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domingo, 2 de março de 2014

Esaú e Jacó - Machado de Assis [parte 4]

  —Você é esquisita. Vá lá, prometo. Que tem que falasse, assim, por acaso?
        —Não quero. Jure!
        —Pois isto é cousa de juramento?
        —Sem isso, não confio, disse ela sorrindo.
        —Juro.
        —Jure por Deus Nosso Senhor!
        —Juro por Deus Nosso Senhor!

XI
Um caso único!

Santos cria na santidade do juramento; por isso, resistiu, mas enfim cedeu e jurou. Entretanto, o pensamento não lhe saiu mais da briga uterina dos filhos. Quis esquecê-la. Jogou essa noite, como de costume; na seguinte, foi ao teatro; na outra a uma visita; e tornou ao voltarete do costume, e a briga sempre com ele. Era um mistério. Talvez fosse um caso único... único! Um caso único! A singularidade do caso fê-lo agarrar-se mais à idéia, ou a idéia a ele, não posso explicar melhor este fenômeno íntimo, passado lá onde não entra olho de homem, nem bastam reflexões ou conjeturas. Nem por isso durou muito tempo. No primeiro domingo, Santos pegou em si, e foi à casa do doutor Plácido, Rua do Senador Vergueiro, uma casa baixa, de três janelas, com muito terreno para o lado do mar. Creio que já não exista. datava do tempo em que a rua era o Caminho Velho, para diferençar do Caminho Novo.
Perdoa estas minúcias. A ação podia ir sem elas, mas eu quero que saibas que casa era, e que rua, e mais digo que ali havia uma espécie de clube, templo ou que quer que era espírita. Plácido fazia de sacerdote e presidente a um tempo. Era um velho de grandes barbas. olho azul e brilhante, enfiado em larga camisola de seda. Põe-lhe uma vara na mão, e fica um mágico, mas, em verdade, as barbas e a camisola não as trazia por lhe darem tal aspecto. Ao contrário de Santos, que teria trocado dez vezes a cara, se não fora a oposição da mulher Plácido usava as barbas inteiras desde moço e a camisola há dez anos.

        —Venha, venha, disse ele, ande ajudar-me a converter o nosso amigo Aires; há meia hora que procuro incutir-lhe as verdades eternas, mas ele resiste.
        —Não, não, não resisto, acudiu um homem de cerca de quarenta anos, estendendo a mão ao recém-chegado.

XII
Esse Aires

Esses Aires que aí aparece conserva ainda agora algumas das virtudes daquele tempo, e quase nenhum vício. Não atribuas tal estado a qualquer propósito. Nem creias que vai nisto um pouco de homenagem à modéstia da pessoa. Não, senhor, é verdade pura e natural efeito. Apesar dos quarenta anos, ou quarenta e dous, e talvez por isso mesmo, era um belo tipo de homem. Diplomata de carreira, chegara dias antes do Pacífico, com uma licença de seis meses.
Não me demoro em descrevê-lo. Imagina só que trazia o calo do ofício, o sorriso aprovador, a fala brande a cautelosa, o ar da ocasião, a expressão adequada, tudo tão bem distribuído que era um gosto ouvi-lo e vê-lo. Talvez a pele da cara rapada estivesse prestes a mostrar os primeiros sinais do tempo. Ainda assim o bigode, que era moço na cor e no apuro com que acabava em ponta fina e rija, daria um ar de frescura ao rosto, quando o meio século chegasse. O mesmo faria o cabelo, vagamente grisalho, apartado ao centro. No alto da cabeça havia um início de calva. Na botoeira uma flor eterna.
Tempo houve, — foi por ocasião da anterior licença, sendo ele apenas secretário de legação, — tempo houve em que também ele gostou de Natividade. Não foi propriamente paixão; não era homem disso. Gostou dela, como de outras jóias e raridades, mas tão depressa viu que não era aceito, trocou de conversação. Não era frouxidão ou frieza. Gostava assaz de mulheres e ainda mais se eram bonitas A questão para ele é que nem as queria à força, nem curava de as persuadir. Não era general para escala à vista, nem para assédios demorados; contentava-se de simples passeios militares, — longos ou breves, conforme o tempo fosse claro ou turvo. Em suma, extremamente cordato.
Coincidência interessante: foi por esse tempo que Santos pensou em casá-lo com a cunhada, recentemente viúva. Esta parece que queria. Natividade opôs-se, nunca se soube por quê. Não eram ciúmes; invejas não .creio que fossem. O simples desejo de o não ver entrar na família pela porta lateral é apenas uma figura, que vale qualquer das primeiras hipóteses negadas. O desgosto de cedê-lo a outra, ou tê-los felizes ao pé de si, não podia ser. posto que o coração seja o abismo dos abismos. Suponhamos que era com o fim de o punir por havê-la amado.
 
