Não
lhe atribuam todas essas ideias. Pensava assim, como se falasse alto,
à mesa ou na sala de alguém. Era um processo de crítica mansa e
delicada, tão convencida em aparência, que algum ouvinte, à cata
de ideias, acabava por lhe apanhar uma ou duas... ia a descer pela
Rua Sete de Setembro, quando a lembrança da vozeria trouxe a de
outra, maior e mais remota.
Essa outra vozeria maior e mais remota
não caberia aqui, se não fosse a necessidade de explicar o gesto
repentino com que Aires parou na calçada. Parou, tornou a si e
continuou a andar com os olhos no chão e a alma em Cartacas. Foi em
Caracas, onde ele servira na qualidade de adido de legação. Estava
em casa, de palestra com uma atriz da moda, pessoa chistosa e
garrida. De repente, ouviram um clamor grande, vozes tumultuosas,
vibrantes, crescentes...
—Que rumor é este, Carmen?
perguntou ele entre duas carícias.
—Não se assuste, amigo meu; é o
governo que cai.
—Mas eu ouço aclamações...
—Então é o governo que sobe. Não
se assuste. Amanhã é tempo de ir cumprimentá-lo.
Aires deixou-se ir rio abaixo daquela
memória velha, que lhe surdia agora do alarido de cinquenta ou
sessenta pessoas. Essa espécie de lembranças tinha mais efeito nele
que outras. Recompôs a hora, o lugar e a pessoa da sevilhana. Cármen
era de Sevilha. O ex-rapaz ainda agora recordava a cantiga popular
que lhe ouvia, à despedida depois de retificar as ligas, compor as
saias, e cravar o pente no cabelo, — no momento em que ia deitar a
mantilha, meneando o corpo com graça:
Tienen
las sevillanas,
En
la mantilla,
Un
letrero que disse:
¡Viva
Sevilla!
Não
posso dar a toada, mas Aires ainda a trazia de cor, e vinha a
repeti-la consigo, vagarosamente, como ia andando. Outrossim,
meditava na ausência de vocação diplomática. A ascensão de um
governo, — de um regímen que fosse, — com as suas ideias novas,
os seus homens frescos, leis e aclamações, valia menos para ele que
o riso da jovem comediante. Onde iria ela? A sombra da moça varreu
tudo o mais, a rua, a gente, o gatuno, para ficar só diante do velho
Aires, dando aos quadris e cantarolando a trova andaluza:
Tienen
las sevillanas,
En
la mantilla...
XLI
Caso do burro
Caso do burro
Se
Aires obedecesse ao seu gosto, e eu a ele, nem ele continuaria a
andar, nem eu começaria este capítulo; ficaríamos no outro, sem
nunca mais acabá-lo. Mas não há na memória que dure, se outro
negócio mais forte puxa pela atenção, e um simples burro fez
desaparecer Cármen e a sua trova.
Foi
o caso que uma carroça estava parada, ao pé da Travessa de S.
Francisco, sem deixar passar um carro, e o carroceiro dava muita
pancada no burro da carroça. Vulgar embora, este espetáculo fez
parar o nosso Aires, não menos condoído do asno do homem. A força
despendida por este era grande, porque o asno ruminava se devia ou
não sair do lugar; mas, não obstante esta superioridade, apanhava
que era o diabo. Já havia algumas pessoas paradas, mirando. Cinco ou
seis minutos durou esta situação — finalmente o burro preferiu a
marcha à pancada, tirou a carroça do lugar e foi andando.
Nos
olhos redondos do animal viu Aires uma expressão profunda de ironia
e paciência. Pareceu-lhe o gesto largo de espírito invencível.
Depois leu neles este monólogo; "Anda, patrão, atulha a
carroça de carga para ganhar o capim de que me alimentas. Vive de pé
no chão para comprar as minhas ferraduras. Nem por isso me impedirás
que te chame um nome feio, mas eu não te chamo nada; ficas sendo
sempre o meu querido patrão. Enquanto te esfalfas em ganhar a vida,
eu vou pensando que o teu domínio não vale muito, uma vez que me
não tiras a liberdade de teimar..."
