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quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

O Diário de Anne Frank [parte 6]

Domingo, 30 de Janeiro de 1943
Querida Kitty:
Estou com uma raiva que nem podes fazer ideia. Mas
não a posso dar a conhecer a ninguém. Gostava de bater
com os pés, gritar, sacudir a mãe e não sei o que mais.
E isto por causa das palavras zangadas, dos olhares irônicos,
das acusações que contra mim são lançadas todos os
dias, como setas de um arco muito esticado. Gostava de
gritar-lhes, à mãe, à Margot, ao Dussel e aos van Daans:
Deixem-me em paz! Então não me deixam passar uma
única noite sem molhar o travesseiro de lágrimas? Não
posso adormecer uma única vez sem que os meus olhos
ardam e a cabeça me pese centenas de quilos? Deixem-me!
Queria-me ir embora, embora deste Mundo!
Mas para que serviria? Eles nada sabem do meu desespero!
Nada sabem das feridas que me fazem! Já não suporto
por mais tempo a compaixão e a ironia deles. Só queria
mas era chorar!
Acham-me exagerada quando abro a boca, ridícula
quando me calo, malcriada quando dou uma resposta,
manhosa quando tenho uma boa ideia, preguiçosa quando
estou com sono, egoísta quando me sirvo mais um tudo
nada, estúpida, covarde, interesseira, etc., etc...
Todo
o dia tenho de ouvir que sou uma criatura insuportável,
e podes crer: embora me ria ou finja não ligar importância,
nada daquilo me é, em boa verdade, indiferente.
Bem eu queria pedir a Deus uma outra natureza que
não irritasse tanto os outros. Mas é impossível. E, de resto,
se sou assim, sinto, no entanto, que não sou má. Faço
muito mais esforços para lhes agradar a todos do que eles
imaginam. Rio-me com eles só para não lhes mostrar a
minha dor íntima. Mais de uma vez, quando discutia com a mãe e ela era injusta para comigo,
bradava-lhe: "tanto se me dá como se me deu, do que estás para aí a dizer. O melhor é não te
preocupares mais comigo, sou um caso perdido".
Dizem que sou malcriada e não "fazem caso de mim
durante dois dias". E de repente tudo me é perdoado e
esquecido. Mas eu é que não posso ser um dia muito simpática
e carinhosa com alguém, para o odiar logo no dia
seguinte. Prefiro não me aproximar dos extremos, guardar
os meus pensamentos e fazer os possíveis para tratar as
pessoas com o mesmo desdém com que me tratam a mim.
Ai! se eu fosse capaz disso!
Tua Anne.

Sexta-feira, 5 de Fevereiro de 1943
Querida Kitty:
Há bastante tempo que não te tenho falado das nossas
encrencas mas não penses que alguma coisa se tenha
modificado. Ao princípio o sr. Dussel incomodava-se bastante
com as várias discussões que ouvia. Depois acostumou-se
e agora já faz tentativas para servir de medianeiro.
A Margot e o Peter nem parecem jovens de verdade,
são ambos monótonos e calmos. Claro, eu faço um grande
contraste com eles e, por isso, ouço continuamente :
-Olha a Margot e o Peter, eles eram incapazes de
fazer tais coisas!
Que maçada! E, já agora, vou confessar-te uma coisa :
não quero de maneira nenhuma ficar como a Margot.
A meu ver é demasiado transigente e insípida, deixa-se
influenciar por toda a gente, cede sempre. Então não
há de a gente ter a sua opinião! Mas estas teorias não as
confio a mais ninguém. Não quero que se riam de mim.
à mesa reina muitas vezes uma atmosfera pesada que só
se alivia quando um ou outro hóspede come em nossa
casa-falo das pessoas do escritório, que vêm comer um
prato de sopa conosco.
Hoje, ao almoço, o sr. van Daan verificou mais uma
vez que a Margot não come o suficiente. "Se calhar por
causa da linha", rematou, em tom irónico, o seu discurso.
A mãe que tira sempre as castanhas do lume para a Margot
disse muito alto :
-Estou farta do seu palavreado!
A sra. van Daan ficou vermelha como um pimentão e
ele pôs-se a olhar para o chão, embaraçado.
Muitas vezes rimo-nos uns com os outros. Há pouco, a sra. van Daan contou coisas engraçadas
dos vários "flirts"
que teve e como se entendia bem com o seu pai.
"Se algum homem ousar ser atrevido para contigo
deves dizer-lhe: "Meu senhor, sou uma senhora". Ele
desistirá logo", aconselhava-lhe o pai.
Rimo-nos como se nos tivesse contado uma anedota
formidável.
O Peter, geralmente muito calado, diverte-nos de vez
em quando. Tem o fraco das palavras estrangeiras cujo
significado raras vezes conhece e o resultado é uma linda
baralhada. Certo dia, quando no escritório particular
havia visitas e não nos era permitido utilizar o W.C.,
Peter sentiu uma necessidade terrível. Foi mesmo lá, mas
não puxou o autoclismo. Queria avisar-nos disto e colou na
porta do W..C. um papel com as palavras : "Sívelil vous
plait, cheirete!". O que ele queria dizer era: "Cautela,
cheirete!". Achou a expressão "sívelil vous plait" muito distinta
e não fazia ideia nenhuma de que ela se traduz
por "faz o favor".
Tua Anne.

