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quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

O Diário de Anne Frank [parte 5]

Quinta-feira, 12 de Novembro de 1942
Querida Kitty:
O Dussel ficou muito contente quando a Miep lhe
falou de um bom esconderijo. Ela aconselhou-o a vir o
mais depressa possível, de preferência depois de amanhã.
Mas ele hesitou porque ainda precisava de pôr as fichas
em ordem, acabar o tratamento de dois clientes e pôr
as contas em dia. Foi o que a Miep nos contou hoje de
manhã. Não achamos nada bem aquilo, pois qualquer
demora pode ser prejudicial. Tais preparativos podem
exigir, da parte do Dussel, explicações a pessoas que não
queríamos que desconfiassem de nada. Pedimos à Miep
que o aconselhasse a vir no sábado. Ele disse que não,
que vinha na segunda-feira. É ridículo. Devia ter aproveitado
logo. Se o prenderem na rua, também não pode
pôr em dia a caixa ou acabar o tratamento dos clientes.
Quanto a mim, acho que o pai não devia ter cedido. De
resto, nada de novo.
Tua Anne.

Terça-feira, 17 de Novembro de 1942
Querida Kitty:
O Dussel chegou. Tudo correu bem. A Miep tinha-lhe
dito que esperasse em frente do correio geral. Pontualmente
lá apareceu. Então o sr. Koophuis, que o conhece,
foi ter com ele. Disse-lhe que o senhor com quem se queria
encontrar vinha um bocado mais tarde e que ele, Dussel,
esperasse antes junto da Miep, no escritório. Koophuis
meteu-se num carro elétrico, enquanto o Dussel seguia
a pé. Chegou ao escritório às onze e meia. A Miep fez-lhe
tirar o sobretudo para que ninguém visse a estrela amarela
e depois pediu-lhe que esperasse no escritório particular
do sr. Koophuis.
Queria ela que a mulher das limpezas se fosse primeiro
embora. Mas, claro, o Dussel de nada sabia. Depois a
Miep levou-o para o andar de cima. Disse-lhe que não
podia estar mais tempo naquele escritório porque, daí
a um bocado, os chefes tinham uma reunião. O espanto
do homem foi grande quando viu a porta giratória abrir.
Ambos entraram.
Nós estávamos todos lá em cima, com os van Daan,
para receber o nosso companheiro com café e conhaque.
Entretanto a Miep fê-lo entrar na nossa sala de estar.
Ele reconheceu logo a mobília, mas, mesmo assim, não suspeitou
que estivéssemos tão próximos. Quando a Miep
lhe disse ficou de boca aberta, e ela nem lhe deu tempo
de a fechar: fê-lo subir imediatamente a escada.
O Dussel deixou-se cair numa cadeira, cravou os olhos
em cada um de nós e não quis acreditar no que viu.
Depois começou a balbuciar:
- Mas... não... mas então, não estão na Bélgica?
O tal oficial não os veio buscar? E o automóvel? Não
foram bem sucedidos na fuga?...
Explicamos-lhe que nós próprios tínhamos feito constar
a história do oficial para despistar as pessoas, em especial
os alemães, que podiam andar à nossa procura. O
Dussel ficou varado com tanto engenho e mais varado ainda
ficou quando se meteu a esquadrinhar todo o nosso esconderijo
tão bem imaginado e tão bem montado. Comemos
todos juntos. Depois ele deitou-se um bocado, tomou
o chá conosco e pôs nos devidos lugares as suas coisas,
que tinham trazido antes de ele chegar. Depressa se sentiu
como em sua casa, sobretudo depois de lhe terem
sido entregues os regulamentos do anexo (o plano foi
feito pelo sr. van Daan).
Prospecto e guia do anexo
Fundação criada propositadamente para a estadia
provisória de judeus e outros que tais.
Aberta todo o ano
Belamente localizada, calma, com arredores sem florestas
no coração de Amsterdã. Acessível pelas linhas
19 e 17; de automóvel ou bicicleta; e a pé para aqueles
a quem os alemães proibiram o uso de qualquer veículo.
Renda Gratuita.
Cozinha de dieta sem gorduras
Água corrente
No quarto de banho (sem banheira) e, infelizmente,
também em várias paredes.
Espaço largo reservado a bens de toda a espécie.
Central de rádio, com emissões diretas de Londres,
New York, TelAviv e muitas outras estações. O aparelho
está à disposição dos habitantes das seis horas da tarde
em diante.
Horas de repouso: Das dez horas da noite às sete e trinta da manhã. Domingo até às dez horas.
Atendendo a certas circunstâncias, também se intercalam outras horas de repouso, conforme
indicações da Direção. Estas indicações devem ser
rigorosamente seguidas, no interesse da segurança comum!!!
Até novas ordens não há.
em surdina!
Todos os dias.
Uma lição de estenografia por semana. Inglês, Francês
e Matemática a qualquer hora do dia.
Pequeno almoço todos os dias, com exceção de domingos
e feriados, pontualmente às nove horas.
Almoço: da 1 e 15 à 1 e 45. Jantar: frio ou quente, não
tem horas fixas devido às notícias da rádio.
A "Celha" está à disposição dos habitantes todos os
Domingo
s desde as nove horas. Pode tomar-se banho no
W.C., na cozinha, no escritório particular ou no outro
escritório, conforme o gosto de cada um.
Bebidas alcoólicas fortes Só permitidas por ordem médica.
Tua Anne