—Vê-se, quase que se lhe ouve a
reflexão, notou Aires consigo.
Depois
riu de si para si, e foi andando. Inventara tanta cousa no serviço
diplomático, que talvez inventasse o monólogo do burro. Assim foi;
não lhe leu nada nos olhos, a não ser a ironia e a paciência, mas
não se pôde ter que lhes não desse uma forma de palavra, com as
suas regras de sintaxe. A própria ironia estava acaso na retina
dele. O olho do homem serve de fotografia ao invisível, como o
ouvido serve de eco ao silêncio. Tudo é que o dono tenha um lampejo
de imaginação para ajudar a memória a esquecer Caracas e Cármen,
os seus beijos e experiência política.
XLII
Uma hipótese
Uma hipótese
Visões e reminiscências iam assim
comendo o tempo e o espaço ao conselheiro, a ponto de lhe fazerem
esquecer o pedido de Natividade; mas não o esqueceu de todo, e as
palavras trocadas há pouco surdiam-lhe das pedras da rua. Considerou
que não perdia muito em estudar os rapazes. Chegou a apanhar uma
hipótese, espécie de andorinha, que avoaça entre árvores, abaixo
e acima, pousa aqui, pousa ali, arranca de novo um surto e toda se
despeja em movimentos. Tal foi a hipótese vaga e colorida, a saber,
que se os gêmeos tivessem nascido dele talvez não divergissem tanto
nem nada, graças ao equilíbrio do seu espírito. A alma do velho
entrou a ramalhar não sei que desejos retrospectivos, e a rever essa
hipótese, outra Caracas, outra Cármen, ele pai, estes meninos seus,
toda a andorinha que se dispersava num farfalhar calado de gestos.
Natividade
é que não teve distrações de espécie alguma. Toda ela estava nos
filhos, e agora especialmente na carta e no discurso. Começou por
não dar resposta às efusões políticas de Paulo; foi um dos
conselhos do conselheiro. Quando o filho tornou pelas férias tinha
esquecido a carta que escrevera.
O discurso é que ele não esqueceu,
mas quem é que esquece os discursos que faz? Se são bons, a memória
os grava em bronze; se ruins, deixam tal ou qual amargor que dura
muito. O melhor dos remédios, no segundo caso, é supô-los
excelentes, e, se a razão não aceita esta imaginação, consultar
pessoas que a aceitem, e crer nelas. A opinião é um velho óleo
incorruptível.
Paulo tinha talento. O discurso
daquele dia podia pecar aqui ou ali por alguma ênfase, e uma ou
outra ideia vulgar e exausta. Tinha talento Paulo. Em suma, o
discurso era bom. Santos achou-o excelente, leu-o aos amigos e
resolveu transcrevê-lo nos jornais. Natividade não se opôs, mas
entendia que algumas palavras deviam ser cortadas.
—Cortadas, por quê? perguntou
Santos, e ficou esperando a resposta.
—Pois você não vê, Agostinho;
estas palavras têm sentido republicano, explicou ela relendo a frase
que a afligira.
Santos ouviu-as ler, leu-as para si, e
não deixou de lhe achar razão. Entretanto, não havia de as
suprimir.
—Pois não se transcreve o discurso.
—Ah! isso não! O discurso é
magnífico, e não há de morrer em S. Paulo; é preciso que a Corte
o leia, e as províncias também, e até não se me daria fazê-lo
traduzir em francês. Em francês, pode ser que fique ainda melhor.
—Mas, Agostinho, isto pode fazer mal
à carreira do rapaz; o imperador pode ser que não goste...
Pedro
que assistia desde alguns instantes ao debate, interveio docemente
para dizer que os receios da mãe não tinham base; era bom pôr a
frase toda, e, a rigor, não diferia muito do que os liberais diziam
em 1848.
—Um monarquista liberal pode muito
bem assinar esse trecho concluiu ele depois de reter as palavras do
irmão.