Sábado, 27 de Fevereiro de 1943
Querida Kitty:
Esperamos a invasão de um dia para outro. Churchill
teve uma pneumonia, mas já está quase bom. Gandhi, o
libertador da Índia, já fez, não sei quantas vezes, a greve
da fome.
A sra. van Daan disse ser fatalista. Mas sabes quem
tem mais medo quando caem as bombas? Claro que é
ela, a D. Petronella!
O Henk trouxe-nos a pastoral dos bispos que foi lida
em todas as igrejas. É grandiosa e incita as pessoas: Não
vos caleis, holandeses! Cada um tem que lutar com as suas
armas pela liberdade do povo, pela pátria e pela religião!
Ajudai, não hesiteis!-Foi assim que falaram. Servirá para
alguma coisa? Aos nossos correligionários com certeza
não serve para nada.
Imagina o que aconteceu. O senhorio, sem avisar o sr.
Koophuis ou o sr. Kraler, vendeu a casa. Uma manhã
apareceu o novo proprietário com um arquiteto.
Queriam ver a casa. Graças a
Deus o sr. Koophuis estava presente e mostrou tudo
aos senhores, menos o anexo.
Disse-lhes que deixara as chaves da porta em casa. Os
senhores não insistiram. Oxalá não voltem para o anexo.
Seria a nossa desgraça.
O pai deu-nos um ficheiro com fichas novas. Serve-nos,
a mim e a Margot, para os livros que já lemos. Registamo-los
não só pelo autor e título mas também com as
nossas observações. Para as palavras estrangeiras e os
ditos arranjei um caderno especial.
Ultimamente dou-me melhor com a mãe. Mas nunca
seremos verdadeiras confidentes uma da outra. A Margot
está mais impertinente do que nunca, e o pai está muito preocupado com qualquer coisa. Mas ele
é e será o melhor de todos!
Novas rações de manteiga e de margarina. Cada um
recebe a sua parte do dia num pratinho. Parece-me que
a distribuição quando está ao cargo dos van Daans não
corre lá com grande honestidade, mas os meus pais estão
fartos de zangas e, por isso, calam-se. É pena. A meu
ver, devíamos pagar-lhes na mesma moeda.
Tua Anne.

