Paulo
saiu, logo depois do jantar, prometendo vir cedo. A mãe, receosa de o ver
metido em barulhos, não queria que ele saísse; mas outro receio fê-la
consentir, e este era que os dous irmãos brigassem finalmente. Assim um medo
vence a outro, e a gente acaba por dar o que negou. Não é menos certo que ela
raciocinou alguns minutos antes de resolver, do mesmo modo que eu escrevi uma
página antes da que vou escrever agora; mas ambos nós, Natividade e eu,
acabamos por deixar que os atos se praticassem, sem oposição dela, nem
comentário meu.
LXVI
O Basto e a Espadilha
O Basto e a Espadilha
Vieram
amigos da casa, trazendo notícias e boatos. Variavam pouco e geralmente não
havia opinião segura acerca do resultado. Ninguém sabia se a vitória do
movimento era um bem, se um mal, apenas sabiam que era um fato. Daí a
ingenuidade com que alguém propôs o voltarete do costume, e a boa vontade de
outros em aceitá-lo. Santos, embora declarasse que não jogava, mandou pôr as
cartas e os tentos, mas os outros opinaram que sempre faltava um parceiro, e
sem ele, não havia graça. Quis resistir — não era bonito que no próprio dia em
que o regímen caíra ou ia cair, entregasse o espírito a recreações de
sociedade... Não pensou isto em voz alta nem baixa, mas consigo, e talvez o leu
no rosto da mulher. Acharia um pretexto para resistir, se buscasse algum, mas
amigos e cartas não deixavam buscar nada. Santos acabou aceitando.
Provavelmente era essa mesma a inclinação íntima. Muitas há que precisam ser
atraídas cá fora como um favor ou concessão da pessoa. Enfim, o basto e a
espadilha fizeram naquela noite o seu ofício, como as mariposas e os ratos, os
ventos e as ondas, o lume das estrelas e o sono dos cidadãos.
LXVII
A Noite inteira
A Noite inteira
Saindo
de casa, Paulo foi à de um amigo, e os dous entraram a buscar outros da mesma
idade e igual intimidade. Foram aos jornais, ao quartel do campo, e passaram
algum tempo diante da casa de Deodoro. Gostavam de ver os soldados, a pé ou a
cavalo, pediam licença, falavam-lhes, ofereciam cigarros. Era a única concessão
destes; nenhum lhes contou o que se passara, nem todos saberiam nada.
Não
importa, iam cheios de si. Paulo era o mais entusiasta e convicto. Aos outros
valia só a mocidade, que é um programa, mas o filho de Santos tinha frescas
todas as ideias do novo regímen, e possuía ainda outras que não via aceitar;
bater-se-ia por elas. Trazia até o desejo de achar alguém na rua, que soltasse
um grito, já agora sedicioso, para lhe quebrar a cabeça com a bengala. Note-se
que esquecera ou perdera a bengala. Não deu por falta dela; se desse,
bastavam-lhe os braços e as mãos.
Propôs
cantarem a Marselhesa; os outros não quiseram ir tão longe, não por medo, senão
de cansados. Paulo, que resistia mais que eles à fadiga, lembrou-lhes esperar a
aurora.
—Vamos esperá-la do alto de um morro, ou da Praia do Flamengo; teremos tempo de
dormir amanhã.
—Eu não posso, disse um.
Os
outros repetiram a recusa, e assentaram de ir para suas casas. Era perto de duas
horas Paulo acompanhou-os a todos, e só depois de ver o último recolhido foi
sozinho para Botafogo.
Quando
entrou, deu com a mãe que esperava por ele, inquieta e arrependida de o haver
deixado sair. Paulo não achou desculpa e censurou a mãe por não dormir, à
espera dele. Natividade confessou que não teria sono, antes de o saber em casa
são e salvo. Falavam baixo e pouco; tendo-se beijado antes, beijaram-se depois
e despediram-se.
—Olha, disse Natividade, se achares Pedro acordado não lhe contes nem lhe
perguntes nada; dorme, e amanhã saberemos tudo e o mais que se passar esta
noite.
Paulo
entrou no quarto pé ante pé. Era ainda aquele vasto quarto em que os dous
gêmeos brigaram por causa de duas velhas gravuras. Robespierre e Luís XVI.
