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segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

O Diário de Anne Frank [penúltima parte]

Segunda-feira, 5 de Junho de 1944
Querida Kitty:
Outro acontecimento desagradável: nós, os Frank, zangamo-nos
com o Dussel, e por causa de uma coisa sem
importância - a distribuição da manteiga. O Dussel ficou
derrotado. Agora há grande amizade entre ele e a sra. van
Daan, uma espécie de "flirt" com beijinhos e sorrisos.
Ao Dussel fez-lhe mal a Primavera.
Roma foi tomada pelo Quinto Exército, sem devastações
nem bombardeamentos.
Pouca hortaliça, poucas batatas. Tempo mau. O estreito
de Galais e a costa francesa constantemente bombardeados.
Tua Anne.

Terça-feira, 6 de Junho de 1944
Querida Kitty:
"This is the day", disse ao meio-dia a rádio inglesa e
com razão! "This is the day". Começou a invasão! De
manhã, às oito horas, os ingleses noticiaram: bombardeamentos
pesados sobre Calais, Boulogne, Le Havre e Gherbourg
e, como de costume, sobre o estreito de Calais.
Mais: medidas de segurança para todos os habitantes
das zonas ocupadas. Todos os habitantes de uma zona que
abrange até trinta e cinco quilômetros da costa devem
preparar-se para bombardeamentos pesados. Se for possível,
os ingleses lançarão folhetos com uma hora de antecedência.
Segundo as notícias alemãs, tropas de paraquedistas
conseguiram lançar-se na costa francesa. A B. B. C. anuncia:
"A marinha alemã combate contra os barcos ingleses do
desembarque".
Discussões no anexo às nove horas, hora do pequeno
almoço :
- Será isto um desembarque de ensaio como aquele
de Dieppe, há dois anos?
às dez horas, emissão inglesa em alemão, holandês,
francês e outras línguas: "The invasion has begun!" Trata-se
portanto de uma invasão autêntica. Emissão inglesa às
onze horas, em alemão : discurso do comandante-chefe,
o general Dwight Eisenhower.
Emissão inglesa - língua inglesa-meio dia: "This is
the day". O general Eisenhower fala ao povo francês:
- Still fighting will come now. But after this the victory.
The year 1944 is the year of complete victory, good luck!
Emissão inglesa à uma hora: onze mil aviões voam
continuamente de um lado para o outro para desembarcar
tropas e lançar bombas atrás das linhas. Quatro mil barcos
e outras pequenas embarcações despejam, entre Cherbourg e Le Havre, sem interrupção, tropas e
material. Tropas
inglesas e americanas estão já a lutar àrduamente. Discursos
de Gerbrandy, do Primeiro-Ministro da Bélgica, do
rei Haakon da Noruega, de De Gaulle da França, do rei
da Inglaterra, sem esquecer, claro está, o de Churchill.
O anexo está como que em delírio. Será então verdade
que a libertação, há tanto ansiada, a tão discutida libertação, sempre está a aproximar-se? Não
será isto maravilhoso de mais, fantástico de mais para se tornar realidade? O ano de 1944 trará,
de fato, a vitória? Não o sabemos ainda, mas a esperança anima-nos, dá-nos nova coragem,
torna-nos fortes, pois precisamos de coragem para podermos
suportar o medo, as privações, o sofrimento; agora o
essencial é conservarmo-nos calmos e firmes. Mais do que
nunca, tenho de cerrar os dentes para não gritar. Agora
são a França, a Rússia, a Itália e também a Alemanha
que podem gritar de tanto sofrer, mas nós ainda não temos
esse direito!
Oh! Kitty, o mais maravilhoso disto tudo é que tenho
o pressentimento de que amigos estão a aproximar-se!
Os horríveis alemães oprimiram-nos e ameaçaram-nos
tanto tempo, que só o pensar, agora, que se aproximam
amigos, nos restitui a confiança. Agora não se trata só dos
judeus. Agora trata-se da Holanda e de toda a Europa.
A Margot diz que eu talvez já possa voltar à escola em
Setembro ou Outubro.
Tua Anne.
P. S. Hei de informar-te sempre das últimas novidades:
Durante a noite e logo de manhã cedo, desembarcaram
bonecos de palha atrás das linhas alemãs, que explodiram
logo que tocaram o chão. Desembarcaram também muitos
paraquedistas; estavam pintados de preto para se confundirem
com a escuridão da noite. De manhã desembarcaram
dos primeiros navios, depois de a costa ter sido bombardeada
durante a noite com cinco milhões de quilos de
bombas. Vinte mil aviões estiveram hoje em ação. Tudo
vai bem, embora o tempo esteja mau. O exército e o povo
têm "one will and one hope".
Tua Anne.

