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sexta-feira, 21 de março de 2014

Esaú e Jacó - Machado de Assis [parte 17]

Paulo saiu, logo depois do jantar, prometendo vir cedo. A mãe, receosa de o ver metido em barulhos, não queria que ele saísse; mas outro receio fê-la consentir, e este era que os dous irmãos brigassem finalmente. Assim um medo vence a outro, e a gente acaba por dar o que negou. Não é menos certo que ela raciocinou alguns minutos antes de resolver, do mesmo modo que eu escrevi uma página antes da que vou escrever agora; mas ambos nós, Natividade e eu, acabamos por deixar que os atos se praticassem, sem oposição dela, nem comentário meu.
LXVI
O Basto e a Espadilha
 Vieram amigos da casa, trazendo notícias e boatos. Variavam pouco e geralmente não havia opinião segura acerca do resultado. Ninguém sabia se a vitória do movimento era um bem, se um mal, apenas sabiam que era um fato. Daí a ingenuidade com que alguém propôs o voltarete do costume, e a boa vontade de outros em aceitá-lo. Santos, embora declarasse que não jogava, mandou pôr as cartas e os tentos, mas os outros opinaram que sempre faltava um parceiro, e sem ele, não havia graça. Quis resistir — não era bonito que no próprio dia em que o regímen caíra ou ia cair, entregasse o espírito a recreações de sociedade... Não pensou isto em voz alta nem baixa, mas consigo, e talvez o leu no rosto da mulher. Acharia um pretexto para resistir, se buscasse algum, mas amigos e cartas não deixavam buscar nada. Santos acabou aceitando. Provavelmente era essa mesma a inclinação íntima. Muitas há que precisam ser atraídas cá fora como um favor ou concessão da pessoa. Enfim, o basto e a espadilha fizeram naquela noite o seu ofício, como as mariposas e os ratos, os ventos e as ondas, o lume das estrelas e o sono dos cidadãos.


