VIII
Nem casal, nem general
Nem casal, nem general
Nem casal, nem general. No dia sete de abril de 1870 veio à
luz um par de varões tão iguais, que antes pareciam a sombra um do outro, se
não era simplesmente a impressão do olho, que via dobrado.
Tudo esperavam, menos os dois gêmeos, e nem por ser o
espanto grande, foi menor o amor. Entende-se isto sem ser preciso insistir,
assim como se entende que a mãe desse aos dois filhos aquele pão inteiro e
dividido do poeta; eu acrescento que o pai fazia a mesma cousa. Viveu os
primeiros tempos a contemplar os meninos, a compará-los, a medi-los, a
pesá-los. Tinham o mesmo peso e cresciam por igual medida. A mudança ia-se
fazendo por um só teor. O rosto comprido, cabelos castanhos, dedos finos e tais
que, cruzados os da mão direita de um com os da esquerda de outro, não se podia
saber que eram de duas pessoas. Viriam a ter gênio diferente, mas por ora eram
os mesmos estranhões. Começaram a sorrir no mesmo dia. O mesmo dia os viu
batizar.
Antes do parto tinham combinado em dar o nome do pai ou da
mãe, segundo fosse o sexo da criança. Sendo um par de rapazes, e não havendo a
forma masculina do nome materno, não quis o pai que figurasse só o dele, e
meteram-se a catar outros. A mãe propunha franceses ou ingleses, conforme os
romances que lia. Algumas novelas russas em moda sugeriram nomes eslavos. O pai
aceitava uns e outros, mas consultava a terceiros, e não acertava com opinião
definitiva. Geralmente, os consultados trariam outro nome, que não era aceito
em casa. Também veio a antiga onomástica lusitana, mas sem melhor fortuna. Um
dia. estando Perpétua à missa, rezou o Credo, advertiu nas palavras:
"...os santos apóstolos S. Pedro e S. Paulo", e mal pôde acabar a
oração. Tinha descoberto os nomes; eram simples e gêmeos. Os pais concordaram
com ela e a pendência acabou.
A alegria de Perpétua foi quase tamanha como a do pai e da
mãe, se não maior. Maior não foi, nem tão profunda, mas foi grande, ainda que
rápida. O achado dos nomes valia quase que pela feitura das crianças. Viúva,
sem filhos, não se julgava incapaz de os ter, e era alguma cousa nomeá-los.
Contava mais cinco ou seis anos que a irmã. Casara com um tenente de artilharia
que morreu capitão na guerra do Paraguai. Era mais baixa que alta, e era gorda,
ao contrário de Natividade que, sem ser magra, não tinha as mesmas carnes, e
era alta e reta. Ambas vendiam saúde.
—Pedro e Paulo,
disse Perpétua à irmã e ao cunhado, quando rezei estes dous nomes, senti uma
cousa no coração...
—Você será madrinha
de um, disse a irmã.
Os pequenos, que se distinguiam por uma fita de cor,
passaram a receber medalhas de ouro, uma com a imagem de S. Pedro, outra com a
de S. Paulo. A confusão não cedeu logo, mas tarde, lento e pouco, ficando tal
semelhança que os advertidos se enganavam muita vez ou sempre. A mãe é que não
precisou de grandes sinais externos para saber quem eram aqueles dois pedaços
de si mesma. As amas, apesar de os distinguirem entre si, não deixavam de
querer mal uma à outra, pelo motivo da semelhança dos "seus filhos de
criação". Cada uma afirmava que o seu era mais bonito. Natividade
concordava com ambas.
Pedro seria médico, Paulo advogado; tal foi a primeira
escolha das profissões. Mas logo depois trocaram de carreira. Também pensaram
em dar um deles à engenharia. A marinha sorria à mãe, pela distinção particular
da escola. Tinha só o inconveniente da primeira viagem remota; mas Natividade
pensou em meter empenhos com o ministro. Santos falava em fazer um deles
banqueiro, ou ambos. Assim passavam as horas vadias. Íntimos da casa entravam
nos cálculos. Houve quem os fizesse ministros, desembargadores, bispos,
cardeais...