Quinta-feira, 19 de Novembro de 1942
Querida Kitty:
Não estamos desapontados. O Dussel é de faco um
homem simpático. Para dizer com franqueza, não acho
lá muito agradável que um estranho se sirva das minhas
coisas no quarto, mas, para fazer uma boa ação, toda a
gente se deve sacrificar. Nada importa se pudermos salvar
alguém, diz o pai, e tem toda a razão.
Logo no primeiro dia o Dussel perguntou-me uma
série de coisas, por exemplo, quais eram as horas da mulher
da limpeza, e quais as do W. C. e onde me parecia a mim
o melhor sítio para se tomar banho. Não te rias, Kitty,
mas no esconderijo todas estas coisas são importantes.
Estão tantas vezes pessoas lá em baixo que não conhecem
o segredo! É necessário saber bem as horas de trabalho
delas para não fazermos barulho. Já expliquei tudo isto
ao Dussel, mas fiquei pasmada por ele ser tão lento.
Pergunta as coisas duas vezes e mesmo assim não as fixa.
Talvez ainda esteja um pouco atrapalhado, a surpresa
foi muito grande, e é natural que ele se tenha de adaptar.
O Dussel tem-nos contado muitas coisas do mundo
exterior, de onde partimos há tanto tempo. Tudo que
conta é triste. Inúmeros amigos e conhecidos foram levados
das suas casas e um destino terrível os espera. Noite após
noite os automóveis cinzentos e verdes dos militares
atravessam as ruas a toda a velocidade. Os "verdes (a SS
alemã) e os "pretos" (a Polícia Nazi holandesa) procuram
os judeus. Se encontram algum, levam-no, e a toda a
família. Tocam, por exemplo, numa porta e se não encontram
lá nenhum judeu, tocam na do vizinho e assim por
diante. Por vezes, andam com listas de nomes e procuram
os "marcados" sistematicamente. Só consegue escapar-lhes
quem "consegue fugir" a tempo. Por vezes aceitam um
resgate, mas são poucos os que conseguem escapar.
Fazem, hoje, o que há muitos anos foi feito com os
escravos. Maltratados, torturados, mortos enfim. O que
aconteceu com eles, nos tempos antigos, está hoje a
acontecer com os judeus.
Não poupam ninguém, homens, mulheres, velhos, crianças.
E nós aqui tão bem guardados! Podíamos fechar os olhos a toda
esta miséria, mas estamos sempre
em aflição por aqueles que nos são caros e a quem não
podemos dar uma ajuda.
Quando estou deitada na minha cama, cama tão quente
e confortável, enquanto as mais queridas amigas sofrem
lá fora, talvez expostas ao vento e à chuva, mortas até,
sinto-me quase má. Tenho medo ao pensar em todas as
pessoas às quais tanta coisa me liga e ao lembrar-me de que
estão entregues aos mais cruéis carrascos que a história
dos homens já conheceu. E tudo isto só por serem judeus!
Tua Anne.