LXVII
A Noite inteira
Saindo de casa, Paulo foi à de um amigo, e os dous entraram a buscar outros da mesma idade e igual intimidade. Foram aos jornais, ao quartel do campo, e passaram algum tempo diante da casa de Deodoro. Gostavam de ver os soldados, a pé ou a cavalo, pediam licença, falavam-lhes, ofereciam cigarros. Era a única concessão destes; nenhum lhes contou o que se passara, nem todos saberiam nada.
Não importa, iam cheios de si. Paulo era o mais entusiasta e convicto. Aos outros valia só a mocidade, que é um programa, mas o filho de Santos tinha frescas todas as ideias do novo regímen, e possuía ainda outras que não via aceitar; bater-se-ia por elas. Trazia até o desejo de achar alguém na rua, que soltasse um grito, já agora sedicioso, para lhe quebrar a cabeça com a bengala. Note-se que esquecera ou perdera a bengala. Não deu por falta dela; se desse, bastavam-lhe os braços e as mãos.
Propôs cantarem a Marselhesa; os outros não quiseram ir tão longe, não por medo, senão de cansados. Paulo, que resistia mais que eles à fadiga, lembrou-lhes esperar a aurora.
        —Vamos esperá-la do alto de um morro, ou da Praia do Flamengo; teremos tempo de dormir amanhã.
        —Eu não posso, disse um.
Os outros repetiram a recusa, e assentaram de ir para suas casas. Era perto de duas horas Paulo acompanhou-os a todos, e só depois de ver o último recolhido foi sozinho para Botafogo.
Quando entrou, deu com a mãe que esperava por ele, inquieta e arrependida de o haver deixado sair. Paulo não achou desculpa e censurou a mãe por não dormir, à espera dele. Natividade confessou que não teria sono, antes de o saber em casa são e salvo. Falavam baixo e pouco; tendo-se beijado antes, beijaram-se depois e despediram-se.
        —Olha, disse Natividade, se achares Pedro acordado não lhe contes nem lhe perguntes nada; dorme, e amanhã saberemos tudo e o mais que se passar esta noite.
Paulo entrou no quarto pé ante pé. Era ainda aquele vasto quarto em que os dous gêmeos brigaram por causa de duas velhas gravuras. Robespierre e Luís XVI. Agora, havia mais que os retratos, uma revolução de poucas horas e um governo fresco. Obedecendo ao conselho da mãe, Paulo não quis saber se Pedro dormia, posto desconfiasse que não. Efetivamente, não. Pedro viu as cautelas de Paulo, e cumpriu também os conselhos da mãe; fingiu que não via nada. Até aí os conselhos; mas um pouco de glória fez com que Paulo cantarolasse entre os dentes, baixinho, para si, a primeira estrofe da Marselhesa que os amigos tinham recusado fora:
Allons, enfants de la patrie,
Le jour de gloire est arrzvé!
Pedro percebeu antes pela toada que pela letra, e concluiu que a intenção do outro era afligi-lo. Não era, mas podia ser. Vacilou entre a réplica e o silêncio, até que uma ideia fantástica lhe atravessou o cérebro, cantarolar, também baixinho, a segunda parte da estrofe: "Entendez-vous dans vos campagnes...", que alude às tropas estrangeiras, mas desviada do natural sentido histórico, para restringi-la às tropas nacionais. Era um desforço vago, a ideia passou depressa. Pedro contentou-se de simular a indiferença suprema do sono. Paulo não acabou a estrofe; despiu-se agitado, sem tirar o pensamento da vitória dos seus sonhos políticos. Não se meteu logo na cama; foi primeiro à do irmão, a ver se dormia. Pedro respirava tão naturalmente, como se não perdera nada. Teve ímpeto de acordá-lo, bradar-lhe que perdera tudo, se alguma cousa era a instituição derribada. Recuou a tempo e foi meter-se entre os lençóis.
Nenhum dormia. Enquanto o sono não chegava, iam pensando nos acontecimentos do dia. ambos espantados de como foram fáceis e rápidos. Depois cogitavam no dia seguinte e nos efeitos ulteriores. Não admira que não chegassem à mesma conclusão.
        —Como diabo é que eles fizeram isto, sem que ninguém desse pela cousa? refletia Paulo. Podia ter sido mais turbulento. Conspiração houve, decerto, mas uma barricada não faria mal. Seja como for, venceu-se a campanha. O que é preciso é não deixar esfriar o ferro, batê-lo sempre, e renová-lo. Deodoro é uma bela figura. Dizem que a entrada do marechal no quartel, e a saída, puxando os batalhões, foram esplêndidas. Talvez fáceis demais; é que o regímen estava podre e caiu por si...
Enquanto a cabeça de Paulo ia formulando essas ideias, a de Pedro ia pensando o contrário; chamava o movimento um crime.
        —Um crime e um disparate, além de ingratidão; o imperador devia ter pegado os principais cabeças e mandá-los executar. Infelizmente, as tropas iam com eles. Mas nem tudo acabou. Isto é fogo de palha; daqui a pouco está apagado, e o que antes era torna a ser. Eu acharei duzentos rapazes bons e prontos, e desfaremos esta caranguejola. A aparência é que dá um ar de solidez, mas isto é nada. Hão de ver que o imperador não sai daqui, e, ainda que não queira, há de governar; ou governará a filha, e, na falta dela, o neto. Também ele ficou menino e governou. Amanhã é tempo; por ora tudo são flores. Há ainda um punhado de homens...
A reticência final dos discursos de ambos quer dizer que as ideias se iam tornando esgarçadas, nevoentas e repetidas, até que se perderam e eles dormiram. Durante o sono cessou a revolução e a contrarrevolução, não houve monarquia nem república, D. Pedro II nem Marechal Deodoro, nada que cheirasse a política. Um e outro sonharam com a bela enseada de Botafogo, um céu claro, uma tarde clara e uma só pessoa: Flora.
 LXVIII
De manhã!

Floeta abriu os olhos de ambos, e esvaiu-se tão depressa que eles mal puderam ver a barra do vestido e ouvir uma palavrinha meiga e remota. Olharam um para o outro, sem rancor aparente. O receio de um e a esperança de outro deram tréguas. Correram aos jornais. Paulo, meio tonto, temia alguma traição sobre a madrugada. Pedro tinha uma ideia vaga de restauração, e contava ler nas folhas um decreto imperial de anistia. Nem traição nem decreto. A esperança e o receio fugiram deste mundo.