Quarta-feira, 20 de Março de 1943
Querida Kitty:
Ontem à noite houve um curto-circuito. E ainda por
cima o barulho infernal dos canhões da defesa. Não sou
capaz de me habituar às bombas e aos aviões. Tenho
medo e quase sempre fujo para a cama do pai. Se calhar
achas-me muito criança, mas só queria que assistisses!
Não ouvimos as nossas próprias palavras, tanto é o barulho
dos canhões. A sra. van Daan, a fatalista, estava quase a
chorar e disse, toda enfiada :
-Acho um horror dispararem tanto.
Não queria isto dizer : tenho muito medo!? De dia a
coisa não me aflige tanto. Gritei como se tivesse febre
e supliquei ao pai que acendesse a vela. Mas ele não
se comoveu e continuamos às escuras. Então começou
o ruído das metralhadoras, que acho pior ainda do que
o dos canhões. A mãe saltou fora da cama e, com desgosto
do pai, acendeu a vela. Ao seu protesto respondeu resolutamente :
-Mas a Anne não é um velho soldado como tu!
E acabou-se! Já te falei dos ataques da sra. van Daan?
Tens que saber tudo o que se passa no anexo. Certo dia
ela ouviu passos pesados no sótão. Pensou que eram ladrões.
Ficou tão cheia de medo que acordou o marido. No mesmo
instante o ruído terminou, o sr. van Daan só conseguiu
ouvir bater o coração da fatalista.
Ai! Putti: (é como ela chama o sr. van Daan) se calhar
roubaram os chouriços e os feijões. E que terão feito ao
Peter?
-Não roubaram o Peter, não te aflijas! E deixa-me
dormir.
Mas isso sim!
Como ela não conseguia adormecer, também o não
deixava a ele.
Algumas noites depois, a família van Daan acordou
com um barulho esquisito. O Peter subiu para o sótão
com a sua lâmpada de mão e quando a acendeu viu
fugir um bando de ratazanas. Agora sabíamos quem eram
os ladrões, e pusemos o Mouchi a dormir no sótão. Os
. hóspedes indesejáveis, pelo menos durante a noite, não
voltaram mais. Mas há poucos dias o Peter teve de ir ao
sótão (eram sete e meia e ainda dia) para buscar alguns
jornais velhos. Ao descer a gente tem de agarrar-se à saída.
Ao pousar a mão ia caindo pela escada abaixo. Uma
ratazana mordeu-o no braço. Quando chegou cá em
baixo-e de que maneira!-tinha o pijama cheio de sangue,
estava branco como cal e mal se aguentava nas pernas.
Não admira, pois ser-se mordido por uma ratazana sem
contar é horrível, e ainda por cima uma mordedura
daquelas... Chega a ser infivelame!
Tua Anne.

Sexta-feira, 12 de Março de 1943
Querida Kitty:
Posso apresentar-te: a mamã Frank, defensora da juventude,
reclama manteiga suplementar para a gente nova.
Luta pelos problemas dos jovens modernos. Luta pela
Margot, por mim e pelo Peter, e depois de grandes discussões
consegue sempre o que pretende.
Estragou-se um frasco de língua de conserva. Resultado:
Jantar de gala para o Mouchi e o Bochi. É verdade, tu
ainda não conheces o Bochi. Dizem que já estava no
imóvel antes de chegarmos nós, os "mergulhadores". Agora
é o gato do armazém e do escritório e afasta os ratos.
O seu nome político explica-se fàcilmente. Antes, a casa
tinha dois gatos : um para o armazém, outro para o sótão.
Quando os dois se encontravam havia sempre luta. Infalivelmente
o do armazém é que começava, mas o do sótão
é que vencia. E, por isso, foram batizados : o do armazém
era o alemão ou o Bochi, o do sótão, o inglês ou o Tommy.
O Tommy desapareceu e o Bochi é a nossa distração
quando vamos para baixo.
Comemos tantas vezes feijão branco que já não posso
vê-lo à minha frente e fico enjoada só de pensar nele.
Ao jantar já não temos pão.
O pai acaba de dizer que está preocupado com vários
assuntos. Tem olhos tristes, o pobre!
Ando maluca com o livro De Ylop op de Deur, de Ina
Boudier-Bakker. É o romance de uma família, extraordinário
nas descrições. As passagens que tratam da guerra,
dos problemas da mulher, dos escritores, não os acho
tão bem; com toda a franqueza, são assuntos que me
interessam pouco.
Bombardeamentos sobre a Alemanha. O sr. van Daan
anda de mau gênio por não haver cigarros.
O problema de se havíamos de comer já ou não os
legumes de conserva resolveu-se a nosso favor. Além das
minhas botas de ski, já não me servem nenhuns sapatos
e as botas são bastante incômodas em casa. Umas sandálias
de palha entrançada duraram uma semana, e acabou-se.
Pode ser que a Miep encontre qualquer coisa no
mercado negro. Agora tenho de cortar o cabelo ao Pim.
Disse ele que, mesmo depois da guerra não pode voltar
ao cabeleireiro, por eu o servir tão bem, embora eu
o corte tantas vezes na orelha!
Tua Anne.