Sexta-feira, 9 de Junho de 1944
Querida Kitty:
A invasão corre às mil maravilhas. Os aliados tomaram
Bayeux, uma aldeia na costa francesa, e lutam agora por
Calais. Compreende-se bem que querem cercar a península
onde fica Cherbourg. Todas as noites os correspondentes
de guerra relatam as dificuldades, a coragem e o entusiasmo
do exército. Também ouvimos falar os feridos que
tiveram de voltar para a Inglaterra. Apesar do mau tempo,
os aviões levantam sempre voo. Pela B. B. c. ficamos a
saber que Churchill quis tomar parte na invasão, mas que
o general Eisenhower e os outros generais o aconselharam
a desistir dessa ideia. Imagina tu a coragem daquele homem
que já tem setenta anos de idade.
Aqui já não reina tanta excitação; mas esperamos todos
que a guerra acabe finalmente no fim deste ano. E já não
será sem tempo! As lamentações da sra. van Daan estão-se
a tornar insuportáveis. Agora que já não nos pode massacrar
com a invasão, queixa-se todo o dia do mau tempo.
Apetecia-me metê-la num balde de água fria.
Tua Anne.

Terça-feira, 13 de Junho de 1944
Querida Kitty:
O meu aniversário passou mais uma vez. Tenho agora
quinze anos. Recebi muitas coisas :
A História de Arte, de Springer, em cinco volumes; um
jogo de roupas interiores; dois cintos; um lenço; dois
frascos de yoghurt; um frasco de compota; um bolo; um
livro de Botânica, do pai e da mãe. A Margot deu-me uma
pulseira dupla, os van Daans um livro, o Dussel ervilhas
de cheiro; a Miep e a Elli rebuçados e cadernos. E ainda
a melhor surpresa: o livro Maria Teresa e três fatias de
queijo autêntico, do sr. Kraler. Do Peter recebi um belo
ramo de begônias; o pobre do rapaz andou a ver se lhe
conseguiam arranjar coisa diferente, mas não foi possível.
A invasão continua em pleno progresso, apesar do mau
tempo, das ventanias medonhas e das chuvas torrenciais
sobre o mar.
Churchill, Smuts, Eisenhower e Arnold visitaram ontem
as aldeias francesas que foram conquistadas e libertadas
pelos ingleses. Churchill esteve num torpedeiro que bombardeou
a costa. Este homem, como tantos outros, parece
não ter medo. Que coisa tão invejável!
Daqui do anexo não podemos sondar o moral dos holandeses.
Sem dúvida as pessoas estão contentes por a "indolente"
Inglaterra sempre deitar a mão. Todos aqueles
holandeses que, embora odiando os alemães, continuam a
olhar de cima para os ingleses e a tratar a Inglaterra de
cobarde e o seu governo de "regime dos homens velhos",
têm de ser sacudidos com força. Talvez os seus cérebros
desarranjados voltem assim a ter todas as suas circunvoluções
no sítio.
Tua Anne.