—Não peço tanto,
dizia o pai.
Natividade não dizia nada ao pé de estranhos, apenas sorria,
como se tratasse de folguedo de São João, um lançar de dados e ler no livro de
sortes a quadra correspondente ao número. Não importa; lá dentro de si cobiçava
algum brilhante destino aos filhos. Cria deveras, esperava, rezava às noites,
pedia ao céu que os fizesse grandes homens.
Uma das amas, parece que a de Pedro, sabendo daquelas ânsias
e conversas, perguntou a Natividade por que é que não ia consultar a cabocla do
Castelo. Afirmou que ela adivinhava tudo, o que era e o que viria a ser;
conhecia o número da sorte grande, não dizia qual era nem comprava bilhete para
não roubar os escolhidos de Nosso Senhor. Parece que era mandada de Deus.
A outra ama confirmou as notícias e acrescentou novas.
Conhecia pessoas que tinham perdido e achado jóias e escravos. A polícia mesma,
quando não acabava de apanhar um criminoso, ia ao Castelo falar à cabocla e
descia sabendo; por isso é que não a botava para fora, como os invejosos
andavam a pedir. Muita gente não embarcava sem subir primeiro ao morro. A
cabocla explicava sonhos e pensamentos, curava de quebranto...
Ao jantar, Natividade repetiu ao marido a lembrança das
amas. Santos encolhia os ombros. Depois examinou rindo a sabedoria da cabocla;
principalmente a sorte grande era incrível que, conhecendo o número, não
comprasse bilhete. Natividade achou que era o mais difícil de explicar, mas
podia ser invenção do povo. On ne prete qu'aux riches, acrescentou rindo. O
marido, que estivera na véspera com um desembargador, repetiu as palavras dele
que "enquanto a polícia não pusesse cobro ao escândalo..." O
desembargador não concluíra. Santos concluiu com um gesto vago.
—Mas você é
espírita, ponderou a mulher.
—Perdão, não
confundamos, replicou ele com gravidade.
Sim, podia consentir numa consulta espírita; já pensara nela
Algum espírito podia dizer-lhe a verdade em vez de uma adivinha de farsa...
Natividade defendeu a cabocla. Pessoas da sociedade falavam dela a sério. Não
queria confessar ainda que tinha fé, mas tinha. Recusando ir outrora, foi
naturalmente a insuficiência do motivo que lhe deu a força negativa. Que
importava saber o sexo do filho? Conhecer o destino dos dois era mais imperioso
e útil. Velhas ideias que lhe incutiram em criança vinham agora emergindo do
cérebro e descendo ao coração. Imaginava ir com os pequenos ao morro do
Castelo, a título de passeio... Para quê? Para confirmá-la na esperança de que
seriam grandes homens. Não lhe passara pela cabeça a predição contrária. Talvez
a leitora, no mesmo caso, ficasse aguardando o destino; mas a leitora, além de
não crer (nem todos creem) pode ser que não conte mais de vinte a vinte e dois
anos de idade, e terá a paciência de esperar. Natividade, de si para si,
confessava os trinta e um, e temia não ver a grandeza dos filhos. Podia ser que
a visse, pois também se morre velha, e alguma vez de velhice, mas acaso teria o
mesmo gosto?
Ao serão, a matéria da palestra foi a cabocla do Castelo,
por iniciativa de Santos, que repetia as opiniões da véspera e do jantar. Das
visitas algumas contavam o que ouviam dela. Natividade não dormiu aquela noite
sem obter do marido que a deixasse ir com a irmã à cabocla. Não se perdia nada,
bastava levar os retratos dos meninos e um pouco dos cabelos. As amas não
saberiam nada da aventura.