XIV
A Lição do discípulo
 
 
        —Fique, fique, conselheiro, disse Santos apertando a mão ao diplomata. Aprenda as verdades eternas.
        —Verdades eternas pedem horas eternas, ponderou este, consultando o relógio.
Um tal Aires não era fácil de convencer. Plácido falou-lhe de leis científicas para excluir qualquer mácula de seita, e Santos foi com ele. Toda a terminologia espírita saiu fora, e mais os casos, fenômenos, mistérios, testemunhos, atestados verbais e escritos... Santos acudiu com um exemplo: dous espíritos podiam tornar juntos a este mundo; e, se brigassem antes de nascer?
        —Antes de nascer, crianças não brigam, replicou Aires, temperando o sentido afirmativo com a entonação dubitativa.
        —Então nega que dous espíritos? ...Essa cá me fica, conselheiro! Pois que impede que dous espíritos?...
Aires viu o abismo da controvérsia, e forrou-se à vertigem por uma concessão, dizendo:
        —Esaú e Jacó brigaram no seio materno, isso é verdade. Conhece-se a causa do conflito. Quanto a outros, dado que briguem também, tudo está em saber a causa do conflito, e não a sabendo, porque a Providência a esconde da notícia humana... Se fosse uma causa espiritual, por exemplo...
        —Por exemplo?
        —Por exemplo, se as duas crianças quiserem ajoelhar-se ao mesmo tempo para adorar o Criador. Aí está um caso de conflito, mas de conflito espiritual, cujos processos escapam à sagacidade humana. Também poderia ser um motivo temporal. Suponhamos a necessidade de se acotovelarem para ficar melhor acomodados; é uma hipótese que a ciência aceitaria; isto. não sei... Há ainda o caso de quererem ambos a primogenitura.
        —Para quê? perguntou Plácido.
        —Conquanto este privilégio esteja hoje limitado às famílias régias, à câmara dos lords e não sei se mais, tem todavia um valor simbólico. O simples gosto de nascer primeiro, sem outra vantagem social ou política, pode dar-se por instinto, principalmente se as crianças se destinarem a galgar os altos deste mundo.
Santos afiou o ouvido neste ponto, lembrando-se das "cousas futuras". Aires disse ainda algumas palavras bonitas, e acrescentou outras feias, admitindo que a briga podia ser. prenuncio de graves conflitos na terra; mas logo temperou esse conceito com este outro:
        —Não importa; não esqueçamos o que dizia um antigo, que "a guerra é a mãe de todas as cousas". Na minha opinião, Empédocles, referindo-se à guerra, não o fez só no sentido técnico. O amor, que é a primeira das artes da paz, pode-se dizer que é um duelo, não de morte, mas de vida, — concluiu Aires sorrindo leve, como falava baixo, e despediu-se.



