhor de todas e a mais pia. Onde estão aqueles cabelos?... Não
precisa baixar os olhos. Você os cortou para meter no caixão de seu
finado marido. Os que aí estão embranqueceram; mas os que lá
ficaram eram pretos, e mais de uma viúva os teria guardado todos
para as segundas núpcias.
Rita gostou de ouvir aquela
referência. Outrora, não; pouco depois de viúva, tinha vexame de
um ato tão sincero; achava-se quase ridícula. Que valia cortar os
cabelos por haver perdido o melhor dos maridos? Mas, andando o tempo,
entrou a ver que fizera bem, a aprovar que lho dissessem, e, na
intimidade, a lembrá-lo. Agora serviu a alusão para replicar:
—Que
estranhos? Não vou viver com ninguém. Viverei com o Catete, o Largo
do Machado, a Praia de Botafogo e a do Flamengo, não falo das
pessoas que lá moram, mas das ruas, das casas, dos chafarizes e das
lojas. Há lá cousas esquisitas, mas sei eu se venho achar em
Andaraí uma casa de pernas para o ar, por exemplo? Contentemo-nos do
que sabemos. Lá os meus pés andam por si. Há ali cousas
petrificadas e pessoas imortais, como aquele Custódio da
confeitaria, lembra-se?
—Lembra-me, a Confeitaria do
Império.
—Há quarenta anos que a
estabeleceu; era ainda no tempo em que os carros pagavam imposto de
passagem. Pois o diabo está velho, mas não acaba; ainda me há de
enterrar. Parece rapaz; aparece-me lá todas as semanas.
—Não brinque, mana; eu estou
acabado. Sou um velho gamenho, pode ser; mas não é por agradar a
moças, é porque me ficou este jeito... E a propósito, por que não
vai você morar comigo?
—Ah!
é para saber que também eu gosto de estar comigo. Irei lá de vez
em quando, mas já não saio daqui, senão para o cemitério.
Ajustaram visitar um ao outro, Aires
viria jantar às quintas-feiras. D. Rita ainda lhe falou dos casos de
moléstia dele, ao que Aires replicou que não adoecia nunca, mas se
adoecesse viria para Andaraí; o coração dela era o melhor dos
hospitais. Talvez que em todas essas recusas houvesse também a
necessidade de fugir à contradição, porque a irmã sabia inventar
ocasiões de dissidência. Naquele mesmo dia (era ao almoço) ele
achou o café delicioso, mas a irmã disse que era ruim, obrigando-o
a um grande esforço para tornar atrás e achá-lo detestável.
A
princípio, Aires cumpriu a solidão, separou-se da sociedade,
meteu-se em casa, não aparecia a ninguém ou a raros e de longe em
longe. Em verdade estava cansado de homens e de mulheres, de festas e
de vigílias. Fez um programa. Como era dado a letras clássicas
achou no Padre Bernardes esta tradução daquele salmo: "Alonguei-me
fugindo e morei na soedade". Foi a sua divisa. Santos, se lha
dessem, fá-la-ia esculpir, à entrada do salão, para regalo dos
seus numerosos amigos. Aires deixou-a estar em si. Alguma vez gostava
de a recitar calado, parte pelo sentido, parte pela linguagem velha:
"Alonguei-me fugindo e morei na soedade."
Assim
foi a princípio. As quintas-feiras ia jantar com a irmã. As noites
passeava pelas praias, ou pelas ruas do bairro. O mais do tempo era
gasto em ler e reler, compor o Memorial ou rever o composto, para
relembrar as cousas passadas. Estas eram muitas e de feição
diversa, desde a alegria até a melancolia, enterramentos e recepções
diplomáticas, uma braçada de folhas secas, que lhe pareciam verdes
agora. Alguma vez as pessoas eram designadas por um X ou ***, e ele
não acertava logo quem fossem, mas era um recreio procurá-las,
achá-las e completá-las.
Mandou
fazer um armário envidraçado, onde meteu as relíquias da vida,
retratos velhos, mimos de governos e de particulares, um leque, uma
luva, uma fita e outras memórias femininas, medalhas e medalhões,
camafeus, pedaços de ruínas gregas e romanas, uma infinidade de
cousas que não nomeio, para não encher papel. As cartas não
estavam lá, viviam dentro de uma mala, catalogadas por letras, por
cidades, por línguas, por sexos. Quinze ou vinte davam para outros
tantos capítulos e seriam lidas com interesse e curiosidade. Um
bilhete, por exemplo, um bilhete encardido e sem data, moço como os
bilhetes velhos, assinado por iniciais, um M e um P que ele traduzia
com saudades. Não vale a pena dizer o nome.
XXXIII
A Solidão também cansa
Mas tudo cansa, até a solidão. Aires
entrou a sentir uma ponta de aborrecimento; bocejava, cochilava,
tinha sede de gente viva, estranha, qualquer que fosse, alegre ou
triste. Metia-se por bairros excêntricos, trepava aos morros, ia às
igrejas velhas, às ruas novas, à Copacabana e à Tijuca. O mar ali,
aqui o mato e a vista acordavam nele uma infinidade de ecos, que
pareciam as próprias vozes antigas.
Tudo isso escrevia, às noites, para
se fortalecer no propósito da vida solitária. Mas não há
propósito contra a necessidade.