LXIX
Ao piano
Enquanto eles sonhavam com Flora, esta não sonhou com a república. Teve uma daquelas noites em que a imaginação dorme também, sem olhos nem ouvidos, ou, quando muito, a retina não deixa ver claro, e as orelhas confundem o som de um rio com o latir de um cão remoto. Não posso dar melhor definição, nem ela é precisa; cada um de nós terá tido dessas noites mudas e apagadas.
Não sonhou sequer com música; e, aliás, tocara antes algumas das suas páginas queridas. Não as tocou somente por gostar delas, senão por fugir à consternação dos pais, que era grande. Nenhum destes podia crer que as instituições tivessem caído, outras nascido, tudo mudado. D. Cláudia ainda apelava para o dia seguinte e perguntava ao marido se vira bem, e o que é que vira; ele mordia os beiços, batia na perna, erguia-se, dava alguns passos, e tornava a narrar os acontecimentos, as notícias coladas às portas dos jornais, a prisão dos ministros, a situação, tudo extinto, extinto, extinto...
Flora não era avessa à piedade, nem à esperança, como sabeis; mas não ia com a agitação dos pais, e meteu-se com o seu piano e as suas músicas. Escolheu não sei que sonata. Tanto bastou para lhe tirar o presente. A música tinha para ela a vantagem de não ser presente, passado ou futuro; era uma cousa fora do tempo e do espaço, uma idealidade pura. Quando parava, sucedia-lhe ouvir alguma frase solta do pai ou da mãe: "...Mas como foi que...?" — "Tudo às escondidas..." — "Há sangue?" Às vezes um deles fazia algum gesto, e ela não via o gesto. O pai, com a alma trôpega, falava muito e incoerente. A mãe trazia outro vigor. Já lhe sucedia calar por instantes, como se pensasse, ao contrário do marido que, em se calando, coçava a cabeça, apertava as mãos ou suspirava, quando não ameaçava o tecto com o punho.
        —Lá, lá, dó, ré, sol, ré, ré, lá, ia dizendo o piano da filha, por essas ou por outras notas, mas eram notas que vibravam para fugir aos homens e suas dissensões.
Também se pode achar na sonata de Flora uma espécie de acordo com a hora presente. Não havia governo definitivo. A alma da moca ia com esse primeiro albor do dia. ou com esse derradeiro crepúsculo da tarde, — como queiras, — em que nada é tão claro ou tão escuro que convide a deixar a cama ou acender velas. Quando muito, ia haver um governo provisório. Flora não entendia de formas nem de nomes A sonata trazia a sensação da falta absoluta de governo, a anarquia da inocência primitiva naquele recanto do Paraíso que o homem perdeu por desobediente, e um dia ganhará, quando a perfeição trouxer a ordem eterna e única. Não haverá então progresso nem regresso, mas estabilidade. O seio de Abraão agasalhará todas as cousas e pessoas, e a vida será um céu aberto. Era o que as teclas lhe diziam sem palavras, ré, ré, lá, sol, lá lá, dó...
LXX
De uma conclusão errada
Os sucessos vieram vindo, à medida que as flores iam nascendo. Destas houve que serviram ao último baile do ano. Outras morreram na véspera. Poetas de um e outro regímen tiraram imagem do fato para cantarem a alegria e a melancolia do mundo. A diferença é que a segunda abafava os seus suspiros, enquanto a primeira levava longe os seus tripúdios. O metal das trompas dava outro som que o das harpas. As flores é que continuavam a nascer e morrer, igual e regularmente.
D. Cláudia colheu as rosas do último baile do ano, primeiro da República, e adornou a filha com elas. Flora obedeceu e aceitou-as. Pai de família antes de tudo, Batista acompanhou a esposa e a filha ao baile. Também lá foi Paulo, pela moça e pelo regímen. Se, em conversa com o ex-presidente de província, disse todo o bem que pensava do Governo Provisório, não lhe ouviu palavras de acordo nem de contestação. Não entrou mais fundo na confissão do homem, porque a moca o atraía, e ele gostava mais dela que do pai.
Flora viu uma semelhança entre o baile da ilha Fiscal e este, apesar de particular e modesto. Este era dado por pessoa que vinha dos tempos da propaganda e um dos ministros lá esteve, ainda que só meia hora. Daí a ausência de Pedro, apesar de convidado. Flora sentiu a falta de Pedro, como sentira a de Paulo na ilha; tal era a semelhança das duas festas. Ambas traziam a ausência de um gêmeo.