Sexta-feira, 20 de Novembro de 1942
Querida Kitty:
Estamos todos um pouco desconcertados. Até agora
só recebíamos de longe em longe notícias sobre os judeus.
E daí, talvez fosse melhor assim. Quando a Miep por vezes
falava do destino trágico de pessoas nossas conhecidas, a
mãe e a sra. van Daan punham-se logo a chorar, de modo
que ela achou melhor não contar mais nada. Mas fizemos
muitas perguntas ao Dussel e o que ele conta é medonho,
é bárbaro. Não se consegue pensar em outra coisa. Será
possível que alguma vez mais possamos sair e divertir-nos
como outrora, mesmo quando tudo isto tiver passado?
Mas a verdade é que se transformarmos o nosso esconderijo
numa casa de luto, se ficarmos sempre melancólicos, não
adiantamos nada, nem para nós nem para os que lá fora
sofrem. Não posso fazer coisa nenhuma sem pensar naquela
gente que partiu. Se dou comigo a rir despreocupadamente,
assusto-ma e acho-me injusta por estar alegre. Mas hei de
chorar todo o dia? Não, não posso. E o desânimo decerto
passará. Além destas misérias, há outra coisa desagradável,
assunto pessoal e que, já se vê, nenhuma importância tem
comparado às tragédias de que acabo de falar: quero dizer
que me irrito tão só ùltimamente! Sinto um vácuo enorme
dentro de mim. Antigamente não pensava muito nisto.
Os divertimentos e as amizades prendiam-me o tempo.
Mas agora preocupam-me problemas sérios. Reconheci,
por exemplo, isto: o pai, embora me seja tão querido, não
pode substituir todo o meu mundo de outrora.
Achas-me ingrata, Kitty? Por vezes tenho a impressão
de não poder suportar mais: ouvir todas estas coisas
horríveis, ter as minhas próprias dificuldades e ainda por
cima ser o bode expiatório para tantas coisas que acontecem!
Tua Anne.

Sábado, 28 de Novembro de 1942
Querida Kitty:
Gastamos eletricidade de mais, ultrapassamos os limites.
Temos de fazer economia, caso contrário cortam-nos a
corrente e estaremos quinze dias sem luz. Das quatro e
meia em diante não podemos ler mais. Matamos então o
tempo com várias distrações : adivinhas, ginástica, falar
inglês ou francês ou sobre os livros que acabamos de ler...
Com o tempo tudo se torna monótono. Descobri uma coisa
nova: com o binóculo posso espreitar para os quartos
iluminados dos vizinhos da frente. Durante o dia não
podemos abrir as cortinas nem um centímetro, mas à
noite já pode ser. Eu antes nunca sabia que os vizinhos
são pessoas tão interessantes. Observei alguns enquanto
comiam; numa outra família passavam um filme e o dentista,
mesmo em frente, estava a tratar uma velhinha
cheia de medo.
A propósito de dentista! O sr. Dussel, de quem se dizia
saber lidar tão bem com crianças e gostar muito delas,
revela-se um bota de elástico. A cada passo faz sermões
sobre boas maneiras e bom comportamento. Como sabes,
tenho a pouca sorte de partilhar o quarto com este senhor
tão "respeitável" e, como sou tida como a mais mal-educada
dos três jovens daqui, ele dá-me que fazer e por vezes
nem sei como escapar a tantas descomposturas e avisos.
Olha, faço-me surda! Mas tudo isto ainda se suportava
se o homem não fosse um "denunciante" de grande categoria
e se não tivesse escolhido precisamente a mãe para as suas
reclamações. Assim, recebo primeiro uma ensaboadela dele,
depois a mãe junta outra e, se estou com sorte, a sra. van
Daan também mete o bedelho para me censurar.
Ai! Kitty, não é fácil ser-se a pessoa mais mal-educada ou antes: o para-raios de uma família
"mergulhada"
sempre a criticar e a educar! à noite, na cama, quando
passo em revista todos os meus pecados e todos os defeitos
que me são atribuídos, perco-me nessa abundância de
queixas e, quase sempre, começo a chorar... ou a rir,
conforme a disposição. Depois adormeço com a ideia tola
de querer ser diferente do que sou ou de que não sou como
queria ser e de que faço tudo ao contrário. Queria agir
de outra maneira e não ser como sou. Santo Deus! Agora
estou a baralhar tudo, não te zangues! Mas não risco o
que está escrito e rasgar a folha também não posso, porque
há grande falta de papel. Seria mesmo pecado! Assim
só te posso aconselhar a não voltares a ler a última frase
nem tentares aprofundá-la, que és capaz de não conseguir
voltar à superfície!
Tua Anne.