Quarta-feira, 14 de Junho de 1944
Querida Kitty:
Muitos desejos, muitos pensamentos, muitas acusações
e censuras se confundem na minha cabeça como fantasmas.
Podes crer, não sou tão presunçosa como algumas pessoas
julgam; conheço melhor os meus inúmeros defeitos do que
qualquer outra pessoa. Só há uma diferença: é que eu sei,
além disso, que tenho vontade de me corrigir e que, em
certa medida, já me tenho corrigido. Muitas vezes pergunto-me porque é que tanta gente me
acha presunçosa e pouco modesta. Sou assim tão presunçosa? É defeito só
meu, ou não serão os outros também presunçosos? Esta
última frase soa maluquinha, mas não a risco porque não; é tão maluquinha como parece. A sra. van Daan, a minha acusadora número um, é conhecida como pouco inteligente, vamos mesmo dizê-lo com toda a franqueza: como "estúpida". E as pessoas estúpidas, de uma maneira geral,
não perdoam que os outros saibam mais alguma coisa do que elas.
A sra. van Daan acha-me estúpida por eu não ser tão lenta de compreensão como ela; acha-me pouco modesta por ela o ser ainda menos; acha os meus vestidos curtos
de mais por os dela serem ainda mais curtos. E, afinal,
acha-me impertinente porque ela mete-se, muito mais do
que eu, a tomar parte em discussões sobre assuntos de que
não percebe patavina. Um dos ditos de que mais gosto
é este : "Em cada censura há uma ponta de verdade".
Por isso vou confessar que sou, por vezes, impertinente.
Ora, o que tenho de mais incômodo no meu caráter é
ser eu a pessoa que mais me critica e censura. Como a
mãe ajunta a isto a sua porção de conselhos, o montão dos
sermões torna-se tão indescritivelmente alto que eu,
desesperada por não conseguir dominá-lo, me torno insuportável
e malcriada, e a isso segue-se, como é natural, a minha
velha queixa: "Ninguém me compreende". Estas palavras
estão ancoradas em mim e, mesmo que possa parecer
incrível, também nela há uma ponta de verdade. Por vezes
torturo-me com tantas acusações contra mim própria
que seria preciso uma voz reconfortante para me ajudar
a repor tudo na medida certa e sã e que também se preocupasse
um pouco com a minha vida interior. Mas, infelizmente,
procurei muito e nunca encontrei. Sei que pensas
agora no Peter, não é verdade, Kit? Sim, o Peter ama-me não como um apaixonado mas como
um amigo, a sua dedicação
cresce de dia para dia, mas não sei explicar esse
mistério que nos separa. Por vezes penso que o meu violento
desejo de estar com ele é exagerado. Mas a verdade
é que eu, depois de não ter estado lá em cima durante
dois dias, sinto tão grandes saudades como nunca tive.
O Peter é gentil e bom mas não posso negar que muita
coisa nele me causa decepção. Não gosto da maneira como
ele reprova a religião; as suas conversas sobre comidas e
coisas semelhantes não me agradam. Mas tenho a certeza
de que, conforme combinamos, nunca nos havemos de
zangar. O Peter é pacífico, tem bom gênio e cede fàcilmente.
Aceita melhor as minhas observações do que as
da mãe e faz esforços enormes por manter a ordem nas suas
coisas. Mas porque é que não se abre comigo, porque é
que não me deixa tocar o seu íntimo? A sua natureza é
muito mais reservada do que a minha, bem sei-sei-o por
experiência - mas até as pessoas mais reservadas têm
o desejo irresistível de se confiar a alguém, mesmo que
seja uma única vez. O Peter e eu passamos os dois anos
mais importantes para a nossa formação aqui no anexo;
falamos muitas vezes sobre o passado, o presente e o futuro,
mas, como eu já disse, sinto a falta de qualquer coisa de
mais autêntico; e eu tenho a certeza de que essa coisa existe.
Tua Anne.