Agora, havia mais que os retratos, uma revolução de poucas horas e um governo
fresco. Obedecendo ao conselho da mãe, Paulo não quis saber se Pedro dormia,
posto desconfiasse que não. Efetivamente, não. Pedro viu as cautelas de Paulo,
e cumpriu também os conselhos da mãe; fingiu que não via nada. Até aí os
conselhos; mas um pouco de glória fez com que Paulo cantarolasse entre os
dentes, baixinho, para si, a primeira estrofe da Marselhesa que os amigos
tinham recusado fora:
Allons,
enfants de la patrie,
Le
jour de gloire est arrzvé!
Pedro
percebeu antes pela toada que pela letra, e concluiu que a intenção do outro
era afligi-lo. Não era, mas podia ser. Vacilou entre a réplica e o silêncio,
até que uma ideia fantástica lhe atravessou o cérebro, cantarolar, também
baixinho, a segunda parte da estrofe: "Entendez-vous dans vos
campagnes...", que alude às tropas estrangeiras, mas desviada do natural
sentido histórico, para restringi-la às tropas nacionais. Era um desforço vago,
a ideia passou depressa. Pedro contentou-se de simular a indiferença suprema do
sono. Paulo não acabou a estrofe; despiu-se agitado, sem tirar o pensamento da
vitória dos seus sonhos políticos. Não se meteu logo na cama; foi primeiro à do
irmão, a ver se dormia. Pedro respirava tão naturalmente, como se não perdera
nada. Teve ímpeto de acordá-lo, bradar-lhe que perdera tudo, se alguma cousa
era a instituição derribada. Recuou a tempo e foi meter-se entre os lençóis.
Nenhum
dormia. Enquanto o sono não chegava, iam pensando nos acontecimentos do dia.
ambos espantados de como foram fáceis e rápidos. Depois cogitavam no dia
seguinte e nos efeitos ulteriores. Não admira que não chegassem à mesma
conclusão.
—Como diabo é que eles fizeram isto, sem que ninguém desse pela cousa? refletia
Paulo. Podia ter sido mais turbulento. Conspiração houve, decerto, mas uma
barricada não faria mal. Seja como for, venceu-se a campanha. O que é preciso é
não deixar esfriar o ferro, batê-lo sempre, e renová-lo. Deodoro é uma bela
figura. Dizem que a entrada do marechal no quartel, e a saída, puxando os
batalhões, foram esplêndidas. Talvez fáceis demais; é que o regímen estava
podre e caiu por si...
Enquanto
a cabeça de Paulo ia formulando essas ideias, a de Pedro ia pensando o
contrário; chamava o movimento um crime.
—Um crime e um disparate, além de ingratidão; o imperador devia ter pegado os
principais cabeças e mandá-los executar. Infelizmente, as tropas iam com eles.
Mas nem tudo acabou. Isto é fogo de palha; daqui a pouco está apagado, e o que
antes era torna a ser. Eu acharei duzentos rapazes bons e prontos, e desfaremos
esta caranguejola. A aparência é que dá um ar de solidez, mas isto é nada. Hão
de ver que o imperador não sai daqui, e, ainda que não queira, há de governar;
ou governará a filha, e, na falta dela, o neto. Também ele ficou menino e
governou. Amanhã é tempo; por ora tudo são flores. Há ainda um punhado de
homens...
A
reticência final dos discursos de ambos quer dizer que as ideias se iam
tornando esgarçadas, nevoentas e repetidas, até que se perderam e eles
dormiram. Durante o sono cessou a revolução e a contrarrevolução, não houve
monarquia nem república, D. Pedro II nem Marechal Deodoro, nada que cheirasse a
política. Um e outro sonharam com a bela enseada de Botafogo, um céu claro, uma
tarde clara e uma só pessoa: Flora.
LXVIII
De manhã!
De manhã!
Floeta
abriu os olhos de ambos, e esvaiu-se tão depressa que eles mal puderam ver a
barra do vestido e ouvir uma palavrinha meiga e remota. Olharam um para o
outro, sem rancor aparente. O receio de um e a esperança de outro deram
tréguas. Correram aos jornais. Paulo, meio tonto, temia alguma traição sobre a
madrugada. Pedro tinha uma ideia vaga de restauração, e contava ler nas folhas
um decreto imperial de anistia. Nem traição nem decreto. A esperança e o receio
fugiram deste mundo.
