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quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

O Diário de Anne Frank [parte 7]

Quinta-feira, 1 de Abril de 1943
Querida Kitty:
Não há disposição para graças (repara na data)! Aqui
justifica-se o provérbio: "Uma desgraça não vem só".
Primeiro : o nosso protector, sr. Koophuis, que nos anima
sempre, teve ontem uma forte hemorragia do estômago
e tem de estar três semanas de cama. Segundo: a Elli
está com gripe. Terceiro: para a semana o sr. Vossen dá
entrada no hospital. Parece que tem uma úlcera e que
o vão operar.
Tinham sido feitos planos para uma importante reunião
de negócios. O pai tinha tratado tudo com o sr. Koophuis.
Agora não há tempo para dar instruções ao Kraler e o pai
treme só de pensar no decorrer da reunião.
-Se eu pudesse estar presente! - disse. - Se eu pudesse
estar lá em baixo!
-Porque não te deitas no chão?- aconselhamo-lo.
- Os senhores negociam no escritório particular. Com certeza
podes ouvir tudo.

A cara do pai iluminou-se. às dez e meia ele e a Margot
tomaram as suas posições e escutaram. Duas pessoas ouvem
mais do que uma. As negociações não acabaram da parte
da manhã, mas à tarde o pai não teve coragem para se
deitar novamente naquela posição. Estava como que
moído. Quando às três horas se ouviram as vozes lá em
baixo, tomei eu o lugar do pai e a Margot deitou-se ao
meu lado. As conversas eram muito longas e aborrecidas
e, de repente, adormeci naquele oleado tão duro e tão frio.
A Margot não ousou dar-me um empurrão, com medo
de que lá em baixo notassem alguma coisa. Dormi uma boa
meia hora e quando acordei já tinha esquecido as coisas
mais importantes. Mas, felizmente, a Margot tinha estado
com mais atenção.
Tua Anne.

Sexta-feira, 2 de Abril de 1943
Querida Kitty:
Mais um pecado para a minha lista. Ontem estava à
espera que o pai, como de costume, viesse para rezar
comigo e para me dizer boa-noite. Mas veio a mãe. Sentou-se
na minha cama e perguntou, modesta e hesitante :
-Anne, o pai ainda não pode vir. Vamos rezar as duas.
-Não, mãe - respondi.
A mãe levantou-se, ficou parada ao lado da minha
cama. Depois dirigiu-se devagarinho para a porta. De
repente virou-se e, desfigurada, disse :
-Não estou zangada, Anne. O amor não é coisa que
se possa pedir a alguém.
Corriam-lhe as lágrimas pela cara abaixo.
Fiquei muito quieta e senti que fui má, por tê-la
afastado tão brutalmente, mas não podia responder de
outra maneira. Não sou capaz de fingir e de rezar com ela
contra a minha vontade. Palavra que não sou capaz.
Tenho pena da mãe, muita pena até, pois compreendi,
pela primeira vez, que a minha atitude não lhe é indiferente.
Li a dor na sua cara, quando me disse que o amor
não era coisa que se pudesse pedir a alguém. É duro dizer
a verdade. Mas a verdade é que ela me afastou de si.
Foi com as suas observações pouco delicadas e as suas
gracinhas sobre coisas que para mim são muito sérias.
Assim como em mim tudo se constrange quando ela é
dura, também agora se constrangeu o seu coração, quando
compreendeu que entre nós se tinha extinguido o amor.
Chorou durante toda a noite, quase não dormiu. O pai
nem olha para mim, e quando o faz leio-lhe a acusação
nos olhos : "Como foste capaz de ser tão má para tua mãe?
Como pudeste fazê-la sofrer tanto?"
Estão à espera que peça desculpa. Mas eu não posso
pedir desculpa, pois só disse o que é verdade, e mais cedo
ou mais tarde a mãe ficava a sabê-lo. Parece-me que já
não me importo tanto com as lágrimas da mãe e o olhar
do pai. Não, já não me importo. Pela primeira vez, os
dois se aperceberam do que eu sinto continuamente. Sim,
posso ter pena da mãe, mas só ela própria deve procurar
reencontrar-me. Quanto a mim continuarei calada e fria
e nunca terei medo da verdade. É sempre melhor não
adiar o que tem de se dizer.
Tua Anne.

