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segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

O Diário de Anne Frank [pate 20]

Terça-feira, 16 de Maio de 1944
Querida Kitty:
Já que há tanto tempo não tenho falado neste assunto,
vou reproduzir-te hoje uma discussão que tiveram ontem
o sr. e a sra. van Daan.
A sra. van Daan: Os alemães devem ter reforçado o
Muro do Atlântico. Com certeza farão tudo o que puderem
para impedir que os ingleses desembarquem. É espantoso
que os alemães tenham tanta força.
O sr. van Daan: É verdade, é horrível.
Ela: Sim... sim!
Ele: Ao fim e ao cabo os alemães ainda ganham a
guerra. São tão fortes!
Ela: Provàvelmente. Ainda não me convenci do contrário.
Ele: É melhor eu não dizer mais nada.
Ela: Mas tu respondes-me sempre. Não consegues ficar
calado.
Ele: Afinal as minhas respostas não dizem nada.
Ela: Mas mesmo assim queres responder e queres ter
sempre razão. As tuas profecias estão longe de bater certo.
Ele: Até agora nunca me enganei.

Ela: É mentira. Previste a invasão para o ano passado,
nos teus cálculos a Finlândia já devia ter concluído a paz,
a Itália teria ficado liquidada no Inverno e os russos já
teriam tomado Lwow. Oh! Não, eu cá não dou nada
pelas tuas profecias.
Ele (levanta-se): Cala a boca! Hás de ver que tenho
tido sempre razão, ao passo que tu fartas-te de dizer tanta
asneira que já não posso mais com isto. O que eu devia
fazer era esfregar-te o nariz na tua própria estupidez.
Cai o pano
P. S. Apeteceu-me rir e à mãe também. O Peter quase
não conseguiu conter uma gargalhada. Oh! estes estúpidos
adultos. Deviam mas é começar a aprender as coisas
em vez de andar a criticar constantemente as crianças!
Tua Anne.

Sexta-feira, 19 de Maio de 1944
Querida Kitty:
Ontem senti-me horrivelmente mal, tive dores de barriga
e todos os males imagináveis. Hoje já estou melhor.
Tenho fome, mas não posso comer os feijões escuros. Com
o Peter tudo vai bem; o pobre do rapaz ainda sente mais
necessidade de ternura do que eu. Continua a corar todas
as vezes que nos despedimos com um beijo de boas-noites
e depois pede-me mais outro. Serei para ele uma substituta
melhorada do Boschi? Mas não faz mal. Ele sente-se
tão feliz por ter a certeza de que alguém o ama!
Depois desta conquista difícil, domino um tanto a situação,
mas não penses que por isso o meu amor enfraqueceu.
Não enfraqueceu; o meu íntimo é que voltou a fechar-se.
Se ele quiser arrombar a fechadura outra vez, precisará
de uma alavanca muito forte!
Tua Anne.

Sábado, 20 de Maio de 1944
Querida Kitty:
Quando, ontem, de noite, vinha a descer do quarto
do Peter, vi a linda jarra com os cravos no chão, a mãe
de joelhos a limpar a água e a Margot a pescar os meus
papéis.
- Que aconteceu? - perguntei apreensiva, procurando
abranger com os olhos todos os estragos. Tudo a nadar:
as minhas pastas das árvores genealógicas, os cadernos, os
livros. Estava quase a chorar e tão impressionada fiquei
que nem consigo lembrar-me do que lhes disse. A Margot
contou-me depois que proferi palavras como "danos incalculáveis, horrível, medonho,
irreparável!" O pai deu uma
gargalhada, a mãe e a Margot também, mas a mim só
me apetecia chorar por causa do tempo perdido que tinha
dedicado àqueles apontamentos tão cuidadosamente
elaborados.
Mas, vistas bem as coisas, os danos "incalculáveis" não
eram assim tão grandes e, sentada no chão, separei com
cautela os papelinhos colados uns aos outros e, depois,
pendurei-os na corda da roupa. Aquilo era um espetáculo
patusco e deu-me vontade de rir: Maria de Médicis
ao lado de Carlos V, e Guilherme de Orange ao lado de
Maria Antonieta.
- Isto é uma profanação - gracejou o sr. van Daan.
Pedi ao Peter que tomasse conta da minha papelada,
e desci.
- Que livros é que ficaram estragados? - perguntei à
Margot, que estava a examinar o meu tesouro de livros.
- O de álgebra - respondeu ela.
Mas infelizmente o livro de álgebra não estava totalmente
estragado. Quem me dera que ele tivesse caído mesmo dentro da jarra. Nunca tive tanta antipatia
por um livro. Logo ao abri-lo, leem-se os nomes de umas vinte raparigas que já estudaram por
ele; é um livro velho, amarelecido, cheio de rabiscos e de correções. Quando tiver um dos meus
dias de atrevida e travessa, hei de rasgar
este estafermo em mil pedaços.
Tua Anne.

