—Você é esquisita. Vá lá,
prometo. Que tem que falasse, assim, por acaso?
—Juro por Deus Nosso Senhor!
Santos cria na santidade do juramento; por isso, resistiu, mas enfim
cedeu e jurou. Entretanto, o pensamento não lhe saiu mais da briga
uterina dos filhos. Quis esquecê-la. Jogou essa noite, como de
costume; na seguinte, foi ao teatro; na outra a uma visita; e tornou
ao voltarete do costume, e a briga sempre com ele. Era um mistério.
Talvez fosse um caso único... único! Um caso único! A
singularidade do caso fê-lo agarrar-se mais à idéia, ou a idéia a
ele, não posso explicar melhor este fenômeno íntimo, passado lá
onde não entra olho de homem, nem bastam reflexões ou conjeturas.
Nem por isso durou muito tempo. No primeiro domingo, Santos pegou em
si, e foi à casa do doutor Plácido, Rua do Senador Vergueiro, uma
casa baixa, de três janelas, com muito terreno para o lado do mar.
Creio que já não exista. datava do tempo em que a rua era o Caminho
Velho, para diferençar do Caminho Novo.
Perdoa estas minúcias. A ação podia ir sem elas, mas eu quero que
saibas que casa era, e que rua, e mais digo que ali havia uma espécie
de clube, templo ou que quer que era espírita. Plácido fazia de
sacerdote e presidente a um tempo. Era um velho de grandes barbas.
olho azul e brilhante, enfiado em larga camisola de seda. Põe-lhe
uma vara na mão, e fica um mágico, mas, em verdade, as barbas e a
camisola não as trazia por lhe darem tal aspecto. Ao contrário de
Santos, que teria trocado dez vezes a cara, se não fora a oposição
da mulher Plácido usava as barbas inteiras desde moço e a camisola
há dez anos.
—Venha, venha, disse ele, ande ajudar-me a converter o nosso amigo
Aires; há meia hora que procuro incutir-lhe as verdades eternas, mas
ele resiste.
—Não, não, não resisto, acudiu um homem de cerca de quarenta
anos, estendendo a mão ao recém-chegado.
XII
Esse Aires
Esse Aires
Esses Aires que aí aparece conserva
ainda agora algumas das virtudes daquele tempo, e quase nenhum vício.
Não atribuas tal estado a qualquer propósito. Nem creias que vai
nisto um pouco de homenagem à modéstia da pessoa. Não, senhor, é
verdade pura e natural efeito. Apesar dos quarenta anos, ou quarenta
e dous, e talvez por isso mesmo, era um belo tipo de homem. Diplomata
de carreira, chegara dias antes do Pacífico, com uma licença de
seis meses.
Não me demoro em descrevê-lo. Imagina
só que trazia o calo do ofício, o sorriso aprovador, a fala brande
a cautelosa, o ar da ocasião, a expressão adequada, tudo tão bem
distribuído que era um gosto ouvi-lo e vê-lo. Talvez a pele da cara
rapada estivesse prestes a mostrar os primeiros sinais do tempo.
Ainda assim o bigode, que era moço na cor e no apuro com que acabava
em ponta fina e rija, daria um ar de frescura ao rosto, quando o meio
século chegasse. O mesmo faria o cabelo, vagamente grisalho,
apartado ao centro. No alto da cabeça havia um início de calva. Na
botoeira uma flor eterna.
Tempo houve, — foi por ocasião da anterior licença, sendo ele
apenas secretário de legação, — tempo houve em que também ele
gostou de Natividade. Não foi propriamente paixão; não era homem
disso. Gostou dela, como de outras jóias e raridades, mas tão
depressa viu que não era aceito, trocou de conversação. Não era
frouxidão ou frieza. Gostava assaz de mulheres e ainda mais se eram
bonitas A questão para ele é que nem as queria à força, nem
curava de as persuadir. Não era general para escala à vista, nem
para assédios demorados; contentava-se de simples passeios
militares, — longos ou breves, conforme o tempo fosse claro ou
turvo. Em suma, extremamente cordato.
Coincidência interessante: foi por esse tempo que Santos pensou em
casá-lo com a cunhada, recentemente viúva. Esta parece que queria.
Natividade opôs-se, nunca se soube por quê. Não eram ciúmes;
invejas não .creio que fossem. O simples desejo de o não ver entrar
na família pela porta lateral é apenas uma figura, que vale
qualquer das primeiras hipóteses negadas. O desgosto de cedê-lo a
outra, ou tê-los felizes ao pé de si, não podia ser. posto que o
coração seja o abismo dos abismos. Suponhamos que era com o fim de
o punir por havê-la amado.
Um tal Aires não era fácil de convencer. Plácido falou-lhe de leis
científicas para excluir qualquer mácula de seita, e Santos foi com
ele. Toda a terminologia espírita saiu fora, e mais os casos,
fenômenos, mistérios, testemunhos, atestados verbais e escritos...