LXIX
Ao piano
Ao piano
Enquanto
eles sonhavam com Flora, esta não sonhou com a república. Teve uma daquelas
noites em que a imaginação dorme também, sem olhos nem ouvidos, ou, quando
muito, a retina não deixa ver claro, e as orelhas confundem o som de um rio com
o latir de um cão remoto. Não posso dar melhor definição, nem ela é precisa;
cada um de nós terá tido dessas noites mudas e apagadas.
Não
sonhou sequer com música; e, aliás, tocara antes algumas das suas páginas
queridas. Não as tocou somente por gostar delas, senão por fugir à consternação
dos pais, que era grande. Nenhum destes podia crer que as instituições tivessem
caído, outras nascido, tudo mudado. D. Cláudia ainda apelava para o dia
seguinte e perguntava ao marido se vira bem, e o que é que vira; ele mordia os
beiços, batia na perna, erguia-se, dava alguns passos, e tornava a narrar os
acontecimentos, as notícias coladas às portas dos jornais, a prisão dos
ministros, a situação, tudo extinto, extinto, extinto...
Flora
não era avessa à piedade, nem à esperança, como sabeis; mas não ia com a
agitação dos pais, e meteu-se com o seu piano e as suas músicas. Escolheu não
sei que sonata. Tanto bastou para lhe tirar o presente. A música tinha para ela
a vantagem de não ser presente, passado ou futuro; era uma cousa fora do tempo
e do espaço, uma idealidade pura. Quando parava, sucedia-lhe ouvir alguma frase
solta do pai ou da mãe: "...Mas como foi que...?" — "Tudo às
escondidas..." — "Há sangue?" Às vezes um deles fazia algum
gesto, e ela não via o gesto. O pai, com a alma trôpega, falava muito e
incoerente. A mãe trazia outro vigor. Já lhe sucedia calar por instantes, como
se pensasse, ao contrário do marido que, em se calando, coçava a cabeça,
apertava as mãos ou suspirava, quando não ameaçava o tecto com o punho.
—Lá, lá, dó, ré, sol, ré, ré, lá, ia dizendo o piano da filha, por essas ou por
outras notas, mas eram notas que vibravam para fugir aos homens e suas
dissensões.
Também
se pode achar na sonata de Flora uma espécie de acordo com a hora presente. Não
havia governo definitivo. A alma da moca ia com esse primeiro albor do dia. ou
com esse derradeiro crepúsculo da tarde, — como queiras, — em que nada é tão
claro ou tão escuro que convide a deixar a cama ou acender velas. Quando muito,
ia haver um governo provisório. Flora não entendia de formas nem de nomes A
sonata trazia a sensação da falta absoluta de governo, a anarquia da inocência
primitiva naquele recanto do Paraíso que o homem perdeu por desobediente, e um
dia ganhará, quando a perfeição trouxer a ordem eterna e única. Não haverá
então progresso nem regresso, mas estabilidade. O seio de Abraão agasalhará
todas as cousas e pessoas, e a vida será um céu aberto. Era o que as teclas lhe
diziam sem palavras, ré, ré, lá, sol, lá lá, dó...
LXX
De uma conclusão errada
De uma conclusão errada
Os
sucessos vieram vindo, à medida que as flores iam nascendo. Destas houve que
serviram ao último baile do ano. Outras morreram na véspera. Poetas de um e
outro regímen tiraram imagem do fato para cantarem a alegria e a melancolia do
mundo. A diferença é que a segunda abafava os seus suspiros, enquanto a
primeira levava longe os seus tripúdios. O metal das trompas dava outro som que
o das harpas. As flores é que continuavam a nascer e morrer, igual e
regularmente.
D.
Cláudia colheu as rosas do último baile do ano, primeiro da República, e
adornou a filha com elas. Flora obedeceu e aceitou-as. Pai de família antes de
tudo, Batista acompanhou a esposa e a filha ao baile. Também lá foi Paulo, pela
moça e pelo regímen. Se, em conversa com o ex-presidente de província, disse
todo o bem que pensava do Governo Provisório, não lhe ouviu palavras de acordo
nem de contestação. Não entrou mais fundo na confissão do homem, porque a moca
o atraía, e ele gostava mais dela que do pai.
Flora
viu uma semelhança entre o baile da ilha Fiscal e este, apesar de particular e
modesto. Este era dado por pessoa que vinha dos tempos da propaganda e um dos
ministros lá esteve, ainda que só meia hora. Daí a ausência de Pedro, apesar de
convidado. Flora sentiu a falta de Pedro, como sentira a de Paulo na ilha; tal
era a semelhança das duas festas. Ambas traziam a ausência de um gêmeo.