Terça-feira, 27 de Abril de 1943
Querida Kitty:
Estamos todos zangados uns com os outros, os van
Daans, a mãe, o pai, etc. Lindo ambiente, não te parece?
A lista completa dos pecados da Anne chegou a ser desencantada
e discutida em toda a sua extensão.
O sr. Vossen está no hospital. O sr. Koophuis já anda
a pé. Desta vez a hemorragia do estômago passou mais
depressa do que de costume. Koophuis contou-nos que a
repartição da população ficou muito destruída depois do
assalto. Porque os bombeiros, em vez de extinguirem o
fogo, não, inundaram o edifício todo e os danos são agora
enormes e o Hotel Carlton foi destruído. com o "lar dos
oficiais" e toda a esquina da Vijzelstraat-Singel ficou
destruída pelo fogo.
Dois aviões ingleses, que transportavam grande carga de
bombas incendiárias, despenharam-se precisamente neste
ponto.
Já não há um pouco sequer de sossego durante as noites.
Tenho grandes olheiras porque não consigo dormir.
A comida está uma miséria : os pequenos almoços pão
seco e cevada. Ao almoço há mais de quinze dias, ou
espinafres ou salada, e as batatas, de vinte centímetros de
comprimento são vermelhas e doces. Quem quiser emagrecer que venha viver conosco
Os de cima gemem. Mas nós ainda não fazemos disto uma
tragédia.
Todos os homens que tinham sido mobilizados ou que
combateram "na guerra de cinco dias" em 1940 foram
convocados como prisioneiros de guerra e têm de trabalhar para o "Führer". Mais uma medida
de precaução contra a invasão!
Tua Anne.

Sábado, 1 de Maio de 1943
Querida Kitty:
Se me ponho a pensar na nossa vida aqui, chego sempre
à mesma conclusão : nós, em comparação com os
judeus que não conseguiram esconder-se, ainda estamos
como que no paraíso. Mas mais tarde, quando tudo estiver
normalizado e eu me puser a pensar naquilo que vivi,
ficarei, decerto, admirada dos limites a que nós chegamos,
especialmente no que respeita aos nossos costumes. Usamos,
por exemplo, desde que aqui entramos, a mesma toalha
de oleado na mesa, e deves calcular que ela não ficou mais
bonita pelo uso. Com um trapo, que é mais buracos do que
trapo, tento dar-lhe um pouco de "brilho", mas em vão.
Os van Daans não puderam lavar, durante todo o Inverno,
o lençol de flanela que serve para poupar os colchões,
porque o sabão é raro e muito fraco. O pai anda com umas
calças no fio e a gravata já está muito gasta. A cinta da
mãe rasgou-se, de velha, e a Margot usa um soutien
que lhe é apertado de mais. A mãe e a Margot, durante o
Inverno remediaram-se as duas com três camisas, e as minhas
estão-me curtas, dão-me pela anca. Isto agora ainda vai.
Mas assusta-me quando pergunto a mim mesma : será
possível que nós tão terrivelmente esfarrapados, com tudo
tão gasto, a começar pelas minhas solas e a acabar no
pincel de barbear do pai, voltemos algum dia à mesma
vida de outrora?
Hoje os aviões bombardearam a cidade terrivelmente,
sobretudo durante a noite. Estive resolvida a juntar o
indispensável e preparar uma "mala de fuga", mas a mãe
disse e muito bem:
-Para onde querias fugir?
Toda a Holanda está a ser castigada, por haver sabotagens por toda a parte. Foi declarado o
estado de sítio e tiraram uma ração de manteiga a cada pessoa. É assim
que se castigam as crianças mal comportadas!
Hoje, à tardinha, lavei a cabeça à mãe. Não é coisa
fácil. Temos de nos remediar com o sabão amarelo e pegajoso
e, além disso, custa muito pentear o cabelo forte da mãe
com o pente da família que já só tem dez dentes.
Tua Anne.