Santos acudiu com um exemplo: dous espíritos podiam tornar juntos a
este mundo; e, se brigassem antes de nascer?
—Antes de nascer,
crianças não brigam, replicou Aires, temperando o sentido
afirmativo com a entonação dubitativa.
—Então nega que dous
espíritos? ...Essa cá me fica, conselheiro! Pois que impede que
dous espíritos?...
Aires viu o abismo da controvérsia, e
forrou-se à vertigem por uma concessão, dizendo:
—Esaú e Jacó brigaram
no seio materno, isso é verdade. Conhece-se a causa do conflito.
Quanto a outros, dado que briguem também, tudo está em saber a
causa do conflito, e não a sabendo, porque a Providência a esconde
da notícia humana... Se fosse uma causa espiritual, por exemplo...
—Por exemplo?
—Por exemplo, se as duas crianças quiserem ajoelhar-se ao mesmo
tempo para adorar o Criador. Aí está um caso de conflito, mas de
conflito espiritual, cujos processos escapam à sagacidade humana.
Também poderia ser um motivo temporal. Suponhamos a necessidade de
se acotovelarem para ficar melhor acomodados; é uma hipótese que a
ciência aceitaria; isto. não sei... Há ainda o caso de quererem
ambos a primogenitura.
—Conquanto este
privilégio esteja hoje limitado às famílias régias, à câmara
dos lords e não sei se mais, tem todavia um valor simbólico. O
simples gosto de nascer primeiro, sem outra vantagem social ou
política, pode dar-se por instinto, principalmente se as crianças
se destinarem a galgar os altos deste mundo.
Santos afiou o ouvido neste ponto,
lembrando-se das "cousas futuras". Aires disse ainda
algumas palavras bonitas, e acrescentou outras feias, admitindo que a
briga podia ser. prenuncio de graves conflitos na terra; mas logo
temperou esse conceito com este outro:
—Não importa; não esqueçamos o que dizia um antigo, que "a
guerra é a mãe de todas as cousas". Na minha opinião,
Empédocles, referindo-se à guerra, não o fez só no sentido
técnico. O amor, que é a primeira das artes da paz, pode-se dizer
que é um duelo, não de morte, mas de vida, — concluiu Aires
sorrindo leve, como falava baixo, e despediu-se.
XV
Teste David Cum Sibylla
Teste David Cum Sibylla
—E Então? disse Santos. Não é que o conselheiro, em vez de
aprender, ensina-nos? Eu acho que ele deu algumas razões boas.
—Quando menos, plausíveis, completou mestre Plácido.
—Foi pena que se despedisse, continuou Santos, mas felizmente o meu
caso é com o senhor. Venho consultá-lo, e as suas luzes são as
verdadeiras do mundo.
Plácido agradeceu sorrindo. Não era
novo o elogio, ao contrário;
mas ele estava tão acostumado a
ouvi-lo que o sorriso era já agora um sestro. Não podia deixar de
pagar com essa moeda aos seus discípulos.
—Trata-se...
—Trata-se disto. Aquela história que eu formulei é um fato real;
sucedeu com os meus filhos.
—Como?
—É o que me parece, e vim justamente para que me explique. Nunca
lhe falei por temer que achasse absurdo, mas tenho pensado, e
suspeito que tal briga se deu, e que é um caso extraordinário.
Santos expôs então a consulta, gravemente, com um gesto particular
que tinha de arregalar os olhos para arregalar a novidade. Não
esqueceu nem escondeu nada; contou a própria ida da mulher ao
Castelo, com desdém, é verdade, mas ponto por ponto. Plácido ouvia
atento, perguntando, voltando atrás, e acabou por meditar alguns
minutos. Enfim, declarou que o fenômeno, caso se houvesse dado, era
raro, se não único, mas possível. Já o fato de se chamarem Pedro
e Paulo indicava alguma rivalidade, porque esses dous apóstolos
brigaram também.
—Perdão, mas o batismo...
—Foi posterior, sei, mas
os nomes podem ter sido predestinados, tanto mais que a escolha dos
nomes veio, como o senhor me disse, por inspiração à tia dos
meninos.
—Creio que os próprios
espíritos de S. Pedro e S. Paulo houvessem escolhido aquela senhora
para inspirar os nomes que estão no Credo; advirta que ela reza
muitas vezes o Credo, mas foi naquela ocasião que se lembrou deles.
O doutor foi à estante e tirou uma Bíblia, encadernada em couro,
com grandes fechos de metal. Abriu a Epistola de S. Paulo aos
Gálatas, e leu a passagem do capitulo II, versículo 11, em que o
após tolo conta que, indo a Antioquia, onde estava S. Pedro,
"resistiu-lhe na cara".
