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domingo, 23 de fevereiro de 2014

A Escrava Isaura - Bernardo Guimarães [parte 14]

No mesmo momento entrava na sala o baleeiro de Álvaro, e
anunciava-lhe que novas pessoas o procuravam.
- Oh, meu Deus!... que será isto hoje!... serão ainda os malditos
esbirros?... - refletiu Álvaro, e depois dirigindo-se a Isaura:
- É prudente que te retires, minha amiga, - disse-lhe; ninguém
sabe o que será e não convém que te vejam.
- Ah! que eu não sirva senão para perturbar-lhe o sossego! -
murmurou Isaura retirando-se.
Um momento depois Alvaro viu entrar na sala um elegante e belo
mancebo, trajado com todo o primor, e afetando as mais polidas e
aristocráticas maneiras; mas apesar de sua beleza, tinha ele na
fisionomia, como Lusbel, um não seu quê de torvo e sinistro, e um olhar sombrio, que
incutia pavor e repulsão.
- Este por certo não é um esbirro, - pensou Álvaro, e indicando
uma cadeira ao recém-chegado: - Queira sentar-se, - disse-lhe,
e - tenha a bondade de dizer o que pretende deste seu criado.
- Desculpe-me, - respondeu-lhe o cavalheiro, passeando um
olhar escrutador em roda da sala: - não é a V. S.ª que eu desejava
falar, mas sim ao morador desta casa ou à sua filha.
Álvaro estremeceu. Estava claro que aquele mancebo, se bem que
nenhuma aparência tivesse de um esbirro, andava à pista de Isaura.
Todavia no intuito de verificar se era fundada a sua apreensão, antes de
chamar os donos da casa quis sondar as intenções do visitante.
- Não obstante, - respondeu ele, como estou autorizado pelos
donos da casa a tratar de todos os seus negócios, pode V. S.ª dirigir-se
a mim, e dizer o que deles pretende.

- Sim, senhor; não ponho a menor dúvida, pois o que pretendo
não é nenhum mistério. Constando-me com certeza, que aqui se acha
acoutada uma escrava fugida, por nome Isaura, venho apreendê-la...
- Nesse caso deve entender-se comigo, que sou o depositário
dessa escrava.
- Ah!.. pelo que vejo, V. S.ª é o senhor Álvaro!...
- Um criado de V. S.ª.
- Bem; muito estimo encontrá-lo por aqui; pois saiba também
que eu sou Leôncio, o legítimo senhor dessa escrava.
Leôncio. ... o senhor de Isaura! Álvaro ficou como esmagado sob o
peso desta fulminante e tremenda revelação. Mudo e atônito, contemplou
por alguns instantes aquele homem de sombria catadura, que se
lhe apresentava aos olhos, implacável e sinistro como Lúcifer, prestes
a empolgar a vítima, que deseja arrastar aos infernos. Suor frio porejoulhe
pela testa, e a mais pungente angústia apertou-lhe o coração.
- É ele!... é o próprio algoz!... ai, pobre Isaura!... - foi este o eco
lúgubre, que remurmurou-lhe dentro d'alma enregelada pelo desalento.

Capítulo 18
O leitor provavelmente não terá ficado menos atônito do que ficou
Álvaro, com o imprevisto aparecimento de Leôncio no Recife, e indo
bater certo na casa em que se achava refugiada a sua escrava.
É preciso, portanto, explicar-lhe como isso aconteceu, para que
não pense que foi por algum milagre.
Leôncio, depois de ter escrito e entregado no correio as duas
cartas que conhecemos, uma dirigida a Álvaro, outra a Martinho, nem por isso
ficou mais tranquilo. Devorava-lhe a alma uma inquietação mortal, um
ciúme desesperador. A notícia de que Isaura se achava em poder de um
belo e rico mancebo, que a amava loucamente, era para ele um suplício
insuportável, um cancro, que lhe corroía as entranhas, e o fazia
estrebuchar em ânsias de desespero, avivando-lhe cada vez mais a paixão furiosa que
concebera por sua escrava. Achava-se ele na corte, para onde, logo que
teve notícias de Isaura, se dirigia imediatamente, a fim de se achar em um
centro, de onde pudesse tomar medidas prontas e enérgicas para a captura da
mesma.