Terça-feira, 18 de Maio de 1943
Querida Kitty:
Observamos um combate aéreo entre aviões alemães
e ingleses. Infelizmente a tripulação de dois ingleses teve
de abandonar os aparelhos, saltando em paraquedas.
O nosso leiteiro que mora no caminho para Harlen, viu
quatro canadianos, dos quais um falava perfeitamente
holandês e que lhe pediu lume para o cigarro. Contou-lhe
que a sua tripulação se compunha de seis homens, mas que
o piloto, infelizmente, morrera no incêndio e o sexto
companheiro se tinha escondido não se sabia onde. Depois
veio a polícia verde e prendeu os quatro aviadores. é
admirável a calma e presença de espírito destes homens,
depois de um salto assim!
Embora já haja calor, precisamos de acender o fogão
para queimar os despojos da hortaliça e de outras porcarias.
Temos de ter cautela por causa do criado do armazém
e não podemos deitar nada no balde do lixo. Qualquer
pequeno desleixo podia trair-nos.
Todos os estudantes são obrigados a assinar uma declaração
de lealdade como sinal de simpatia para com os
ocupantes. Depois podem continuar os estudos. Oitenta
por cento, no entanto, não foram capazes de assinar contra
a sua convicção e de se vender. As consequências não se
fizeram demorar. Todos os estudantes que não assinaram
são obrigados a trabalhos forçados na Alemanha. O que
vai ser da juventude holandesa se as coisas continuarem
assim?
Hoje à noite a mãe fechou a janela porque o barulho
dos bombardeamentos tornava-se insuportável. Eu dormia
na cama do Pim. De repente ouvimos a sra. van Daan a
gritar. Saltou fora da cama como se uma tarântula a tivesse picado. Depois ouviu-se uma forte
explosão. Imaginei logo
que uma bomba incendiária tinha caído junto da cama
dela e gritei :
-Luz, luz!!!
Pim acendeu a luz e eu esperava que o quarto, dentro
de poucos minutos, fosse devorado pelo fogo. Mas tudo
ficou na mesma. Precipitamo-nos escada acima para ver
o que tinha acontecido. Os van Daans tinham visto um
clarão de fogo pela janela. Ele era de opinião que o incêndio
devia ser perto, em qualquer parte, mas ela na sua imaginação,
já estava a ver a nossa casa a arder. A explosão
fê-la saltar da cama. Mas como não se ouvia nem via
mais nada voltamos a deitar-nos. Depois de um quarto
de hora o barulho dos canhões recomeçou. A sra. van Daan
fugiu do quarto, desceu a escada e refugiou-se junto do
sr. Dussel. Pelos vistos o marido não a sabia proteger!
O sr. Dussel recebeu-a com estas palavras:
-Deita-te ao meu lado, minha filhinha!
Desatamos todos a rir e assim salvamos a situação.
Tua Anne.

Domingo, 13 de Junho de 1943
Querida Kitty :
O poema que o pai me escreveu para os meus anos
é tão lindo que tens de o conhecer. Depois de um apanhado
dos acontecimentos deste ano, prossegue assim:
Como és a mais nova de todos,
Ainda que já bem crescida,
Não é lá muito fácil a tua vida.
Todos pretendem dar-te lições
Mas o que te dão são aflições:
Repara na nossa competência.
Passamos por tudo isso afinal,
E sabemos distinguir entre o bem e o mal.
Assim te falam sem interrupção.
Porque os defeitos próprios
nunca são muito graves
Enquanto que os dos outros são os grandes entraves.
Avisam-te, fazem-te ver...
Como se fosse para teu prazer.
E nós, os pais desta filha querida
Nem sempre podemos dar-te razão
Porque a transigência na vida
É uma forte condição.
O ano que finda
aproveitaste-o bem.
Trabalhaste, leste, aprendeste.
E quase nunca te aborreceste.
No que respeita à roupa, ouço-te perguntar:
O que é que vou usar?
As coisas já não me servem
Os sapatos tanto apertam que me enervam
A saia, a camisa, tudo encolhido.
Reduzido a uma tanga ficou o meu vestido
Dez centímetros que a gente se lembre de crescer
Bastam para em coisa nenhuma se caber.
A Margot fez um Poema sobre a comida. Mas os versos
são pouco jeitosos e não tos vou transcrever. Todos foram
simpáticos, e deram-me muitas prendas bonitas.
entre outras coisas deram-me um calhamaço
sobre o meu interesse pela mitologia da Grécia e de
Roma. Não me posso queixar, pois sacrificaram alguma
coisa das suas últimas reservas.
Sou a mais pequena da "família-mergulhada". Tenho
de confessar que recebo mais mimos do que mereço.
Tua Anne.