Segunda-feira, 22 de Maio de 1944
Querida Kitty:
O pai perdeu, em 20 de Maio, numa aposta com a
sra. van Daan cinco frascos de yoghurt. A invasão, de
fato, ainda não veio. Não é exagero se te disser que toda
a cidade de Amsterdã, toda a Holanda, mais : toda
a costa ocidental da Europa até à Espanha, só fala e discute,
dia e noite, sobre a invasão. Tudo aposta... tudo tem
esperança.
A tensão aumenta e está a tornar-se insuportável. Afinal
nem todas as pessoas que nós julgávamos bons holandeses,
mantêm a sua confiança nos ingleses. Não se conformam
com o famoso "bluff" inglês, oh, não! Os homens querem
ver grandes façanhas, atos heroicos. Ninguém consegue
ver um palmo diante do nariz, ninguém se quer lembrar
de que os ingleses estão a defender a sua própria terra,
todos julgam que eles têm obrigação de salvar, o mais
depressa possível, a Holanda. Mas quais são as obrigações
dos ingleses para conosco? Que fizeram os holandeses
para merecer um auxílio tão nobre, como esperam com
tanta certeza? Os holandeses que não se admirem se se
enganarem. Ao fim e ao cabo, os ingleses não têm feito
mais má figura do que todos os outros países e países vizinhos
que estão agora ocupados. Os ingleses não precisam
de se desculpar quando os acusamos de terem dormido
durante todos aqueles anos em que os alemães se armaram,
pois os outros países, em especial os que estão mais
próximos da fronteira alemã, também estiveram a
dormir. Não adiantamos nada em fazer como a avestruz,
isto já o reconheceram os ingleses e o resto do Mundo,
e é por isso que os aliados, todos juntos e cada um por si,
e a Inglaterra sobretudo, se veem obrigados a fazer pesados
sacrifícios. Não há país nenhum que tenha vontade de
sacrificar os seus homens só para o bem de um outro país,
e a Inglaterra não é diferente dos mais. A invasão, a
libertação, a liberdade, tudo virá um dia, mas a Inglaterra
e a América é que hão de fixar as datas e não os
habitantes dos países ocupados.
Reina o antissemitismo nos círculos onde antigamente nem se pensava em tal coisa. Isto
impressionou-nos profundamente. A causa deste ódio contra os judeus talvez se compreenda e se
explique, mas a verdade, é que se trata de um equívoco. Os cristãos censuram os judeus e dizem
que eles se rebaixam perante os alemães, que denunciam os seus protetores e que muitos
cristãos têm, por culpa dos judeus, sofrido terríveis provações. Pode ser que haja alguma verdade
nisto mas, como em todas as coisas, há o reverso da medalha. O que fariam os cristãos se
estivessem no lugar dos judeus? Será fácil a alguém manter-se firme e correto com os métodos
usados pelos
alemães? Todos sabem que é quase impossível. Então,
porque é que se exige o impossível dos judeus? Nos grupos
ilegais da resistência corre o boato de que os judeus
alemães, em tempos emigrados para a Holanda e agora
deportados para a Polônia, nunca mais poderão regressar
aqui. Tinham direito de asilo na Holanda, mas logo que
Hitler tenha desaparecido, serão forçados a voltar para a
Alemanha. Ao ouvir coisas assim, surge a pergunta: Para
que se faz esta guerra tão dura e tão longa? Diz-se sempre
que lutamos todos juntos pela verdade, pela liberdade e
pelos direitos do homem. E afinal a discórdia começa
enquanto ainda se luta, e já outra vez o judeu é inferior
aos outros? Oh! como é triste que o velho dito se verifique
mais uma vez : "Os atos de um cristão são da sua própria
responsabilidade. Mas tudo o que faz qualquer judeu recai
sobre todos os judeus!".
Com franqueza não compreendo que os holandeses,
este povo bom, honesto e leal, nos condene assim, a nós
que somos o povo mais oprimido, mais infeliz de todos os
povos do Mundo. Só me resta esperar isto: que o ódio aos
judeus seja apenas passageiro e que os holandeses voltem
a mostrar-se como são na realidade! Oxalá voltem a não
vacilar no seu sentido de justiça. Porque o antissemitismo
é uma injustiça!!!
Gosto da Holanda. Esperei sempre que um dia me
servisse de pátria, a mim, que já não tenho pátria. E continuo
a ter esta esperança!
Tua Anne.