        —Por que é que seu irmão não veio? perguntou ela.
Paulo enfiou; depois de alguns instantes:
        —Pedro é teimoso, disse. Teimou em recusar o convite. Crê naturalmente que a monarquia levou a arte de dançar. Não faça caso; é um lunático.
        —Não diga isso.
        —Acha também que a dança se foi com o império?
        —Não, a prova é que estamos dançando. Não; digo que lhe não chame nomes feios.
        —Parece-lhe então que Pedro é um rapaz de juízo?
        —Certamente, como o senhor.
        —Mas...
Paulo ia a perguntar-lhe qual deles, tendo ela de jurar por um ou por outro, lhe mereceria o juramento; mas recuou a tempo. Então ela falou do calor, e ele achou que sim, que estava quente. Acharia que estava frio, se ela se queixasse de frio. Flora, se só cedesse à vista, era também capaz de aceitar todas as opiniões de Paulo, para ir com ele. Em verdade, Paulo tinha agora um ar brilhante e petulante, olhava por cima, firme em que os seus escritos de um ano é que haviam feito a República, posto que incompleta, sem certas idéias que expusera e defendera, e teriam de vir um dia, breve. Tal ia dizendo à moça, e ela escutava com prazer, sem opinião; era o gosto de o escutar. Quando a lembrança de Pedro surgia na cabeça da moça, a tristeza empanava a alegria, mas a alegria vencia de pressa a outra, e assim, acabou o baile. Então as duas, tristeza e alegria, agasalharam-se no coração de Flora, como as suas gêmeas que eram.
O baile acabou. O capítulo é que não acaba sem que deixe um pouco de espaço a quem quiser pensar naquela criatura. Pai nem mãe podiam entendê-la, os rapazes também não, e provavelmente Santos e Natividade menos que ninguém. Tu, mestra de amores ou aluna deles, tu, que escutas a diversos, concluis que ela era Custa pôr o nome do ofício. Se não fosse a obrigação de contar a história com as próprias palavras, preferia calá-lo, mas tu sabes qual é ele, e aqui fica. Concluis que Flora era namoradeira, e conclui mal.
Leitora, é melhor negar já isto que esperar pelo tempo. Flora não conhecia as doçuras do namoro, e menos ainda se podia dizer namoradeira de ofício. A namoradeira de ofício é a planta das esperanças e alguma vez das realidades, se a vocação o impõe e a ocasião o permite. Também é preciso ter em lembrança aquilo de um publicista, filho de Minas e do outro século, que acabou senador, e escrevia contra os ministros adversários: "Pitangueira não dá manga".
Não, Flora não dava para namorados.
A prova disto é que no Estado em que viveu alguns meses de 1891, com o pai e a mãe, para o fim que direi adiante, ninguém alcançou o menor dos seus olhares amigos ou sequer complacentes. Mais de um rapaz consumiu o tempo em se fazer visto e atraído dela. Mais de uma gravata, mais de uma bengala, mais de uma luneta levaram lhe as cores, os gestos e os vidros, sem obter outra cousa que a atenção cortês e acaso uma palavra sem valor.
Flora só se lembrava dos gêmeos. Se nenhum deles a esqueceu, ela não os perdeu de memória. Ao contrário, escrevia por todos os cor reios a Natividade para se fazer lembrada de ambos. As cartas falavam pouco da terra ou da gente, e não diziam mal nem bem. Usavam muito a palavra saudades, que cada um dos dous gêmeos lia para si.
Também eles a escreviam nas cartas que mandavam a D. Cláudia e a Batista, com a mesma intenção duplicada e misteriosa, que ela entendia muito bem.
Tais eram de longe, ela e eles. A rixa velha, que os desunia na vida, continuava a desuni-los no amor. Podiam amar cada um a sua moça, casar com ela e ter os seus filhos, mas preferiam amar a mesma, e não ver o mundo por outros olhos, nem ouvir melhor verbo, nem diversa música, antes, durante e depois da comissão do Batista.

LXXI
A Comissão

Lá me escapou a palavra. Sim, foi uma comissão dada ao pai, e da qual não sei nada, nem ela. Negócio reservado. Flora chamava-lhe comissão do inferno. O pai, sem ir tão fundo, concordava mentalmente com ela — verbalmente, desmentia a definição.


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