Santos leu e teve uma ideia. As ideias querem-se festejadas, quando
são belas, e examinadas, quando novas; a dele era a um tempo nova e
bela. Deslumbrado, ergueu a mão e deu uma palmada na folha,
bradando:
—Sem contar que este
número onze do versículo, composto de dous algarismos iguais, 1 e
1, é um número gêmeo, não lhe parece?
—Justamente. E mais: o
capítulo é o segundo, isto é, dous, que é o próprio número dos
irmãos gêmeos.
Mistério engendra mistério. Havia mais de um elo íntimo,
substancial, escondido, que ligava tudo. Briga, Pedro e Paulo, irmãos
gêmeos, números gêmeos, tudo eram águas de mistério que eles
agora rasgavam, nadando e bracejando com força. Santos foi mais ao
fundo; não seriam os dous meninos os próprios espíritos de S.
Pedro e de S. Paulo, que renasciam agora, e ele, pai dos dous
apóstolos?... A fé transfigura; Santos tinha um ar quase divino,
trepou em si mesmo, e os olhos, ordinariamente sem expressão,
pareciam entornar a chama da vida. Pai de apóstolos! E que
apóstolos! Plácido esteve quase, quase a crer também, achava-se
dentro de um mar torvo, soturno, onde as vozes do infinito se
perdiam, mas logo lhe acudia que es espíritos de S. Pedro e S. Paulo
tinham chegado à perfeição; não tornariam cá. Não importa;
seriam outros, grandes e nobres. Os seus destinos podiam ser
brilhantes; tinha razão a cabocla, sem saber o que dizia.
—Deixe às senhoras as
suas crenças da meninice, concluiu; se elas têm fé na tal mulher
do Castelo, e acham que é um veículo de verdade, não as desminta
por hora. Diga-lhes que eu estou de acordo com o seu oráculo. Teste
David cum Sibylla.
—Digo, digo! escreva a frase.
Plácido foi à secretária, escreveu o
verso, e deu-lhe o papel, mas já então Santos advertira que
mostrá-lo à mulher era confessar a consulta espírita, e
naturalmente o perjúrio. Referiu ao amigo os escrúpulos de
Natividade e pediu que calassem tudo.
—Estando com ela, não lhe diga o que se passou entre nós.
Saiu logo depois, arrependido da
indiscrição, m as deslumbrado da revelação. Ia cheio de números
da Escritura, de Pedro e Paulo, de Esaú e Jacó. O ar da rua não
espanou a poeira do mistério; ao contrário, o céu azul, a praia
sossegada, os montes verdes como que o cercavam e cobriam de um véu
mais transparente e infinito. A rixa dos meninos, fato raro ou único,
era uma distinção divina. Contrariamente à esposa, que cuidava
somente da grandeza futura dos filhos, Santos pensava no conflito
passado.
Entrou em casa, correu aos pequenos, e
acarinhou-os com tão estranha expressão, que a mãe desconfiou
alguma cousa, e quis saber o que era.
—Não é nada, respondeu ele rindo.
—É! alguma cousa, anda, acaba.
—Que há de ser?
—Seja o que for, Agostinho, acaba.
Santos pediu-lhe que se não zangasse,
e contou tudo, a sorte, a rixa, a Escritura, os apóstolos, o
símbolo, tudo tão espalhadamente, que ela mal pôde entender, mas
entendeu ao final, e replicou com os dentes cerrados:
—Ah! você! você!
—Perdoa, amiguinha, estava tão ansioso de saber a verdade... E
nota que eu creio na cabocla, e o doutor também; ele até me
escreveu isto em latim, concluiu tirando e lendo o papelinho: Teste
David cum Sibylla.
XVI
Paternalismo
Paternalismo
Daí A pouco, Santos pegou na mão da
mulher, que a deixou ir à toa, sem apertar a dele; ambos fitavam os
meninos, tendo esquecido a zanga para só ficarem pais.
Já não era espiritismo, nem outra religião nova; era a mais velha
de todas, fundada por Adão e Eva, à qual chama, se queres,
paternalismo. Rezavam sem palavras, persignavam-se sem dedos, uma
espécie de cerimônia quieta e muda, que abrangia o passado e o
futuro. Qual deles era o padre, qual o sacristão, não sei, nem é
preciso. A missa é que era a mesma, e o evangelho começava como o
de S. João (emendado): "No princípio era o amor, e o amor se
fez carne". Mas venhamos aos nossos gêmeos.
XVII
Tudo o que restrinjo
Tudo o que restrinjo
Os gêmeos, não tendo que fazer, iam mamando. Nesse ofício
portavam-se sem rivalidade, a não ser quando as amas estavam às
boas, e eles mamavam ao pé um do outro; cada qual então parecia
querer mostrar que mamava mais e melhor, passeando os dedos pelo seio
amigo, e chupando com alma. Elas, à sua partes tinham glória dos
peitos e os comparavam entre si; os pequenos, fartos, soltavam afinal
os bicos e riam para elas.
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