—Por que é que seu irmão não veio? perguntou ela.
Paulo
enfiou; depois de alguns instantes:
—Pedro é teimoso, disse. Teimou em recusar o convite. Crê naturalmente que a
monarquia levou a arte de dançar. Não faça caso; é um lunático.
—Não diga isso.
—Acha também que a dança se foi com o império?
—Não, a prova é que estamos dançando. Não; digo que lhe não chame nomes feios.
—Parece-lhe então que Pedro é um rapaz de juízo?
—Certamente, como o senhor.
—Mas...
Paulo
ia a perguntar-lhe qual deles, tendo ela de jurar por um ou por outro, lhe
mereceria o juramento; mas recuou a tempo. Então ela falou do calor, e ele
achou que sim, que estava quente. Acharia que estava frio, se ela se queixasse
de frio. Flora, se só cedesse à vista, era também capaz de aceitar todas as
opiniões de Paulo, para ir com ele. Em verdade, Paulo tinha agora um ar brilhante
e petulante, olhava por cima, firme em que os seus escritos de um ano é que
haviam feito a República, posto que incompleta, sem certas idéias que expusera
e defendera, e teriam de vir um dia, breve. Tal ia dizendo à moça, e ela
escutava com prazer, sem opinião; era o gosto de o escutar. Quando a lembrança
de Pedro surgia na cabeça da moça, a tristeza empanava a alegria, mas a alegria
vencia de pressa a outra, e assim, acabou o baile. Então as duas, tristeza e
alegria, agasalharam-se no coração de Flora, como as suas gêmeas que eram.
O
baile acabou. O capítulo é que não acaba sem que deixe um pouco de espaço a
quem quiser pensar naquela criatura. Pai nem mãe podiam entendê-la, os rapazes
também não, e provavelmente Santos e Natividade menos que ninguém. Tu, mestra
de amores ou aluna deles, tu, que escutas a diversos, concluis que ela era
Custa pôr o nome do ofício. Se não fosse a obrigação de contar a história com
as próprias palavras, preferia calá-lo, mas tu sabes qual é ele, e aqui fica.
Concluis que Flora era namoradeira, e conclui mal.
Leitora,
é melhor negar já isto que esperar pelo tempo. Flora não conhecia as doçuras do
namoro, e menos ainda se podia dizer namoradeira de ofício. A namoradeira de
ofício é a planta das esperanças e alguma vez das realidades, se a vocação o
impõe e a ocasião o permite. Também é preciso ter em lembrança aquilo de um
publicista, filho de Minas e do outro século, que acabou senador, e escrevia
contra os ministros adversários: "Pitangueira não dá manga".
Não,
Flora não dava para namorados.
A
prova disto é que no Estado em que viveu alguns meses de 1891, com o pai e a
mãe, para o fim que direi adiante, ninguém alcançou o menor dos seus olhares
amigos ou sequer complacentes. Mais de um rapaz consumiu o tempo em se fazer
visto e atraído dela. Mais de uma gravata, mais de uma bengala, mais de uma
luneta levaram lhe as cores, os gestos e os vidros, sem obter outra cousa que a
atenção cortês e acaso uma palavra sem valor.
Flora
só se lembrava dos gêmeos. Se nenhum deles a esqueceu, ela não os perdeu de
memória. Ao contrário, escrevia por todos os cor reios a Natividade para se
fazer lembrada de ambos. As cartas falavam pouco da terra ou da gente, e não
diziam mal nem bem. Usavam muito a palavra saudades, que cada um dos dous
gêmeos lia para si.
Também
eles a escreviam nas cartas que mandavam a D. Cláudia e a Batista, com a mesma
intenção duplicada e misteriosa, que ela entendia muito bem.
Tais
eram de longe, ela e eles. A rixa velha, que os desunia na vida, continuava a
desuni-los no amor. Podiam amar cada um a sua moça, casar com ela e ter os seus
filhos, mas preferiam amar a mesma, e não ver o mundo por outros olhos, nem
ouvir melhor verbo, nem diversa música, antes, durante e depois da comissão do
Batista.
LXXI
A Comissão
A Comissão
Lá
me escapou a palavra. Sim, foi uma comissão dada ao pai, e da qual não sei
nada, nem ela. Negócio reservado. Flora chamava-lhe comissão do inferno. O pai,
sem ir tão fundo, concordava mentalmente com ela — verbalmente, desmentia a definição.
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