No dia aprazado meteram-se as duas no carro, entre sete e
oito horas com pretexto de passeio, e lá se foram para a Rua da Misericórdia.
Sabes já que ali se apearam, entre a igreja de S. José e a Câmara dos
Deputados, e subiram aquela até à Rua do Carmo, onde esta pega com a ladeira do
Castelo. Indo a subir, hesitaram, mas a mãe era mãe, e já agora faltava pouco
para ouvir o destino. Viste que subiram, que desceram, deram os dois mil réis
às almas, entraram no carro e voltaram para Botafogo.
IX
Vista de palácio
Vista de palácio
No catete, o coupé e uma vitória cruzaram-se e pararam a um
tempo. Um homem saltou da vitória e caminhou para o coupé. Era o marido de
Natividade, que ia agora para o escritório, um pouco mais tarde que de costume,
por haver esperado a volta da mulher. Ia pensando nela e nos negócios da praça,
nos meninos e na Lei Rio Branco, então discutida na Câmara dos Deputados; o
banco era credor da lavoura. Também pensava na cabocla do Castelo e no que
teria dito à mulher...
Ao passar pelo palácio Nova Friburgo, levantou os olhos para
ele com o desejo do costume, uma cobiça de possuí-lo, sem prever os altos
destinos que o palácio viria a ter na República; mas quem então previa nada?
Quem prevê cousa nenhuma? Para Santos a questão era só possuí-lo, dar ali
grandes festas únicas, celebradas nas gazetas, narradas na cidade entre amigos
e inimigos, cheios de admiração, de rancor ou de inveja. Não pensava nas
saudades que as matronas futuras contariam às suas netas, menos ainda nos
livros de crônicas, escritos e impressos neste outro século. Santos não tinha a
imaginação da posteridade. Via o presente e suas maravilhas.
Já lhe não bastava o que era. A casa de Botafogo, posto que
bela, não era um palácio, e depois, não estava tão exposta como aqui no Catete,
passagem obrigada de toda a gente, que olharia para as grandes janelas, as
grandes portas, as grandes águias no alto, de asas abertas. Quem viesse pelo
lado do mar, veria as costas do palácio, os jardins e os lagos... Oh! gozo
infinito! Santos imaginava os bronzes, mármores, luzes, flores, danças,
carruagens, músicas, ceias... Tudo isso foi pensado depressa, porque a vitória,
embora não corresse (os cavalos tinham ordem de moderar a andadura), todavia,
não atrasava as rodas para que os sonhos de Santos acabassem. Assim foi que,
antes de chegar à Praia da Glória, a vitória avistou o coupé da família, e as
duas carruagens pararam, a curta distancia uma da outra, como ficou dito.
X
O Juramento
O Juramento
Também ficou dito que o marido saiu da vitória e caminhou
para o coupé, onde a mulher e a cunhada, adivinhando que ele vinha ter com
elas, sorriam de antemão.
—Não lhe digas
nada, aconselhou Perpétua.
A cabeça de Santos apareceu logo, com as suíças curtas, o
cabelo rente, o bigode rapado. Era homem simpático. Quieto, não ficava mal. A
agitação com que chegou, parou e falou, tirou-lhe a gravidade com que ia no
carro, as mãos postas sobre o castão de ouro da bengala, e a bengala entre os
joelhos.
—Então? então?
perguntou.
—Logo digo.
—Mas que foi?
—Logo.
—Bem ou mal? Dize
só se bem.
—Bem. Cousas
futuras.
—Si pessoa séria?
—Séria, sim: até
logo. repetiu Natividade estendendo-lhe os dedos.
Mas o marido não podia despegar-se do coupé; queria saber
ali mesmo tudo, as perguntas e as respostas, a gente que lá estava à espera, e
se era o mesmo destino para os dois, ou se cada um tinha o seu. Nada disso foi
escrito como aqui vai, devagar, para que a ruim letra do autor não faça mal à
sua prosa. Não, senhor; as palavras de Santos saíram de atropelo, umas sobre
outras, embrulhadas, sem princípio ou sem fim. A bela esposa tinha já as
orelhas tão afeitas ao falar do marido, mormente em lances de emoção ou
curiosidade, que entendia tudo, e ia dizendo que não. A cabeça e o dedo
sublinhavam a negativa. Santos não teve remédio e despediu-se.