Tendo escrito e entregue as cartas na véspera da partida do vapor pela
manhã, levou o resto do dia a cismar. A terrível ansiedade em que se achava não
lhe permitia esperar a resposta e o resultado daquelas cartas, sendo muito
mais morosas e espaçadas do que hoje as viagens dos paquetes naquela época,
em que apenas se havia inaugurado a navegação a vapor pelas costas do
Brasil. Demais, ocorria-lhe frequentemente ao espírito o anexim popular
- quem quer vai, quem não quer manda. - Não podia fiar-se na diligência
e boa vontade de pessoas desconhecidas, que talvez não pudessem
lutar vantajosamente contra a influência de Alvaro, o qual, segundo lho
pintavam, era um potentado em sua terra. O ciúme e a vingança não
gostam de confiar a olhos e mãos alheias a execução de seus desígnios.
- É indispensável que eu mesmo vá, - pensou Leôncio, e firme
nesta resolução foi ter com o ministro da justiça, com quem cultivava
relações de amizade, e pediu-lhe uma carta de recomendação, - o que
equivale a uma ordem, - ao chefe de polícia de Pernambuco, para
que o auxiliasse eficazmente para o descobrimento e captura de uma
escrava. Já de antemão Leôncio também se havia munido de uma
precatória e mandado de prisão contra Miguel, a quem havia feito
processar e pronunciar como ladrão e acoutador de sua escrava. O
sanhudo paxá de nada se esquecia para tornar completa a sua vingança.
No outro dia Leôncio seguia para o Norte no mesmo vapor que
conduzia suas cartas.
Estas, porém, chegaram ao seu destino algumas horas antes que o
seu autor desembarcasse no Recife.
Leôncio, apenas pôs pé em terra, dirigiu-se ao chefe de policia, e
entregando-lhe a carta do ministro inteirou-o de sua pretensão.
Tenho a informar-lhe, senhor Leôncio, - respondeu-lhe o
chefe - que haverá talvez pouco mais de duas horas que daqui saiu
uma pessoa autorizada por V. S.a para o mesmo fim de apreender essa
escrava, e ainda há pouco aqui chegou de volta declarando que tinha-se
enganado, e que acabava de reconhecer que a pessoa, de quem
desconfiava, não é e nem pode ser a escrava que fugiu a V. S.a.
- Um certo Martinho, não, senhor doutor?...
- Justamente.
- Deveras!... que me diz, senhor doutor?
- A verdade; ainda aí estão à porta o oficial de justiça e os
guardas, que o acompanharam.
- De maneira que terei perdido o meu tempo e a minha viagem!...
oh! não, não; isto não é possível. Creia-me, senhor doutor, aqui
há patranha... o tal senhor Álvaro dizem que é muito rico...
- E o tal Martinho um valdevinos capaz de todas as infâmias.
Tudo pode ser; mas a V. S.ª como interessado, compete averiguar essas
coisas.
- E é o que venho disposto a fazer. Irei lá eu mesmo verificar o
negócio por meus próprios olhos, e já, se for possível.
- Quando quiser. Ali estão o oficial de justiça e os guardas, que
ainda agora de lá vieram, e ninguém melhor do que eles pode guiar a
V. S.ª e efetuar a captura, caso reconheça ser a sua própria escrava.
- Também me é preciso que V. S.ª ponha o - cumpra-se -
nesta precatória - disse Leôncio apresentando a precatória contra Miguel -
é necessário punir o patife que teve a audácia de desencaminhar e
roubar-me a escrava.
O chefe satisfez sem hesitar ao pedido de Leôncio, que
acompanhado da pequena escolta, que fez subir ao seu carro, no mesmo momento se
dirigiu à casa de Isaura, onde o deixamos em face de Álvaro.
A situação deste não era só crítica; era desesperada. O seu
antagonista ali estava armado de seu incontestável direito para
humilhá-lo, esmagá-lo, e o que mais é, despedaçar-lhe a alma, roubando-lhe a
amante adorada, o ídolo de seu coração, que ia-lhe ser arrancada dos
braços para ser prostituída ao amor brutal de um senhor devasso, se
não sacrificada ao seu furor. Não tinha remédio senão curvar-se sem
murmurar ao golpe do destino, e ver de braços cruzados metida em
ferros, e entregue ao azorrague do algoz a nobre e angélica criatura,
que, única entre tantas belezas, lhe fizera palpitar o coração
em emoções do mais extremoso e puro amor.