Terça-feira, 15 de Junho de 1943
Querida Kitty :
Aconteceram muitas coisas, mas receio que todas estas
histórias te comecem a aborrecer e que eu acabe por
maçar-te com as minhas cartas. Prometo ser breve.
O sr. Vossen não foi operado ao estômago. Depois
de terem feito o golpe no abdómen os médicos verificaram
que ele tem um cancro, infelizmente tão adiantado que já
nada podia fazer-se. Fecharam, trataram-no
do coração. não veio para casa. Ficou fora durante três
semanas. Tenho muita pena dele, e custa-me não poder sair

daqui para o visitar e distrair um bocado. Sempre era ele que nos vinha contar o que se passava
no armazém. Era-nos de um grande auxílio, sempre preocupado conosco, o bom Vossen.
Faz-nos uma falta enorme.
No próximo mês seremos provàvelmente obrigados a
entregar o nosso rádio. O sr. Koophuis tem um desses
aparelhos "Baby" que nos vai ceder para substituirmos o
nosso grande "Philips". Que pena, termos de nos desfazer
do lindo aparelho! Mas numa casa onde há gente escondida
nada se deve arriscar. O que importa antes de mais
nada é a gente desembaraçar-se das autoridades. O rádio
pequeno ficará cá em cima. Para um rádio há sempre
lar, mesmo em casa de judeus escondidos, que compram
tudo com dinheiro "negro". Toda a gente anda empenhada
em arranjar um aparelho antigo para o entregar às autoridades em vez daquele que tem em casa.
A rádio é para
nós a única ligação com o mundo exterior. E a verdade
é que, quando estamos deprimidos da vida! o Melhor é
ter um rádio para nos dar coragem.
Tua Anne.

Domingo, 11 de Julho de 1943
Querida Kitty:
Torno a falar-te sobre "educação". Asseguro-te que
tenho feito todos os possíveis para ser prestável, amável
e simpática. Assim a avalancha de criticas está a abrandar.
Mas custa muito,comportarmo-nos bem com gente que
não podemos ver à nossa frente. Alguém me ouve dizer como há vantagem de fingir um bocado
na cara de pessoas a quem
costumava, dar a minha opinião
afinal, não ligam importância à minha opinião.
Mas por vezes esqueço mais tantas injustiças. Depois,
poder esconder a minha raiva.
durante semanas fala-se da "mais malcriada rapariga do
Mundo!" Não achas que sou digna de pena? Ainda bem
que tenho senso critico, pois de outro modo azedava e
perdia por completo a boa disposição.
com a estenografia, Resolvi não me preocupar tanto
preciso de mais tempo para os meus outros trabalhos.
primeiro por causa dos olhos. Ultimamente estou a ficar míope, o que não é nada bom.
Precisava de óculos (decerto ficaria com cara de coruja),
mas como sabes, os "mergulhados" não têm licença...
Ontem passamos todo o dia a falar de uma coisa só:
a mãe andava com a ideia de me mandar com a sra.
Koophuis ao médico da vista. Ao ouvir aquilo, no primeiro
momento fiquei tonta. Não é brincadeira nenhuma sair
à rua, imagina à rua! Tive a sensação de morrer de medo,
não é coisa simples.
e depois fiquei toda contente. Mas a coisa não é assim
tão fácil. Tem todas as dificuldades e perigos
Era preciso pensar bem e decidir as coisas
importantes, e as personalidades que entenderem. A Miep queria levar-me imediatamente e fui
logo ao armário tirar o meu casaco cinzento. Mas este estava-me tão acanhado como se
pertencesse a uma irmã mais nova. Estou ansiosa por saber
se, de fato, vou ao médico. Mas se calhar resolvem adiar.
Os ingleses desembarcaram na Sicília e o pai diz que
a guerra já não pode demorar muito. A Elli entrega-nos,
a mim e à Margot, uma parte do seu trabalho do escritório.
Gostamos muito de o fazer, e a Elli poupa tempo.
Julgo que qualquer pessoa sabe classificar a correspondência
e assentar as vendas, mas nós somos especialmente
cuidadosas.
A Miep é o nosso burro de carga, coitada! Quase todos
os dias descobre alguma hortaliça e trá-la na sua saca
amarrada à bicicleta. Também é ela quem cuida, todos os
sábados, da troca dos livros, na biblioteca. Estamos sempre
ansiosamente à espera do sábado, como criancinhas que
esperam por uma renda nova mas não a podem usar. E fazem uma
vida de espera.
Que significam os livros para gente isolada do mundo
exterior?
Ler, estudar e ouvir rádio... é este o nosso mundo.
Tua Anne.

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