Quinta-feira 18 de Março de 1943
Querida Kitty:
A Turquia entrou na guerra... Estamos impacientes pelas notícias da rádio.
É mesmo assim que a rádio transmite este repugnante
teatro de marionetes. Dá quase a ideia de que os soldados
têm orgulho das suas feridas: mais e melhor:
Um deles a quem o Führer consentiu em apertar a
mão - caso ainda tivesse alguma - nem conseguiu falar.
Tua Anne.

Sexta-feira, 19 de Março de 1943
Querida Kitty:
à alegria seguiu-se uma decepção muito maior. Afinal
a Turquia ainda não entrou na guerra. O Ministro do
Exterior só apelou no seu discurso para que cessasse a
neutralidade. O vendedor dos jornais no "Pan" tinha
gritado :
"A Turquia está do lado dos ingleses".
Assim nasceu o boato e chegou até nós.
As notas de 500 e 1000 florins vão deixar de ter valor.
Os negociantes do mercado "negro" e os possuidores de
dinheiro "negro" vão-se ver em maus lençóis, mas o problema
é também grave para as pessoas "mergulhadas".
Quando se quer trocar uma nota de mil florins é-se obrigado
a declarar e a provar donde ela vem. Para já, mas
só até ao fim da próxima semana, ainda estas notas podem
ser utilizadas para pagamento dos impostos.
O Dussel recebeu a sua broca de mão e, em breve,
vai examinar os meus dentes.
O "Führer" de todos os germânicos falou perante os
seus soldados feridos e depois "conversou" ainda com eles.
Que tristeza ouvir aquilo! Um exemplo:
-Meu nome é Heinrich Scheppel!
-Onde ficou ferido?
-Diante de Estalinegrado.
-Que feridas tem?
-Perdi os dois pés por causa do frio e fraturei o
pulso esquerdo!
Tua Anne.


Quinta-feira, 25 de Março de 1943
Querida Kitty:
A mãe, o pai, a Margot e eu estávamos ontem muito
bem dispostos quando entrou o Peter e segredou qualquer
coisa ao pai. Ouço: "Entornou-se um barril no armazém"
e "alguém tentou abrir a porta".
A Margot também ouviu, mas fez os possíveis para
me acalmar, pois eu estava branca como a cal quando o
pai saiu do quarto com o Peter. Ficamos os três à espera,
mas dois minutos depois apareceu a sra. van Daan que
tinha estado no escritório particular a ouvir rádio. O pai
pedira-lhe que fechasse o rádio e que saísse sem fazer
ruído. Mas quando a gente quer ter muita cautela, ainda
é pior. E ela disse que os degraus da velha escada tinham
rangido medonhamente debaixo dos seus pés. Mais cinco
minutos... O pai e o Peter voltaram, ambos pálidos até
à raiz dos cabelos. Contaram-nos o que se passava: sentados,
lá em baixo, puseram-se à escuta, mas primeiro, não
ouviram nada. Depois, de repente ouviram duas pancadas
fortes como se alguém tivesse batido com as portas. De um
pulo o Pim correu escada acima, o Peter foi buscar o Dussel
que, antes de mais nada, arrumou as suas coisas. Então
subimos todos, em meias, para cima. O sr. van Daan
está constipado e, por isso, já se tinha deitado. Juntamo-nos
todos em volta da sua cama e contamos, em voz
baixa, as nossas suspeitas. Quando o sr. van Daan tossia
alto, a sra. van Daan e eu quase desmaiávamos de susto,
até que enfim alguém teve a ideia luminosa de lhe dar
codeína. A tosse acalmou imediatamente.
Esperamos... Como não ouvimos mais nada, calculamos
que os ladrões tinham fugido ao ouvir, de repente,
passos numa casa tão calma.
Lembramo-nos de que, por mal dos nossos pecados, o
rádio ainda estava sintonizado para a emissora inglesa e
que as cadeiras estavam desarrumadas. Assim, qualquer
pessoa perceberia imediatamente que, pouco tempo antes,
tinha estado gente naquele quarto. No caso de os ladrões
terem arrombado a porta e os da defesa antiaérea darem
por ela, a polícia seria avisada e as consequências podiam
ser muito sérias.
O sr. van Daan levantou-se, vestiu o casaco, pôs o
chapéu e desceu cautelosamente com o pai. O Peter ia
atrás, levando um martelo para o que desse e viesse.
As senhoras, a Margot e eu esperamos com grande ânsia.
Cinco minutos mais tarde os senhores voltaram para nos
dizer que estava tudo em ordem. Combinamos não abrir
as torneiras e não puxar o autoclismo no W. C. Mas como
o susto provocou o mesmo efeito em todos nós, podes imaginar
o cheirete num certo sítio...
Quando acontece uma coisa má vem outra logo a
seguir. Foi o que aconteceu. Primeiro: o sino da Westertorenjá
não toca. Achava-o tão bonito e calmante! Segundo:
sabíamos que o sr. Vossen tinha saído mais cedo na noite
anterior, mas o que não sabíamos era se a Elli, depois,
tinha levado as chaves ou se, porventura, se esqueceu de
fechar a porta. Estávamos todos um tanto inquietos, embora
não se ouvisse o menor ruído desde as oito horas-e já
eram onze. Depois de estarmos menos excitados parecia-nos -  pensando
agora com calma - quase inconcebível
que algum ladrão tivesse arrombado a porta numa hora
em que ainda anda tanta gente na rua. A um de nós
ocorreu a ideia de que um contramestre da casa vizinha
tivesse estado a trabalhar. Como as paredes são pouco
espessas, é fácil confundir o som dos ruídos, especialmente
quando se está aflito, e a imaginação também toma um
papel importante nesses momentos espinhosos. E assim
fomo-nos deitar, mas ninguém conseguiu dormir bem.
O pai, a mãe e o Dussel estiveram toda a noite sobressaltados
e eu, sem exagero, não preguei olho...
Hoje de manhã os senhores desceram para ver se a porta de entrada estava ainda fechada. Tudo
parecia estar
em ordem. Contamos os acontecimentos tão aflitivos, com
todos os pormenores, aos nossos protetores, que
troçaram de nós, mas depois de as coisas se terem
passado é fácil rir! Só a Elli é que nos tomou a sério.
: Tua Anne.