Deplorável contingência, a que somos arrastados em consequência
de uma instituição absurda e desumana!
O devasso, o libertino, o algoz, apresenta-se altivo e arrogante,
tendo a seu favor a lei, e a autoridade, o direito e a força, lança a garra
sobre a presa, que é objeto de sua cobiça ou de seu ódio, e pode frui-la
ou esmagá-la a seu talante, enquanto o homem de nobre coração, de
impulsos generosos, inerme perante a lei, aí fica suplantado, tolhido,
manietado sem poder estender o braço em socorro da inocente e nobre
vítima, que deseja proteger. Assim, por uma estranha aberração, vemos
a lei armando o vício, e decepando os braços à virtude.
Estava pois Álvaro em presença de Leôncio como o condenado em
presença do algoz. A mão da fatalidade o socalcava com todo o seu
peso esmagador, sem lhe deixar livre o mínimo movimento.
Vinha Leôncio ardendo em fúrias de raiva e de ciúme, e
prevalecendo-se de sua vantajosa posição, aproveitou a ocasião para
vingar-se de seu rival, não com a nobreza de cavalheiro, mas procurando
humilhá-lo à força de impropérios.
- Sei que há muito tempo, - disse Leôncio, continuando o diálogo
que deixamos interrompido no capítulo antecedente, - V. S.ª retêm essa
escrava em seu poder contra toda a justiça, iludindo as autoridades com falsas
alegações, que nunca poderá provar. Porém agora venho eu mesmo reclamá-la e
burlar os seus planos, e artifícios.
- Artifícios não, senhor. Protegi e protejo francamente uma escrava
contra as violências de um senhor, que quer tornar-se seu algoz; eis aí tudo.
- Ah!... agora é que sei que qualquer aí pode subtrair um escravo
ao domínio de seu senhor a pretexto de protegê-lo, e que cada qual
tem o direito de velar sobre o modo por que são tratados os escravos
alheios.
- V. S.a. está de disposição a escarnecer, e eu declaro-lhe que
nenhuma vontade tenho de escarnecer, nem de ser escarnecido.
Confesso-lhe que desejo muito a liberdade dessa escrava, tanto quanto
desejo a minha felicidade, e estou disposto a fazer todos os sacrifícios
possíveis para consegui-la. Já lhe ofereci dinheiro, e ainda ofereço.
Dou-lhe o que pedir... dou-lhe uma fortuna por essa escrava. Abra
preço...
- Não há dinheiro que a pague; nem todo o ouro do mundo,
porque não quero vendê-la.
- Mas isso é um capricho bárbaro, uma perversidade...
-Seja capricho da qualidade que V. S.ª quiser; porventura não
posso ter eu os meus caprichos, contanto que não ofenda direitos de
ninguém?... porventura V. S.ª não tem também o seu capricho de
querê-la para si?... mas o seu capricho ofende os meus direitos, e eis aí o
que não posso tolerar.
- Mas o meu capricho é nobre e benfazejo, e o seu é uma tirania,
para não dizer uma vilania. V. S.ª mancha a sua vida com uma nódoa
indelével conservando na escravidão essa mulher; cospe o desrespeito e
a injúria sobre o túmulo de sua santa mãe, que criou com tanta
delicadeza, educou com tanto esmero essa escrava, para torná-la digna da liberdade
que pretendia dar-lhe, e não para satisfazer aos caprichos de V. S.a. Ela por
certo lá do céu, onde está, o amaldiçoará, e o mundo inteiro a acompanhará na
maldição ao homem que retém no mais infamante cativeiro uma criatura cheia de
virtudes, prendas e beleza.
- Basta, senhor!.. agora fico também sabendo, que uma escrava,
só pelo fato de ser bonita e prendada, tem direitos à liberdade. Pique
também V. S.ª sabendo, que se minha mãe não criou essa rapariga
para satisfazer aos meus caprichos, muito menos para satisfazer aos de
V. S.ª a quem nunca conheceu nesta vida. Senhor Álvaro, se deseja ter
alguma linda escrava para sua amásia procure outra, compre-a, que a
respeito desta, pode perder toda a esperança.