Segunda-feira, 7 de Dezembro de 1942
Querida Kitty :
Chanuca e São Nicolau coincidem quase este ano.
O Chanuca festejamo-lo apenas com as velas, mas como
estas são agora uma preciosidade só as acendemos durante
dez minutos. As velas acesas e nós a cantarmos a canção
de Chanuca! O sr. van Daan construiu um lindo candelabro.
O São Nicolau, no sábado, ainda foi mais lindo.
A Elli e a Miep vinham para cima cochichar com o pai
e, assim, andávamos todos muito curiosos, pois compreendíamos
que estavam a preparar alguma surpresa. E, de
fato, às oito horas descemos a escada, através do corredor
escuro (arrepiei-me toda; tinha medo de não voltar inteirinha), para o escritório, no outro andar.
É um quarto
sem janelas e, assim, podíamos acender a luz. O pai abriu
o armário e todos exclamaram: "Que lindo!" No centro
estava um grande cesto, enfeitado com papéis coloridos,
e guarnecido simbòlicamente com a máscara do Pedro,
o negro. Transportamos o cesto para cima. Cada um
recebeu as suas prendas acompanhadas de uma quadra.
Tenho a certeza de que conheces bem esse gênero de
poemas e, por isso, não os vou aqui transcrever. Recebemos:
eu um "Pieferkuchen" enorme, em forma de
boneca; o pai, suportes para livros; a mãe, um calendário;
a sra. van Daan, uma bolsa para o pano do pó; o sr. van
Daan um cinzeiro... Todos os presentes tinham sido bem imaginados e, como festejávamos o S.
Nicolau pela primeira
vez, achamos a nossa estreia bem sucedida.
Também demos prendas aos nossos amigos lá de baixo,
coisas que tínhamos ainda dos velhos tempos. Disseram-nos
hoje que o sr. Vossen fez com as próprias mãos o cinzeiro
para o sr. van Daan e os suportes para o pai. Acho admirável
alguém fazer coisas tão bonitas.
Tua Anne.

Quinta-feira, 10 de Dezembro de 1942
Querida Kitty:
O sr. van Daan negociava, noutros tempos, em carnes
frias, salsichas, chouriços e outras especialidades. A firma
contratou-o por ser um comerciante muito hábil e experiente. E agora ficamos maravilhados aqui
com a sua perícia de salsicheiro.
Encomendamos, no mercado negro, já se vê, carne
para fazer conservas para os tempos difíceis. É engraçado
ver a carne passar pela máquina, duas ou três vezes.
Depois juntam-se os temperos, mistura-se tudo bem e,
por fim, enchem-se as tripas com aquela massa. Comemos
ao almoço chucrute com salsicha fresca! Os chouriços
defumados têm de secar bem e, por isso, enfiamo-los numa
vara suspensa do teto. Sempre que alguém entra no quarto
e vê os chouriços a bambolear não pode deixar de rir.
É uma exposição patusca.
Havia uma tremenda desordem no quarto. O sr. van
Daan (com um avental da esposa), todo gorducho, mais
gorducho ainda do que de costume, tratava da carne.
Parecia mesmo um carniceiro com as mãos cheias de
sangue, a cara afogueada e o avental sujo. A sra. van Daan
quer fazer mil coisas ao mesmo tempo: estudar holandês
por um livro, remexer a sopa, examinar a carne com que
o marido trabalha e ainda ter tempo para se queixar da
sua costela partida.
Bem feito! Quem é que manda as senhoras entradotas
e vaidosas fazer ginástica tola, só porque não querem ter
um traseiro gordo?
O Dussel tinha um olho inflamado e estava junto do
fogão a fazer compressas. O pai, sentado na cadeira, procurava
aproveitar os magros raios do Sol. Julgo que tenha dores de reumatismo, estava todo encolhido e
seguia com
olhos infelizes o trabalho do sr. van Daan. O Peter andava
a correr pelo quarto atrás do gato, que se chama Mouchi.
A mãe, a Margot e eu descascávamos batatas. Fazíamo-lo
automàticamente, porque estávamos a contemplar, fascinadas,
a atividade do sr. van Daan.
O Dussel inaugurou o consultório de dentista. Vais-te
divertir ao saber da primeira consulta. A miep estava a
passar a ferro enquanto a sra. van Daan fez de primeira
cliente. Estava sentada numa cadeira, no meio do quarto,
enquanto o Dussel tirava cerimoniosamente todos os
seus instrumentos. Pediu água-de-colônia para desinfetar
e vaselina para substituir a cera. Depois olhou para dentro
da boca da sra. van Daan. Tocou-lhe num dent molar,
escabichou-o a seguir com um ferrinho, o que a fazia
estremecer e gemer sem nexo, como se estivesse a morrer
de dores. Depois de um exame sem fIm - pelo menos na
opinião da doente, pois na realidade só tinham passado dois
minutos - o Dussel queria começar a chumbar um dente.
Mas isso sim! A sra. van Daan defendeu-se com braços e
pernas, de tal maneira que o Dussel teve de largar o gancho
com que estava a limpar o buraquinho. O gancho lá
ficou espetado no dente. Havias de ver! A senhora
agitava-se para um lado e para o outro, tentava tirar o gancho
mas só conseguia enterrá-lo ainda mais. O Dussel não se
comovia. De mãos nos bolsos observava o espetáculo.
E nós, os outros espectadores, a rir. Não o devíamos
ter feito. Fomos velhacos! com certeza eu também me
teria portado assim e teria gritado quanto pudesse.
Depois de muito esforço, suspiros e gemidos, a sra. van Daan
tirou o ferro, e o Dussel retomou o seu trabalho como se nada tivesse acontecido. Tão depressa
manejou os instrumentos, que
a senhora não teve tempo para mais brincadeiras. Mas
suponho que ele nunca teve na sua consulta ajudantes
tão prestáveis. O sr. van Daan e eu éramos os assistentes
e agora imagino tudo aquilo como um quadro da Idade
Média: "charlatães a trabalhar". Por fim a paciência da
senhora esgotou-se. Disse que tinha agora de olhar pela
comida. Uma coisa é certa: tão cedo não voltará ao
dentista.
Tua Anne.