—Justamente! assentiu o pai.
Natividade,
que em tudo via a inimizade dos gêmeos, suspeitou que o intuito de
Pedro fosse justamente comprometer Paulo. Olhou para ele a ver se lhe
descobria essa intenção torcida, mas a cara do filho tinha então o
aspecto do entusiasmo. Pedro lia trechos do discurso, acentuando as
belezas, repetindo as frases mais novas, cantando as mais redondas,
revolvendo-as na boca, tudo com tão boa sombra que a mãe perdeu a
suspeita, e a impressão do discurso foi resolvida. Também se tirou
uma edição em folheto, e o pai mandou encadernar ricamente sete
exemplares, que levou aos ministros, e um ainda mais rico para a
Regente.
—Você diga-lhe, aconselhou
Natividade, que o nosso Paulo é liberal ardente...
—Liberal de 1848, completou Santos
lembrando as palavras de Pedro.
Santos
cumpriu à risca. A entrega se fez naturalmente, e, no palácio
Isabel, a definição do "liberal de 1848" saiu mais viva
que as outras palavras, ou para diminuir o cheiro revolucionário da
frase condenada pela mulher, ou porque trazia valor histórico.
Quando ele voltou a casa, a primeira cousa que lhe disse foi que a
Regente perguntara por ela, mas apesar de lisonjeada com a lembrança,
Natividade quis saber da impressão que lhe fizera o discurso, se já
o lera.
—Parece que foi boa. Disse-me que já
havia lido o discurso. Nem por isso deixei de lhe dizer que os
sentimentos de Paulo eram bons; que, se lhe notávamos certo ardor,
compreendíamos sempre que eles eram os de um liberal de 1848...
—Papai disse isso? perguntou Pedro.
—Por que não, se é verdade? Paulo
é o que se pode chamar um liberal de 1848, repetiu Santos querendo
convencer o filho.
XLIV
O Salmo
O Salmo
Pelas
férias é que Paulo soube da interpretação que o pai dera à
Regente daquele trecho do discurso. Protestou contra ela, em casa;
quis fazê-lo também em público, mas Natividade interveio a tempo.
Aires pôs água na fervura, dizendo ao futuro bacharel:
—Não vale a pena, moço, o que
importa é que cada um tenha as suas ideias e se bata por elas, até
que elas vençam. Agora que outros as interpretem mal é cousa que
não deve afligir o autor.
—Afligir,
sim, senhor; pode parecer que é assim mesmo... Vou escrever um
artigo a propósito de qualquer cousa, e não deixarei dúvidas...
—Mas quem duvida dos seu
sentimentos?
—Ora, qual! Em todo caso, vá
primeiro almoçar comigo um dia destes... Olhe, vá domingo, e seu
irmão Pedro também. Seremos três à mesa, um almoço de rapazes.
Beberemos certo vinho que me deu o ministro da Alemanha...
No domingo foram os dous ao Catete,
menos pelo almoço que pelo anfitrião. Aires era amado dos dous;
gostavam de ouvi-lo, de interrogá-lo, pediam-lhe anedotas políticas
de outro tempo, descrição de festas, notícias de sociedade.
—Vivam os meus dous jovens, disse o
conselheiro, vivam os meus dous jovens que não esqueceram o amigo
velho. Papai como está? E mamãe?
—Estão bons, disse Pedro.
Paulo
acrescentou que ambos lhe mandavam lembranças.
—E tia Perpétua?
—Também está boa, disse Paulo.
Pedro
estava alegre, Paulo preocupado. Depois das primeiras saudações e
notícias, Aires notou essa diferença, e achou que era bom para
tirar a monotonia da semelhança — mas, enfim, não queria caras
fechadas, e indagou do estudante de Direito o que é que ele tinha.
—Nada.
—Não pode ser; acho-lhe um ar meio
sorumbático. Pois eu acordei disposto a rir, e desejo que ambos riam
comigo.