Quinta-feira, 15 de Junho de 1944
Querida Kitty:
Terei eu agora tanto interesse pela natureza por não
poder, há tanto tempo, sair deste buraco? Ainda me
lembro de que antigamente não me fascinavam os pássaros
a cantar, o céu azul e brilhante, as flores e o luar. Por
exemplo, no Pentecostes, quando estava tanto calor, fiz
todos os esforços para me conservar acordada às onze e
meia, para poder absorver sozinha o luar pela janela;
infelizmente não me serviu de nada, porque a Lua brilhava
com tanta claridade que não pude arriscar-me a abrir a
janela. Uma outra vez, isto já foi há vários meses, estava
eu, por acaso, lá em cima e vi que a janela tinha ficado
aberta. Enquanto ninguém a veio fechar, deixei-me ficar.
A noite chuvosa, a ventania, as nuvens em fuga, tudo isso
tomou totalmente conta de mim; depois de ano e meio
foi pela primeira vez que me vi cara a cara com a noite.
Desde então, o meu desejo de viver outra vez momentos
assim tornou-se mais forte do que o medo dos ratos, dos
ladrões e dos assaltos. Descia, por vezes, sozinha para o
andar de baixo, para olhar pela janela do escritório particular
ou da cozinha. Muita gente ama a natureza, muitos dormem,
por vezes, ao relento. Há outros que estão nas prisões
e nos hospitais e anseiam pelo dia em que possam gozar
o ar livre, mas poucos estão como nós, tão fechados e
isolados daquilo que, ao fim e ao cabo, nos pertence a
todos igualmente, aos ricos e aos pobres. Não é em imaginação
que fico mais calma e que me encho de esperança
quando olho o céu, as nuvens, a Lua e as estrelas. É um
remédio melhor do que a valeriana e o bromo. A natureza
torna-me um ser humilde, torna-me capaz de suportar
; melhor todos os golpes. É, no entanto, inevitável que eu
só a possa contemplar - e mesmo assim por exceção - através das janelas sujas com cortinas
cheias de pó, o
que diminui o meu prazer, pois a natureza é a única
coisa que não pode ser imitada ou substituída.
Tua Anne.


Sexta-feira, 16 de Junho de 1944
Querida Kitty:
Problemas novos! A sra. van Daan está desesperada.
Fala em balas na cabeça, em prisão, enforcamento, suicídio.
Tem ciúmes por o Peter se confiar a mim e não a
ela. Está ofendida por o Dussel não corresponder às suas
coqueterias; tem medo de que o marido gaste todo o
dinheiro do seu casaco de peles; discute, chora, queixa-se, ri
e começa de novo a discutir. O que há de fazer-se a uma
choramingas desta força? Ninguém a está a tomar a sério.
Ela não tem caráter, queixa-se a toda a gente e veste-se
de uma maneira disparatada; vista por detrás parece
uma menina de liceu, vista de frente é uma peça de museu.
O pior é que o Peter torna-se malcriado com ela, o sr.
van Daan irrita-se e a mãe fica cínica. Uma linda situação,
não há dúvida! Para isto há só um remédio que deves
ter sempre presente : ri-te de tudo e não faças caso dos
outros! Pode parecer egoísta mas, na realidade, é a única
defesa para aqueles que são obrigados a consolar-se a si próprios.
O Kraler foi novamente convocado para trabalhos de
sapador. Está a ver se consegue safar-se com um atestado
médico e uma carta da firma. O Koophuis tem de fazer
outra operação ao estômago. Ontem, às 11 horas, todas
as ligações telefônicas particulares foram cortadas.
Tua Anne.

Sexta-feira, 23 de Junho de 1944
Querida Kitty:
Nada de especial a relatar. Os ingleses começaram com
a grande ofensiva sobre Cherbourg. O Pim e o sr. van
Daan são de opinião de que estaremos livres em Outubro.
Os russos também estão activos; ontem começaram a
sua ofensiva em Witebsk, precisamente três anos depois
da invasão dos alemães.
Já quase não temos batatas; doravante, vão ser
contadas e divididas em rações iguais; depois cada um que
se arranje.
Tua Anne.

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