Querida Kitty :
Sentada confortàvelmente à janela do escritório grande,
estou a observar, através de meia fenda da cortina, o que
se passa lá fora. Anoitece, mas ainda consigo ver o bastante
para te escrever.
É curioso ver as pessoas a correr! Parece que estão com
pressa, quase que tropeçam nos seus próprios pés. Os
ciclistas passam numa velocidade tal que não consigo
distinguir as mulheres dos homens.
Este quarteirão é de gente do povo e a maioria tem
aparência pobre. As crianças andam tão sujas que eu só
me atrevia a tocar-lhes com tenazes. São autênticos garotinhos
e falam um dialeto que quase não se compreende.
Ontem, quando a Margot e eu estávamos aqui a tomar
banho, ocorreu-me uma ideia: se pudéssemos pescar
algumas daquelas crianças, pela janela e com um anzol,
dar-lhes um banho, vesti-las e dar-lhes depois novamente
a liberdade...
-Amanhã estariam sujas na mesma-interrompeu-me
a Margot.
Há mais coisas para ver: automóveis, barcos e a chuva.
Ouço o ruído do carro elétrico e ponho-me a imaginar as
mais variadas coisas. Como nós aqui não temos estímulos,
os nossos pensamentos também pouco variam. Dos judeus
passa-se à comida, da comida à política, da política... mas
já que falo de judeus: ontem, ao espreitar pela cortina, vi
dois judeus. É uma sensação estranha, quase como se eu
os traísse e estivesse aqui para espionar a sua infelicidade.
Precisamente em frente desta casa há um barco habitado
por um pescador com a família. Eles têm um cãozinho
que já conhecemos pelo ladrar e cujo rabo se vê quando
ele corre ao longo da borda do barco.
Agora chove a cântaros e as pessoas escondem-se debaixo dos guarda-chuvas. Só vejo
impermeáveis e por vezes também um capuz.
Mas não preciso de ver mais, porque já as conheço
bem, àquelas mulheres metidas nos seus casacos vermelhos
ou verdes, com os tacões tortos, uma bolsa gasta debaixo
do braço, os corpos inchados por comerem batatas de mais
e outras coisas de menos. Uma traz a infelicidade estampada
no rosto, outra parece feliz, mas isto decerto depende
do bom ou do mau humor dos seus maridos.
Tua Anne.