Paulo
rosnou uma palavra que nenhum deles entendeu e sacou do bolso um maço
de folhas de papel. Era um artigo...
—Um
artigo em que tiro todas as dúvidas a meu respeito, e peço ao
senhor que me ouça, é pequeno. Escrevi-o a noite passada.
Aires
propôs ouvi-lo depois do almoço, mas o rapaz pediu que fosse logo,
e Pedro concordou com este alvitre, alegando que, sobre o almoço,
podia perturbar a digestão, como ruim droga que devia ser.
naturalmente. Aires meteu o caso à bulha e aceitou ouvir o artigo.
—É pequeno, sete tiras.
—Letra miúda?
—Não, senhor; assim, assim.
Paulo
leu o artigo. Tinha por epígrafe isto de Amós: "Ouvi esta
palavra, vacas gordas que estais no monte de Samaria..." As
vacas gordas eram o pessoal do regímen, explicou Paulo. Não atacava
o imperador, por atenção à mãe, mas com o princípio e o pessoal
era violento e áspero. Aires sentiu-lhe aquilo que, em tempo, se
chamou "a bossa da combatividade". Quando Paulo acabou,
Pedro disse em ar de mofa:
—Conheço tudo isso, são ideias
paulistas.
—As tuas são ideias coloniais,
replicou Paulo.
Deste
introito podiam nascer piores palavras, mas felizmente um criado
chegou à porta anunciando que o almoço estava na mesa. Aires
ergueu-se e disse que à mesa daria a sua opinião.
—Primeiro o almoço, tanto mais que
temos um salmão, cousa especial! Vamos a ele.
Aires
queria cumprir deveras o ofício que aceitara de Natividade. Quem
sabe se a ideia de pai espiritual dos gêmeos, pai de desejo
somente, pai que não foi, que teria sido, não lhe dava uma afeição
particular e um dever mais alto que o de simples amigo? Nem é fora
de propósito que ele buscasse somente matéria nova para as páginas
nuas de seu Memorial.
Ao
almoço, ainda se falou do artigo, Paulo com amor, Pedro com desdém,
Aires sem uma nem outra cousa. O almoço ia fazendo o seu ofício.
Aires estudava os dous rapazes e suas opiniões. Talvez estas não
passassem de uma erupção de pele da idade. E sorria, fazia-os comer
e beber, chegou a falar de moças, mas aqui os rapazes, vexados e
respeitosos, não acompanharam o ex-ministro. A política veio
morrendo. Na verdade, Paulo ainda se declarou capaz de derribar a
monarquia com dez homens, e Pedro de extirpar o gérmen republicano
com um decreto. Mas o ex-ministro, sem mais decreto que uma caçarola,
nem mais homens que o seu cozinheiro, envolveu os dous regimes no
mesmo salmão delicioso.
XLV
Musa, canta...
Musa, canta...
No
fim do almoço, Aires deu-lhes uma citação de Homero, aliás duas,
uma para cada um, dizendo-lhes que o velho poeta os cantara
separadamente, Paulo no começo da llíada:
—"Musa, canta a cólera de
Aquiles, filho de Peleu, cólera funesta aos gregos, que precipitou à
estancia de Plutão tantas almas válidas de heróis, entregues os
corpos às aves e aos cães..."
Pedro
estava no começo da Odisseia:
—"Musa, canta aquele herói
astuto, que errou por tantos tempos, depois de destruída a santa
Ílion..."
Era um modo de definir o caráter de
ambos, e nenhum deles levou a mal a aplicação. Ao contrário, a
citação poética valia por um diploma particular. O fato é que
ambos sorriam de fé, de aceitação, de agradecimento, sem que
achassem uma palavra ou sílaba com que desmentissem o adequado dos
versos. Que ele, o conselheiro, depois de os citar em prosa nossa,
repetiu-os no próprio texto grego e os dous gêmeos sentiram-se
ainda mais épicos, tão certo é que traduções não valem
originais. O que eles fizeram foi dar um sentido deprimente ao que
era aplicável ao irmão:
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