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sábado, 8 de março de 2014

Esaú e Jacó - Machado de Assis [parte 10}

Não lhe atribuam todas essas ideias. Pensava assim, como se falasse alto, à mesa ou na sala de alguém. Era um processo de crítica mansa e delicada, tão convencida em aparência, que algum ouvinte, à cata de ideias, acabava por lhe apanhar uma ou duas... ia a descer pela Rua Sete de Setembro, quando a lembrança da vozeria trouxe a de outra, maior e mais remota.

XL
Recuerdos

Essa outra vozeria maior e mais remota não caberia aqui, se não fosse a necessidade de explicar o gesto repentino com que Aires parou na calçada. Parou, tornou a si e continuou a andar com os olhos no chão e a alma em Cartacas. Foi em Caracas, onde ele servira na qualidade de adido de legação. Estava em casa, de palestra com uma atriz da moda, pessoa chistosa e garrida. De repente, ouviram um clamor grande, vozes tumultuosas, vibrantes, crescentes...
        —Que rumor é este, Carmen? perguntou ele entre duas carícias.
        —Não se assuste, amigo meu; é o governo que cai.
        —Mas eu ouço aclamações...

        —Então é o governo que sobe. Não se assuste. Amanhã é tempo de ir cumprimentá-lo.
Aires deixou-se ir rio abaixo daquela memória velha, que lhe surdia agora do alarido de cinquenta ou sessenta pessoas. Essa espécie de lembranças tinha mais efeito nele que outras. Recompôs a hora, o lugar e a pessoa da sevilhana. Cármen era de Sevilha. O ex-rapaz ainda agora recordava a cantiga popular que lhe ouvia, à despedida depois de retificar as ligas, compor as saias, e cravar o pente no cabelo, — no momento em que ia deitar a mantilha, meneando o corpo com graça:
Tienen las sevillanas,
En la mantilla,
Un letrero que disse:
¡Viva Sevilla!
Não posso dar a toada, mas Aires ainda a trazia de cor, e vinha a repeti-la consigo, vagarosamente, como ia andando. Outrossim, meditava na ausência de vocação diplomática. A ascensão de um governo, — de um regímen que fosse, — com as suas ideias novas, os seus homens frescos, leis e aclamações, valia menos para ele que o riso da jovem comediante. Onde iria ela? A sombra da moça varreu tudo o mais, a rua, a gente, o gatuno, para ficar só diante do velho Aires, dando aos quadris e cantarolando a trova andaluza:
Tienen las sevillanas,
En la mantilla...

XLI
Caso do burro

Se Aires obedecesse ao seu gosto, e eu a ele, nem ele continuaria a andar, nem eu começaria este capítulo; ficaríamos no outro, sem nunca mais acabá-lo. Mas não há na memória que dure, se outro negócio mais forte puxa pela atenção, e um simples burro fez desaparecer Cármen e a sua trova.
Foi o caso que uma carroça estava parada, ao pé da Travessa de S. Francisco, sem deixar passar um carro, e o carroceiro dava muita pancada no burro da carroça. Vulgar embora, este espetáculo fez parar o nosso Aires, não menos condoído do asno do homem. A força despendida por este era grande, porque o asno ruminava se devia ou não sair do lugar; mas, não obstante esta superioridade, apanhava que era o diabo. Já havia algumas pessoas paradas, mirando. Cinco ou seis minutos durou esta situação — finalmente o burro preferiu a marcha à pancada, tirou a carroça do lugar e foi andando.
Nos olhos redondos do animal viu Aires uma expressão profunda de ironia e paciência. Pareceu-lhe o gesto largo de espírito invencível. Depois leu neles este monólogo; "Anda, patrão, atulha a carroça de carga para ganhar o capim de que me alimentas. Vive de pé no chão para comprar as minhas ferraduras. Nem por isso me impedirás que te chame um nome feio, mas eu não te chamo nada; ficas sendo sempre o meu querido patrão. Enquanto te esfalfas em ganhar a vida, eu vou pensando que o teu domínio não vale muito, uma vez que me não tiras a liberdade de teimar..."
        —Vê-se, quase que se lhe ouve a reflexão, notou Aires consigo.
Depois riu de si para si, e foi andando. Inventara tanta cousa no serviço diplomático, que talvez inventasse o monólogo do burro. Assim foi; não lhe leu nada nos olhos, a não ser a ironia e a paciência, mas não se pôde ter que lhes não desse uma forma de palavra, com as suas regras de sintaxe. A própria ironia estava acaso na retina dele. O olho do homem serve de fotografia ao invisível, como o ouvido serve de eco ao silêncio. Tudo é que o dono tenha um lampejo de imaginação para ajudar a memória a esquecer Caracas e Cármen, os seus beijos e experiência política.