Em caminho, advertiu que, não crendo na cabocla, era ocioso
instar pela predição. Era mais; era dar razão à mulher. Prometeu não indagar
nada quando voltasse. Não prometeu esquecer, e daí a teima com que pensou
muitas vezes no oráculo. De resto, elas lhe diriam tudo sem que ele perguntasse
nada, e esta certeza trouxe a paz do dia.
Não concluas daqui que os fregueses do banco padecessem
alguma desatenção aos seus negócios. Tudo correu bem, como se ele não tivesse
mulher nem filhos ou não houvesse Castelo nem cabocla Não era só a mão que
fazia o seu ofício, assinando; a boca ia falando, mandando, chamando e rindo,
se era preciso. Não obstante! a ânsia existia e as figuras passavam e
repassavam diante dele; no intervalo de duas letras, Santos resolvia uma cousa
ou outra, se não eram ambas a um tempo. Entrando no carro, à tarde, agarrou-se
inteiramente ao oráculo. Trazia as mãos sobre o castão, a bengala entre os
joelhos, como de manhã, mas vinha pensando no destino dos filhos.
Quando chegou a casa, viu Natividade a contemplar os
meninos, ambos nos berços, as amas ao pé, um pouco admiradas da insistência com
que ela os procurava desde manhã. Não era só fitá-los, ou perder os olhos no
espaço e no tempo; era beijá-los também e apertá-los ao coração. Esqueceu-me
dizer que, de manhã, Perpétua mudou primeiro de roupa que a irmã e foi achá-la
diante dos berços, vestida como viera do Castelo.
—Logo vi que você
estava com os grandes homens, disse ela.
—Estou, mas não
sei em que é que eles serão grandes.
—Seja em que for,
vamos almoçar.
Ao almoço e durante o dia. falaram muita vez da cabocla e da
predição. Agora, ao ver entrar o marido, Natividade leu-lhe a dissimulação nos
olhos. Quis calar e esperar, mas estava tão ansiosa de lhe dizer tudo, e era
tão boa, que resolveu o contrário. Unicamente não teve o tempo de cumpri-lo;
antes mesmo de começar, já ele acabava de perguntar o que era. Natividade
referiu a subida, a consulta, a resposta e o resto; descreveu a cabocla e o
pai.
—Mas então
grandes destinos!
—Cousas futuras,
repetiu ela.
—Seguramente
futuras. Só a pergunta da briga é que não entendo. Brigar por quê? E brigar
como? E teriam deveras brigado?
Natividade recordou os seus padecimentos do tempo da
gestação, confessando que não falou mais deles para o não afligir; naturais
mente é o que a outra adivinhou que fosse briga.
—Mas briga por
quê?
—Isso não sei,
nem creio que fosse nada mau.
—Vou consultar...
—Consultar a
quem?
—Uma pessoa.
—Já sei, o seu
amigo Plácido.
—Se fosse só
amigo não consultava, mas ele é o meu chefe e mestre, tem uma vista clara e
comprida, dada pelo céu... Consulto só por hipótese, não digo os nossos
nomes...
—Não! Não!? Não!
—Só por hipótese.
—Não, Agostinho,
não fale disto. Não interrogue ninguém a meu respeito, ouviu? Ande, prometa que
não falará disto a ninguém, espíritas nem amigos. O melhor é calar. Basta saber
que terão sorte feliz. Grandes homens, cousas futuras... Jure, Agostinho.
—Mas você não foi
em pessoa à cabocla?
—Não me conhece,
nem de nome; viu-me uma vez, não me tornará a ver. Ande, jure!
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