Sábado, 27 de Março de 1943
Querida Kitty:
O curso de estenografia terminou. Estamos agora a
treinar-nos em velocidade e havemos de conseguir chegar
ao máximo. Vou contar-te coisas do meu "trabalho-de-matar-o-tempo"
(esta designação inventei-a eu, porque,
ao fim e ao cabo, tudo aqui se faz para preencher o tempo
até ao dia em que já não precisarmos de estar aqui). Estou
entusiasmadíssima com a mitologia e o que mais me
interessa são as lendas dos Deuses gregos e romanos. "São
entusiasmos passageiros" dizem aqui, porque nunca
ouviram dizer que uma adolescente se tivesse dedicado
à mitologia. Mas eu posso bem ser a primeira!
O sr. van Daan está constipado ou antes : arranha-lhe um
bocado a garganta e ele faz disto um grande acontecimento :
gargareja, toma chá de marcela, pincela a garganta com
tintura de mirra, põe pomada no nariz, no pescoço, no
céu da boca e na língua. E, além disso... tem mau gênio.
Rauter, um dos alemães mais importantes nesta terra,
fez um discurso: todos os judeus têm de desaparecer,
até 1 de Julho, dos países germânicos. Far-se-á a limpeza
(como se se tratasse de baratas!) na província de Utrecht
do primeiro de Abril até ao primeiro de Maio, na Holanda
do Norte; e do Sul do primeiro de Maio até ao primeiro
de Junho. Como a um rebanho de pessoas doentes e inúteis,
levam a pobre gente ao matadouro. Mas não quero falar-te
mais nisto. Os meus próprios pensamentos
provocam-me pesadelos. Também há novidades boas : a repartição de trabalho foi sabotada,
incendiada e, alguns dias mais tarde, aconteceu o mesmo à repartição da população. Homens
metidos em uniformes da policia alemã subjugaram os guardas e depois fizeram desaparecer
ficheiros importantes, de
maneira que as convocações e as buscas tornam-se agora
bem mais difíceis.
Tua Anne.

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