A gente estranha tinha a vantagem de
lhe tirar a solidão, sem lhe dar a conversação. As visitas de
rigor que ele fazia eram poucas, breves e apenas faladas. E tudo isso
foram os primeiros passos. A pouco e pouco sentiu o sabor dos
costumes velhos, a nostalgia das salas, a saudade do riso, e não
tardou que o aposentado da diplomacia fosse reintegrado no emprego da
recreação. A solidão, tanto no texto bíblico como na tradução
do padre, era arcaica. Aires trocou-lhe uma palavra e o sentido:
"Alonguei-me fugindo, e morei entre a gente".
Assim se foi o programa da vida nova.
Não é que ele já a não entendesse nem amasse, ou que a não
praticasse ainda alguma vez, a espaços, como se faz uso de um
remédio que obriga a ficar na cama ou na alcova; mas, sarava
depressa e tornava ao ar livre. Queria ver a outra gente, ouvi-la,
cheirá-la, gostá-la, apalpá-la, aplicar todos os sentidos a um
mundo que podia matar o tempo, o imortal tempo.
Assim
o deixamos, há apenas dous capítulos, a um canto da sala da gente
Santos, em conversação com as senhoras. Hás de lembrar-te que
Flora não despegava os olhos dele, ansiosa de saber por que é que a
achava inexplicável. A palavra rasgava-lhe o cérebro, ferindo sem
penetrar. Inexplicável que era? Que se não explica, sabia; mas que
se não explica por quê? Quis perguntá-lo ao conselheiro, mas não
achou ocasião, e ele saiu cedo. A primeira vez, porém, que Aires
foi a S. Clemente, Flora pediu-lhe familiarmente o obséquio de uma
definição mais desenvolvida. Aires sorriu e pegou na mão da
mocinha, que estava de pé.
Foi
só o tempo de inventar esta resposta:
—Inexplicável é o nome que podemos
dar aos artistas que pintam sem acabar de pintar. Botam tinta, mais
tinta, outra tinta, muita tinta, pouca tinta, nova tinta, e nunca
lhes parece que a árvore é árvore, nem a choupana. Se trata então
de gente, adeus. Por mais que os olhos da figura falem, sempre esses
pintores cuidam que eles não dizem nada. E retocam com tanta
paciência, que alguns morrem entre dous olhos, outros matam-se de
desespero.
Flora
achou a explicação obscura; e tu, amiga minha leitora, se acaso és
mais velha e mais fina que ela, pode ser que a não aches mais clara.
Ele é que não acrescentou nada, para não ficar incluído entre os
artistas daquela espécie. Bateu paternalmente na palma da mão de
Flora, e perguntou pelos estudos. Os estudos iam bem; como é que não
iriam bem os estudos? E sentando-se ao pé dele, a mocinha confessou
que tinha ideia justamente de aprender desenho e pintura, mas se
havia de pôr tinta de mais ou de menos, e acabar não pintando nada,
melhor seria ficar só na música. A música ia bem com ela, o
francês também, e o inglês.
—Pois só a música, o inglês e o
francês, concordou Aires.
—Mas o senhor promete que não me
achará inexplicável? perguntou ela com doçura.
Antes
que ele respondesse, entraram na sala os dous gêmeos. Flora esqueceu
um assunto por outro, e o velho pelos rapazes. Aires não se demorou
mais que o tempo de a ver rir com eles, e sentir em si alguma cousa
parecida com remorsos. Remorsos de envelhecer, creio.
XXXV
Em volta da moça
Em volta da moça
Já
então os dous gêmeos cursavam um a Faculdade de Direito, em S.
Paulo; outro a Escola de Medicina, no Rio. Não tardaria muito que
saíssem formados e prontos, uma para defender o direito e o torto da
gente, outro para ajudá-la a viver e a morrer. Todos os contrastes
estão no homem.
Não
era tanta a política que os fizesse esquecer Flora, nem tanta Flora
que os fizesse esquecer a política. Também não eram tais as duas
que prejudicassem estudos e recreios. Estavam na idade em que tudo se
combina sem quebra de essência de cada cousa. Lá que viessem a amar
a pequena com igual força é o que se podia admitir desde já, sem
ser preciso que ela os atraísse de vontade. Ao contrário, Flora ria
com ambos, sem rejeitar nem aceitar especialmente nenhum; pode ser
até que nem percebesse nada. Paulo vivia mais tempo ausente. Quando
tornava pelas férias, como que a achava mais cheia de graça. Era
então que Pedro multiplicava as suas finezas para se não deixar
vencer do irmão, que vinha pródigo delas. E Flora recebia-as todas
com o mesmo rosto amigo.
Note-se
— e este ponto deve ser tirado à luz, — note-se que os dous
gêmeos continuavam a ser parecidos e eram cada vez mais esbeltos.
Talvez perdessem estando juntos, porque a semelhança diminuía em
cada um deles a feição pessoal. Demais, Flora simulava às vezes
confundi-los, para rir com ambos. E dizia a Pedro:
—Dr. Paulo!
E
dizia a Paulo:
—Dr. Pedro!
Em vão eles mudavam da esquerda para
a direita e da direita para a esquerda. Flora mudava os nomes também,
e os três acabavam rindo. A familiaridade desculpava a ação e
crescia com ela. Paulo gostava mais de conversa que de piano; Flora
conversava. Pedro ia mais com o piano que com a conversa; Flora
tocava. Ou então fazia ambas as cousas, e tocava falando, soltava a
rédea aos dedos e à língua.
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