XLII
Uma hipótese

Visões e reminiscências iam assim comendo o tempo e o espaço ao conselheiro, a ponto de lhe fazerem esquecer o pedido de Natividade; mas não o esqueceu de todo, e as palavras trocadas há pouco surdiam-lhe das pedras da rua. Considerou que não perdia muito em estudar os rapazes. Chegou a apanhar uma hipótese, espécie de andorinha, que avoaça entre árvores, abaixo e acima, pousa aqui, pousa ali, arranca de novo um surto e toda se despeja em movimentos. Tal foi a hipótese vaga e colorida, a saber, que se os gêmeos tivessem nascido dele talvez não divergissem tanto nem nada, graças ao equilíbrio do seu espírito. A alma do velho entrou a ramalhar não sei que desejos retrospectivos, e a rever essa hipótese, outra Caracas, outra Cármen, ele pai, estes meninos seus, toda a andorinha que se dispersava num farfalhar calado de gestos.

XLIII
O Discurso
 
Natividade é que não teve distrações de espécie alguma. Toda ela estava nos filhos, e agora especialmente na carta e no discurso. Começou por não dar resposta às efusões políticas de Paulo; foi um dos conselhos do conselheiro. Quando o filho tornou pelas férias tinha esquecido a carta que escrevera.
O discurso é que ele não esqueceu, mas quem é que esquece os discursos que faz? Se são bons, a memória os grava em bronze; se ruins, deixam tal ou qual amargor que dura muito. O melhor dos remédios, no segundo caso, é supô-los excelentes, e, se a razão não aceita esta imaginação, consultar pessoas que a aceitem, e crer nelas. A opinião é um velho óleo incorruptível.
Paulo tinha talento. O discurso daquele dia podia pecar aqui ou ali por alguma ênfase, e uma ou outra ideia vulgar e exausta. Tinha talento Paulo. Em suma, o discurso era bom. Santos achou-o excelente, leu-o aos amigos e resolveu transcrevê-lo nos jornais. Natividade não se opôs, mas entendia que algumas palavras deviam ser cortadas.
        —Cortadas, por quê? perguntou Santos, e ficou esperando a resposta.
        —Pois você não vê, Agostinho; estas palavras têm sentido republicano, explicou ela relendo a frase que a afligira.
Santos ouviu-as ler, leu-as para si, e não deixou de lhe achar razão. Entretanto, não havia de as suprimir.
        —Pois não se transcreve o discurso.
        —Ah! isso não! O discurso é magnífico, e não há de morrer em S. Paulo; é preciso que a Corte o leia, e as províncias também, e até não se me daria fazê-lo traduzir em francês. Em francês, pode ser que fique ainda melhor.
        —Mas, Agostinho, isto pode fazer mal à carreira do rapaz; o imperador pode ser que não goste...
Pedro que assistia desde alguns instantes ao debate, interveio docemente para dizer que os receios da mãe não tinham base; era bom pôr a frase toda, e, a rigor, não diferia muito do que os liberais diziam em 1848.
        —Um monarquista liberal pode muito bem assinar esse trecho concluiu ele depois de reter as palavras do irmão.
        —Justamente! assentiu o pai.
Natividade, que em tudo via a inimizade dos gêmeos, suspeitou que o intuito de Pedro fosse justamente comprometer Paulo. Olhou para ele a ver se lhe descobria essa intenção torcida, mas a cara do filho tinha então o aspecto do entusiasmo. Pedro lia trechos do discurso, acentuando as belezas, repetindo as frases mais novas, cantando as mais redondas, revolvendo-as na boca, tudo com tão boa sombra que a mãe perdeu a suspeita, e a impressão do discurso foi resolvida. Também se tirou uma edição em folheto, e o pai mandou encadernar ricamente sete exemplares, que levou aos ministros, e um ainda mais rico para a Regente.
        —Você diga-lhe, aconselhou Natividade, que o nosso Paulo é liberal ardente...
        —Liberal de 1848, completou Santos lembrando as palavras de Pedro.
Santos cumpriu à risca. A entrega se fez naturalmente, e, no palácio Isabel, a definição do "liberal de 1848" saiu mais viva que as outras palavras, ou para diminuir o cheiro revolucionário da frase condenada pela mulher, ou porque trazia valor histórico. Quando ele voltou a casa, a primeira cousa que lhe disse foi que a Regente perguntara por ela, mas apesar de lisonjeada com a lembrança, Natividade quis saber da impressão que lhe fizera o discurso, se já o lera.
        —Parece que foi boa. Disse-me que já havia lido o discurso. Nem por isso deixei de lhe dizer que os sentimentos de Paulo eram bons; que, se lhe notávamos certo ardor, compreendíamos sempre que eles eram os de um liberal de 1848...
        —Papai disse isso? perguntou Pedro.
        —Por que não, se é verdade? Paulo é o que se pode chamar um liberal de 1848, repetiu Santos querendo convencer o filho.