Quinta-feira, 25 de Maio de 1944
Querida Kitty:
Todos os dias acontecem coisas desagradáveis. Hoje
de manhã prenderam o nosso bom hortaliceiro, que tinha
escondido em casa dois judeus. Foi um golpe muito duro
para nós, não só por causa daqueles judeus que estão agora
à beira do abismo, mas também por causa do pobre hortaliceiro.
O Mundo está às avessas. Pessoas corretas e boas são
enviadas para os campos de concentração, para as prisões
e para as celas solitárias, enquanto a ralé governa sobre os
velhos, os jovens, os ricos e os pobres. Um é apanhado
porque se dedicava ao mercado negro, outro porque
protegia judeus ou outros "mergulhados". Ninguém sabe
o que o espera amanhã.
Também para nós o hortaliceiro significa uma perda
tremenda. A Miep e a Elli não podem carregar com o
saco de batatas e a nossa única saída é comer menos.
Como conseguiremos isso, ainda o hás de vir a saber, mas
desde já te digo, não vai ser divertido. A mãe propõe
suprimir o pequeno almoço e comer ao almoço a papa,
e à noite batatas fritas e, talvez, uma ou duas vezes por
semana, um pouco de salada e de legumes. Isto quer
dizer: passar fome. Mas todas estas privações são
preferíveis a sermos descobertos.
Tua Anne.