Querida Kitty:
Com grande satisfação, soubemos no anexo que cada
um de nós terá para o Natal meio quarto de manteiga, fora
a do racionamento. Oficialmente recebe-se um meio quilo,
mas isto é para os mortais felizes que vivem lá fora, na
liberdade. Gente "mergulhada como nós que, com oito
cartões de racionamento, só pode comprar as mercadorias
para quatro pessoas, já fica radiante com tão pouco!
Cada um de nós quer fazer doces com a sua manteiga.
Eu farei bolachas e duas tortas. Temos muito que fazer
e a mãe disse que não me deixava ler nem estudar enquanto
não tivesse acabado as minhas obrigações domésticas.
A sra. van Daan está na cama,por causa da costela
partida: lamenta-se todo o dia, temos de a atender e de
lhe mudar as compressas, mas ela nunca está satisfeita.
Só queria que já estivesse outra vez a pé e tratasse sozinha
das suas coisas. Mas tenho de lhe fazer justiça: ela é muito
trabalhadeira e quando se sente bem, moral e fisicamente,
chega a ser mesmo uma pessoa divertida.
Todo o santo dia advertiram-me com os "chut-chut",
pois, pelos vistos, sou demasiadamente barulhenta, e, como
se ainda não bastasse, o meu companheiro de quarto
resolveu lançar-me também, durante a noite, os "chut-chut".
Nem sequer admite que me vire na cama. Faço
de conta que não dou por nada, mas qualquer dia hei de
retribuir-lhe uns "chuts". Aliás, aos domingos, ele dá-me
cabo da paciência. Acende a luz muito de madrugada
para fazer ginástica. Aquilo parece-me que dura horas e
como ele está sempre distraído, dá constantemente contra
as cadeiras que servem para prolongar a minha cama.
Por fim acordo mesmo de todo. Mas como ainda não
tenho dormido bastante, queria adormecer de novo.
Depois de ter percorrido os caminhos da força e da beleza", ele começa a fazer a toillete! As
cuecas estão penduradas
num gancho. Portanto vai até lá e volta. Mas, já se vê,
esqueceu-se da gravata em cima da mesa. Lá vai ele para
lá, para cá, esbarrando com as cadeiras. E pronto!
Acabou-se o meu descanso dos domingos!
Mas valerá a pena a gente queixar-se de homens
velhos e esquisitos? Por vezes dá-me na gana pregar-lhe
uma partida: fechar a luz, desparafusar a lâmpada e
esconder-lhe as roupas. Mas não o faço, por amor da
santa paz.
Ai! Como estou a ficar ajuizada. Aqui é preciso ter-se
juízo a cada passo: para não responder, para cumprir as
ordens, para ser sempre amável, prestável, transigente e
sabe Deus o que mais! Estou a abusar do meu juízo que,
já por si, não vai longe, e receio que não me sobre nenhum
para depois, para quando a guerra acabar.
Tua Anne.

Quarta-feira, 13 de Janeiro de 1943
Querida Kitty:
Hoje estamos todos perturbados, não conseguimos fazer
nada com calma. As notícias lá de fora são horríveis. Dia
e noite arrastam a pobre gente das suas casas. Só deixam
levar o que cabe na mochila e algum dinheiro (mas este
tiram-lho mais tarde). Separam as pessoas em três grupos,
homens, mulheres e crianças. É vulgar voltarem as crianças
da escola e já não encontrarem os pais, ou voltarem as
mulheres das compras e darem com a casa selada. O resto
da família já foi deportada.
Nos círculos cristãos também já reina o desassossego.
Os jovens são enviados para a Alemanha. Toda a gente
tem medo!
E durante as noites, centenas de aviões sobrevoam a
Holanda, para lançarem uma chuva de bombas na Alemanha.
A cada hora tombam homens na Rússia e na
África. A Terra enlouqueceu, há destruição por toda a
parte. A situação melhorou para os Aliados, mas o fim
de tudo isto ainda está longe.
Nós aqui estamos bem, melhor de que milhares de
outras pessoas. Estamos em segurança e podemos fazer
planos para os tempos do pós-guerra. Podemos pensar
nos vestidos e nos livros que havemos de comprar em vez
de estarmos sempre preocupados com cada tostão que
se gasta inutilmente e que podia servir para ajudar os
outros, ou com aquelas coisas que se perderam e talvez
ainda se pudessem salvar.
Há crianças, cá no quarteirão, que andam de blusinhas
leves, de socos e sem meias, sem sobretudos, sem
boinas ou luvas. Têm o estômago vazio, mastigam cenouras,
fogem das casas frias para as ruas úmidas e ventosas, e estudam em escolas sem aquecimento.
Mais: as crianças
pedem pão às pessoas que passam! Chegaram até este
ponto as coisas na Holanda! Ouço falar durante horas a
fio sobre a miséria que esta guerra trouxe e fico cada
vez mais triste. Não temos outro remédio senão esperar,
calma e serenamente, o fim de tanta infelicidade. Esperam
os judeus, esperam os cristãos. Esperam os povos de todo
o Mundo... mas muitos esperam pela morte!
Tua Anne.

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