XV
Teste David Cum Sibylla

        —E Então? disse Santos. Não é que o conselheiro, em vez de aprender, ensina-nos? Eu acho que ele deu algumas razões boas.
        —Quando menos, plausíveis, completou mestre Plácido.
        —Foi pena que se despedisse, continuou Santos, mas felizmente o meu caso é com o senhor. Venho consultá-lo, e as suas luzes são as verdadeiras do mundo.
Plácido agradeceu sorrindo. Não era novo o elogio, ao contrário;
mas ele estava tão acostumado a ouvi-lo que o sorriso era já agora um sestro. Não podia deixar de pagar com essa moeda aos seus discípulos.
        —Trata-se...
        —Trata-se disto. Aquela história que eu formulei é um fato real; sucedeu com os meus filhos.
        —Como?
        —É o que me parece, e vim justamente para que me explique. Nunca lhe falei por temer que achasse absurdo, mas tenho pensado, e suspeito que tal briga se deu, e que é um caso extraordinário.
Santos expôs então a consulta, gravemente, com um gesto particular que tinha de arregalar os olhos para arregalar a novidade. Não esqueceu nem escondeu nada; contou a própria ida da mulher ao Castelo, com desdém, é verdade, mas ponto por ponto. Plácido ouvia atento, perguntando, voltando atrás, e acabou por meditar alguns minutos. Enfim, declarou que o fenômeno, caso se houvesse dado, era raro, se não único, mas possível. Já o fato de se chamarem Pedro e Paulo indicava alguma rivalidade, porque esses dous apóstolos brigaram também.
        —Perdão, mas o batismo...
        —Foi posterior, sei, mas os nomes podem ter sido predestinados, tanto mais que a escolha dos nomes veio, como o senhor me disse, por inspiração à tia dos meninos.
        —Justamente.
        —D. Perpétua é muito devota.
        —Muito.
        —Creio que os próprios espíritos de S. Pedro e S. Paulo houvessem escolhido aquela senhora para inspirar os nomes que estão no Credo; advirta que ela reza muitas vezes o Credo, mas foi naquela ocasião que se lembrou deles.
      —Exato, exato!
O doutor foi à estante e tirou uma Bíblia, encadernada em couro, com grandes fechos de metal. Abriu a Epistola de S. Paulo aos Gálatas, e leu a passagem do capitulo II, versículo 11, em que o após tolo conta que, indo a Antioquia, onde estava S. Pedro, "resistiu-lhe na cara".
Santos leu e teve uma ideia. As ideias querem-se festejadas, quando são belas, e examinadas, quando novas; a dele era a um tempo nova e bela. Deslumbrado, ergueu a mão e deu uma palmada na folha, bradando:
        —Sem contar que este número onze do versículo, composto de dous algarismos iguais, 1 e 1, é um número gêmeo, não lhe parece?
        —Justamente. E mais: o capítulo é o segundo, isto é, dous, que é o próprio número dos irmãos gêmeos.
Mistério engendra mistério. Havia mais de um elo íntimo, substancial, escondido, que ligava tudo. Briga, Pedro e Paulo, irmãos gêmeos, números gêmeos, tudo eram águas de mistério que eles agora rasgavam, nadando e bracejando com força. Santos foi mais ao fundo; não seriam os dous meninos os próprios espíritos de S. Pedro e de S. Paulo, que renasciam agora, e ele, pai dos dous apóstolos?... A fé transfigura; Santos tinha um ar quase divino, trepou em si mesmo, e os olhos, ordinariamente sem expressão, pareciam entornar a chama da vida. Pai de apóstolos! E que apóstolos! Plácido esteve quase, quase a crer também, achava-se dentro de um mar torvo, soturno, onde as vozes do infinito se perdiam, mas logo lhe acudia que es espíritos de S. Pedro e S. Paulo tinham chegado à perfeição; não tornariam cá. Não importa; seriam outros, grandes e nobres. Os seus destinos podiam ser brilhantes; tinha razão a cabocla, sem saber o que dizia.
        —Deixe às senhoras as suas crenças da meninice, concluiu; se elas têm fé na tal mulher do Castelo, e acham que é um veículo de verdade, não as desminta por hora. Diga-lhes que eu estou de acordo com o seu oráculo. Teste David cum Sibylla.
        —Digo, digo! escreva a frase.
Plácido foi à secretária, escreveu o verso, e deu-lhe o papel, mas já então Santos advertira que mostrá-lo à mulher era confessar a consulta espírita, e naturalmente o perjúrio. Referiu ao amigo os escrúpulos de Natividade e pediu que calassem tudo.
        —Estando com ela, não lhe diga o que se passou entre nós.
Saiu logo depois, arrependido da indiscrição, m as deslumbrado da revelação. Ia cheio de números da Escritura, de Pedro e Paulo, de Esaú e Jacó. O ar da rua não espanou a poeira do mistério; ao contrário, o céu azul, a praia sossegada, os montes verdes como que o cercavam e cobriam de um véu mais transparente e infinito. A rixa dos meninos, fato raro ou único, era uma distinção divina. Contrariamente à esposa, que cuidava somente da grandeza futura dos filhos, Santos pensava no conflito passado.
Entrou em casa, correu aos pequenos, e acarinhou-os com tão estranha expressão, que a mãe desconfiou alguma cousa, e quis saber o que era.
        —Não é nada, respondeu ele rindo.
        —É! alguma cousa, anda, acaba.
        —Que há de ser?
        —Seja o que for, Agostinho, acaba.
Santos pediu-lhe que se não zangasse, e contou tudo, a sorte, a rixa, a Escritura, os apóstolos, o símbolo, tudo tão espalhadamente, que ela mal pôde entender, mas entendeu ao final, e replicou com os dentes cerrados:
        —Ah! você! você!
        —Perdoa, amiguinha, estava tão ansioso de saber a verdade... E nota que eu creio na cabocla, e o doutor também; ele até me escreveu isto em latim, concluiu tirando e lendo o papelinho: Teste David cum Sibylla.

XVI
Paternalismo
  
Daí A pouco, Santos pegou na mão da mulher, que a deixou ir à toa, sem apertar a dele; ambos fitavam os meninos, tendo esquecido a zanga para só ficarem pais.
Já não era espiritismo, nem outra religião nova; era a mais velha de todas, fundada por Adão e Eva, à qual chama, se queres, paternalismo. Rezavam sem palavras, persignavam-se sem dedos, uma espécie de cerimônia quieta e muda, que abrangia o passado e o futuro. Qual deles era o padre, qual o sacristão, não sei, nem é preciso. A missa é que era a mesma, e o evangelho começava como o de S. João (emendado): "No princípio era o amor, e o amor se fez carne". Mas venhamos aos nossos gêmeos.

XVII
Tudo o que restrinjo

Os gêmeos, não tendo que fazer, iam mamando. Nesse ofício portavam-se sem rivalidade, a não ser quando as amas estavam às boas, e eles mamavam ao pé um do outro; cada qual então parecia querer mostrar que mamava mais e melhor, passeando os dedos pelo seio amigo, e chupando com alma. Elas, à sua partes tinham glória dos peitos e os comparavam entre si; os pequenos, fartos, soltavam afinal os bicos e riam para elas.


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