Sexta-feira, 26 de Maio de 1944
Querida Kitty:
Finalmente posso sentar-me tranquilamente à minha
mesinha, junto da janela ligeiramente entreaberta, e
escrever-te.
Há meses que não me sinto tão desgraçada como hoje,
nem depois do assalto estive assim tão infeliz, moral e
fisicamente. De um lado o hortaliceiro, o problema dos
judeus que está a ser o tema do dia cá em casa, a invasão
que se faz esperar, a péssima alimentação, a tensão nervosa,
a má disposição, a minha decepção com o Peter; por outro
lado : o pedido de casamento da Elli, Pentecostes, flores,
os anos do sr. Kraler, bolos, relatórios sobre filmes,
cabarés e concertos. Estes contrastes, estes terríveis
contrastes.
um dia rimo-nos das situações cômicas que a nossa vida
de "mergulhados" traz consigo, no dia seguinte temos medo
e não raras vezes lê-se, nos nossos rostos, o receio, a tensão
nervosa, o desespero. A Miep e o Kraler, mais do que
quaisquer outros, suportam, por via de nós, grandes encargos.
A Miep por lhe causarmos muito trabalho, o Kraler por
ter assumido uma responsabilidade colossal que, por vezes,
lhe pesa de mais e o põe tão nervoso que quase não consegue
pronunciar uma palavra. O Koophuis e a Elli também
se encarregam bem das nossas coisas, muito bem até, mas
são capazes de se esquecer, de se abstrair do anexo, mesmo
que seja apenas por umas horas, por um ou dois dias.
Eles têm outras preocupações, o Koophuis por causa da
sua saúde, a Elli por causa do noivo com quem nem tudo
vai às mil maravilhas; e, além disso, tem distrações, visitas
e a vida toda que para eles corre de uma maneira normal.
Podem libertar-se por vezes dessa tensão de nervos que a
nós nunca nos abandona. Já há dois anos que aqui estamos
- e por quanto tempo seremos ainda capazes de resistir
a esta pressão insuportável que, de dia para dia, vai crescendo?
A canalização está entupida; não podemos deixar
correr a água senão gota a gota; só podemos ir ao W.C.
munidos de uma escova; guardamos a água suja numa das
grandes panelas em que se fervem as conservas. Por
enquanto a coisa remedeia, mas o que é que vai ser se o
picheleiro não vier compor os canos? O serviço municipal
de higiene só virá a este prédio para a semana.
A Miep mandou-nos um pão grande com uvas e junto
um papel onde se lia: "Uma alegre festa de Pentecostes".
Parece quase um escárnio, pois a nossa disposição e o nosso
medo são tudo menos "alegres". Estamos cada vez com mais
medo desde que aconteceu aquilo ao hortaliceiro, de todos
os lados se ouve, outra vez, "chut, chut", andamos de um
lado para o outro sem fazer ruído. No hortaliceiro a polícia
arrombou a porta; aqui pode fazer o mesmo. E se aqui...
não, não quero falar nisto! Mas a pergunta não se deixa
afastar fàcilmente, pelo contrário: aquele medo por que
passei uma vez ergue-se de novo na minha frente em toda
a sua monstruosidade.
Esta noite, às oito horas, deixei a sala onde estávamos
todos reunidos à volta do rádio e desci sozinha ao W.C.
Quis ser corajosa mas foi difícil. Sinto-me mais segura cá
em cima do que em baixo, onde a casa me parece tão
grande e calada e onde estou sozinha com os ruídos misteriosos
que vêm de cima e os toques das buzinas que vêm
da rua. Começo a tremer, não consigo demorar-me e tenho
de fazer esforços para não pensar na nossa situação. Pergunto-me muitas vezes se não teria sido
melhor, para todos
nós, não termos "mergulhado" e estarmos mortos sem
precisar de sofrer toda esta miséria, sobretudo sem termos
exposto os nossos protetores a tantos perigos também.
Mas, no fundo, não queremos aceitar tal ideia, porque
ainda amamos a vida, não nos esquecemos ainda da voz
da natureza, ainda esperamos, esperamos que aconteça
algo de bom. Que Deus faça com que aconteça alguma
coisa e, se for necessário, que haja grandes bombardeamentos;
nada nos pode desgastar mais do que esta inquietação.
Que venha o fim., mesmo que seja duro, mas, ao
menos, que fiquemos a saber se vencemos ou se morremos.
Tua Anne.


Quarta-feira, 31 de Maio de 1944
Querida Kitty:
Sábado, domingo, segunda e terça fez tanto calor que
não consegui segurar a pena na mão; por isso não te
pude escrever. Na sexta, a canalização voltou a ficar
avariada e no sábado compuseram-na. à tarde recebemos a
visita da sra. Koophuis que nos contou muitas coisas da
Gorrie.
A Gorrie e o Jopie são membros do "Jockey-Club".
No domingo apareceu a Elli para ver se a casa não foi
assaltada, e ficou a almoçar conosco.
Na segunda-feira (segundo feriado do Pentecostes) o
Henk van Santen fez de guarda ao esconderijo e na terça,
pudemos, finalmente, abrir outra vez um pouco as janelas.
É raro haver dias tão quentes nos feriados do Pentecostes.
Mas para nós, cá no anexo, não é bom estar tanto calor.
Vou dar-te uma ideia.
Sábado:
- Que tempo maravilhoso! - exclamaram todos logo
pela manhã cedo.
- Quem dera que não houvesse tanto calor - disseram
à hora do almoço quando as janelas têm de estar fechadas.
Domingo:
- O calor é insuportável. A manteiga derrete. Não há
um cantinho fresco em toda a casa, o pão está seco, o leite
estragado, e não se podem abrir as janelas: Ai de nós,
somos párias e estamos aqui a sufocar enquanto os outros
festejam o Pentecostes.
Segunda-feira:
- Doem-me tanto os pés, não tenho roupa leve, não
posso lavar a louça com um calor destes.
Assim falou a sra. van Daan. Foi horrível. Também
não gosto do calor e hoje estou contente por correr um
ventinho e por brilhar o Sol ao mesmo tempo.
Tua Anne.

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