- Senhor Leôncio, V. S.ª decerto esquece-se do lugar onde está,
e da pessoa com quem fala, e julga que se acha em sua fazenda falando
aos seus feitores ou a seus escravos. Advirto-lhe, para que mude
de linguagem.
- Basta, senhor; deixemo-nos de vás disputas, e nem eu vim aqui
para ser catequizado por V. S.ª. O que quero é a entrega da escrava e
nada mais. Não me obrigue a usar do meu direito levando-a à força.
Álvaro, desvairado por tão grosseiras e ferinas provocações,
perdeu de todo a prudência e sangue-frio.
Entendeu que para sair-se bem na terrível conjuntura em que se
achava, só havia um caminho, - matar o seu antagonista ou morrer-lhe às
mãos, - e cedendo a essas sugestões da cólera e do desespero, saltou da
cadeira em que estava, agarrou Leôncio pela gola e sacudindo-o com força:
- Algoz! - bradou espumando de raiva, - ai tens a tua escrava!
mas antes de levá-la, hás de responder pelos insultos que me tens
dirigido, ouviste?... ou acaso pensas que eu também sou teu escravo?..
- Está louco, homem! - disse Leôncio amedrontado. - As leis
do nosso país não permitem o duelo.
- Que me importam as leis!... para o homem de brio a honra é
superior às leis, e se não és um covarde, como penso...
Socorro, que querem assassinar-me, - bradou Leôncio
desembaraçando-se das mãos de Álvaro, e correndo para a porta.
- Infame! - rugiu Álvaro, cruzando os braços e rangendo os dentes
num sorrir de cólera e desdém...
No mesmo momento, atraídos pelo barulho, entravam na sala de
um lado Isaura e Miguel, do outro o oficial de justiça e os guardas.
Isaura estava com o ouvido aguçado, e do interior da casa
ouvira e compreendera tudo.
Viu que tudo estava perdido, e correu a atalhar o desatino, que
por amor dela Álvaro ia cometer.
- Aqui estou, senhor! - foram as únicas palavras que pronunciou
apresentando-se de braços cruzados diante de seu senhor.
- Ei-los ai; são estes! - exclamou Leôncio indicando aos guardas
Isaura e Miguel. Prendam-os!.. prendam-os!...
Vai-te, Isaura, vai-te, - murmurou Álvaro com voz trêmula e
sumida, achegando-se da cativa. - Não desanimes; eu não te
abandonarei.
Confia em Deus e em meu amor.
Uma hora depois Álvaro recebia em casa a visita de Martinho.
Vinha este mui ancho e lampeiro dar conta de sua comissão, e sôfrego por
embolsar a soma convencionada.
- Dez contos!... oh! - vinha ele pensando. - uma fortuna!
agora sim, posso eu viver independente!... Adeus, surrados bancos de
Academia!... adeus, livros sebosos, que tanto tempo andei folheando à
toa!... vou atirar-vos pela janela a fora; não preciso mais de vós: meu
futuro está feito. Em breve serei capitalista, banqueiro, comendador,
barão, e verão para quanto presto!...
E à força de multiplicar cálculos de usura e agiotagem, já Martinho
havia centuplicado aquela soma em sua imaginação.
- Meu caro senhor Álvaro, - veio logo dizendo sem mais
preâmbulos, - está tudo arranjado à medida de nossos desejos. Pode V. S.ª viver
tranquilo em companhia da gentil fugitiva, que daqui em diante ninguém mais o
importunará.
De feito o procedimento de V. S.ª nesta questão tem sido muito belo e
digno de elogios; é próprio de um coração grande e generoso como o de V. S.ª.
Não se dá maior desaforo! no cativeiro uma menina tão mimosa e tão
prendada!...
Agora aqui está a carta, que escrevo ao lorpa do sultãozinho. Prego-lhe
meia dúzia de carapetões, que o hão de desorientar completamente.
Assim falando, Martinho desdobrou a carta, e já começava a lê-la,
quando Álvaro impacientado o interrompeu.


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