XLIV
O Salmo

Pelas férias é que Paulo soube da interpretação que o pai dera à Regente daquele trecho do discurso. Protestou contra ela, em casa; quis fazê-lo também em público, mas Natividade interveio a tempo. Aires pôs água na fervura, dizendo ao futuro bacharel:
        —Não vale a pena, moço, o que importa é que cada um tenha as suas ideias e se bata por elas, até que elas vençam. Agora que outros as interpretem mal é cousa que não deve afligir o autor.
        —Afligir, sim, senhor; pode parecer que é assim mesmo... Vou escrever um artigo a propósito de qualquer cousa, e não deixarei dúvidas...
Para quê? inquiriu Aires.
        —Não quero que suponham...
        —Mas quem duvida dos seu sentimentos?
        —Podem duvidar.
        —Ora, qual! Em todo caso, vá primeiro almoçar comigo um dia destes... Olhe, vá domingo, e seu irmão Pedro também. Seremos três à mesa, um almoço de rapazes. Beberemos certo vinho que me deu o ministro da Alemanha...
No domingo foram os dous ao Catete, menos pelo almoço que pelo anfitrião. Aires era amado dos dous; gostavam de ouvi-lo, de interrogá-lo, pediam-lhe anedotas políticas de outro tempo, descrição de festas, notícias de sociedade.
        —Vivam os meus dous jovens, disse o conselheiro, vivam os meus dous jovens que não esqueceram o amigo velho. Papai como está? E mamãe?
        —Estão bons, disse Pedro.
Paulo acrescentou que ambos lhe mandavam lembranças.
        —E tia Perpétua?
        —Também está boa, disse Paulo.
        —Sempre com a homeopatia e as suas histórias do Paraguai, acrescentou Pedro.
Pedro estava alegre, Paulo preocupado. Depois das primeiras saudações e notícias, Aires notou essa diferença, e achou que era bom para tirar a monotonia da semelhança — mas, enfim, não queria caras fechadas, e indagou do estudante de Direito o que é que ele tinha.
        —Nada.
        —Não pode ser; acho-lhe um ar meio sorumbático. Pois eu acordei disposto a rir, e desejo que ambos riam comigo.
Paulo rosnou uma palavra que nenhum deles entendeu e sacou do bolso um maço de folhas de papel. Era um artigo...
        —Um artigo?
        —Um artigo em que tiro todas as dúvidas a meu respeito, e peço ao senhor que me ouça, é pequeno. Escrevi-o a noite passada.
Aires propôs ouvi-lo depois do almoço, mas o rapaz pediu que fosse logo, e Pedro concordou com este alvitre, alegando que, sobre o almoço, podia perturbar a digestão, como ruim droga que devia ser. naturalmente. Aires meteu o caso à bulha e aceitou ouvir o artigo.
        —É pequeno, sete tiras.
        —Letra miúda?
        —Não, senhor; assim, assim.
Paulo leu o artigo. Tinha por epígrafe isto de Amós: "Ouvi esta palavra, vacas gordas que estais no monte de Samaria..." As vacas gordas eram o pessoal do regímen, explicou Paulo. Não atacava o imperador, por atenção à mãe, mas com o princípio e o pessoal era violento e áspero. Aires sentiu-lhe aquilo que, em tempo, se chamou "a bossa da combatividade". Quando Paulo acabou, Pedro disse em ar de mofa:
        —Conheço tudo isso, são ideias paulistas.
        —As tuas são ideias coloniais, replicou Paulo.
Deste introito podiam nascer piores palavras, mas felizmente um criado chegou à porta anunciando que o almoço estava na mesa. Aires ergueu-se e disse que à mesa daria a sua opinião.
        —Primeiro o almoço, tanto mais que temos um salmão, cousa especial! Vamos a ele.
Aires queria cumprir deveras o ofício que aceitara de Natividade. Quem sabe se a ideia de pai espiritual dos gêmeos, pai de desejo somente, pai que não foi, que teria sido, não lhe dava uma afeição particular e um dever mais alto que o de simples amigo? Nem é fora de propósito que ele buscasse somente matéria nova para as páginas nuas de seu Memorial.
Ao almoço, ainda se falou do artigo, Paulo com amor, Pedro com desdém, Aires sem uma nem outra cousa. O almoço ia fazendo o seu ofício. Aires estudava os dous rapazes e suas opiniões. Talvez estas não passassem de uma erupção de pele da idade. E sorria, fazia-os comer e beber, chegou a falar de moças, mas aqui os rapazes, vexados e respeitosos, não acompanharam o ex-ministro. A política veio morrendo. Na verdade, Paulo ainda se declarou capaz de derribar a monarquia com dez homens, e Pedro de extirpar o gérmen republicano com um decreto. Mas o ex-ministro, sem mais decreto que uma caçarola, nem mais homens que o seu cozinheiro, envolveu os dous regimes no mesmo salmão delicioso.

XLV
Musa, canta...

No fim do almoço, Aires deu-lhes uma citação de Homero, aliás duas, uma para cada um, dizendo-lhes que o velho poeta os cantara separadamente, Paulo no começo da llíada:
        —"Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu, cólera funesta aos gregos, que precipitou à estancia de Plutão tantas almas válidas de heróis, entregues os corpos às aves e aos cães..."
Pedro estava no começo da Odisseia:
        —"Musa, canta aquele herói astuto, que errou por tantos tempos, depois de destruída a santa Ílion..."
Era um modo de definir o caráter de ambos, e nenhum deles levou a mal a aplicação. Ao contrário, a citação poética valia por um diploma particular. O fato é que ambos sorriam de fé, de aceitação, de agradecimento, sem que achassem uma palavra ou sílaba com que desmentissem o adequado dos versos. Que ele, o conselheiro, depois de os citar em prosa nossa, repetiu-os no próprio texto grego e os dous gêmeos sentiram-se ainda mais épicos, tão certo é que traduções não valem originais. O que eles fizeram foi dar um sentido deprimente ao que era aplicável ao irmão:
        —Tem razão, Sr. conselheiro. — disse Paulo, — Pedro é um velhaco...


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