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quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

O Diário de Anne Frank [parte 14]

Quarta-feira, 26 de Fevereiro de 1944
Querida Kitty:
O tempo está desde ontem maravilhoso e sinto-me
verdadeiramente espevitada. Vou todas as manhãs ao
sótão onde o Peter trabalha e onde respiro ar fresco. Do meu
lugar favorito no chão vejo um pedaço de céu azul e o
castanheiro sem folhas, em cujos ramos cintilam gotinhas,
e vejo as gaivotas que, no seu voo planado, parecem de
prata.
O Peter, com a cabeça encostada à viga, e eu, sentada,
respiramos o ar puro, olhamos lá para fora. Há entre nós
qualquer coisa que não queremos afugentar com palavras.
Olhamos assim muito tempo lá para fora e quando o
Peter se teve de ir embora para rachar a lenha, eu sabia
que ele era um ótimo rapaz. Subiu a escadinha estreita,
segui-o, e durante um quarto de hora, enquanto ele trabalhava,
não pronunciamos uma única palavra. Vi bem
que se esforçava por me mostrar que tem força.
Mas vi também, através da janela aberta, um pedaço
de Amsterdã: olhei sobre os telhados até à linha do
horizonte que de tão azul e de tão límpido quase se não
distinguia do céu.

-Enquanto ainda há disto, pensei, um Sol tão brilhante,
um céu sem nuvens e tão azul, e enquanto me é
dado ver e viver tamanha beleza, não devo estar triste.
Para qualquer pessoa que se sinta só ou infeliz, ou
que esteja preocupada, o melhor remédio é sair para o
ar livre, ir para qualquer parte, onde possa estar só
com o céu e com a natureza, e com Deus. Então compreende
que tudo é como deve ser e que Deus quer ver os homens
felizes no meio da natureza, simples e bela. Enquanto
assim for-e julgo que será sempre assim - sei que há uma
consolação para todas as dores e em todas as circunstâncias.
Creio que a natureza alivia os sofrimentos.
Talvez eu possa, em breve, partilhar esta felicidade
suprema com alguém que sinta as coisas como eu.
Estamos privados de muita coisa e há muito tempo.
Sinto-o como tu. Não estou a falar de coisas exteriores,
as que temos ainda chegam. Não, falo daquilo que se
passa dentro de nós. Tal como tu, eu queria liberdade
e ar, mas creio agora que temos boa compensação disto
que nos falta. Foi o que compreendi, de repente, hoje de
manhã, quando estava sentada junto da janela; quero
dizer, uma compensação íntima. Ao olhar lá para fora
e ao reconhecer Deus na natureza, senti-me feliz, apenas
feliz. Oh, Peter, enquanto esta felicidade está em nós,
esta felicidade da natureza, da saúde e de muitas coisas
mais, enquanto formos capazes de conservar tudo isto
em nós, a felicidade voltará sempre de novo. Fortuna,
fama, tudo podes perder, mas a felicidade do coração,
ainda que por vezes esteja obscurecida, torna a vir enquanto
viveres. Enquanto puderes erguer os olhos para o céu,
sem medo, saberás que tens o coração puro, e isto significa
felicidade.
Tua Anne.

Domingo, 27 de Fevereiro de 1944
Querida Kitty:
De manhã até à noite não posso pensar senão no Peter.
Adormeço com a sua imagem nos olhos, sonho com ele
e quando acordo sinto o seu olhar em mim.
Parece-me que o Peter e eu não somos tão diferentes
como podia parecer à primeira vista. A ambos nos falta
uma mãe. A dele é demasiado superficial, gosta do "flirt"
e não se preocupa com a vida íntima do filho. A minha
pensa em mim, mas não possui o tacto com que as mães
devem compreender as coisas.
Ambos lutamos contra o que se passa dentro de nós.
Falta-nos ainda a segurança, somos acanhados e frágeis,
não suportamos que alguém toque o nosso íntimo com
grosseria. Quando isso acontece comigo, a minha primeira
reação é: "quero ir-me embora,. Mas como é impossível,
escondo os meus sentimentos e porto-me tão mal que
toda a gente desejava que eu realmente me fosse embora.
O Peter, por sua vez, fecha-se na sua concha, não
fala, sonha e esconde-se, cheio de receios.
Mas como e onde nos havemos de juntar? Não sei
durante quanto tempo poderei dominar este meu desejo.
Tua Anne.

Segunda-feira, 28 de Fevereiro de 1944
Querida Kitty:
Já está a ser um pesadelo! Estou sempre junto dele;
não devo deixar transparecer nada, tenho de parecer
despreocupada e alegre, ao passo que, no meu íntimo
tudo é desespero.
Agora Peter Wessel e Peter van Daan formam um
Peter só. E este Peter é bom e eu amo-o e quero-o para
mim. A mãe está insuportável, o pai sempre gentil e,
por isso, mais insuportável ainda, a Margot pretende tornar-se
amável, e eu só queria que me deixassem em paz.
O Peter não veio ter comigo quando eu estava no
sótão. Saiu para se pôr a carpinteirar. A cada martelada
eu ia perdendo mais a coragem e ficando mais triste.
Do outro lado toca o carrilhão: "O corpo ereto! O
coração ao alto!
Estou a ser uma sentimentalona, bem sei. Estou desesperada
e não tenho juízo, também sei!
Oh! Ajuda-me!
Tua Anne.

Quarta-feira, 2 de Março de 1944
Querida Kitty:
As minhas preocupações passaram Para segundo plano
e isto por causa de um roubo. Estes roubos já não têm
graça nenhuma, mas o que se há de fazer se os ladrões
sentem um prazer especial em honrar a firma Kolen & Go.
com a sua visita? Desta vez a coisa foi mais complicada
do que em Julho do ano passado. Quando o sr. van Daan
desceu ontem, como de costume, ao escritório do Kraler
viu que as portas envidraçadas e a porta do escritório
estavam abertas. Surpreendido, resolveu dar uma volta
para inspecionar o resto e ainda mais surpreendido ficou
ao ver o caos no escritório principal.
-Ladrões!- até aí para se certificar disso correu, escada
abaixo até à porta de entrada. Mas a porta e o fecho de
segurança estavam intactos.
- Peter e a Elli foram desleixados - pensou então.
Ficou algum tempo no escritório do Pai e depois fechou
as Portas, a luz, subiu e não se ralou mais com as
portas abertas nem do estranho caos no escritório.
e de manhã o Peter bateu cedo à nossa porta e
deu-nos a notícia desagradável de que a porta da rua
estava largamente aberta e de que tinham desaparecido do
armário o aparelho de projeção e a nova pasta do Kraler
O Peter recebeu ordens para fechar a porta da rua e,
só agora o sr. van Daan nos contou as suas observações da
noite anterior. Ficamos muito preocupados.
Esta história só tem uma explicação : o ladrão possui
uma chave igual à chave de segurança, pois a porta
não estava arrombada. Decerto meteu-se dentro da casa
muito cedo, fechou a porta atrás de si e, ao ouvir o sr.
van Daan, escondeu-se. Depois de este ter subido, desatou
a fugir o mais depressa que pôde, com as coisas roubadas
e, com a atrapalhação, esqueceu-se de fechar a porta da
rua. Mas quem será o homem que possui a chave? E porque
é que não entrou no armazém? Será mesmo um dos
próprios empregados do armazém? E se ele nos denunciar?
agora que ouviu e provàvelmente viu o sr. van Daan?
Tudo isto é quase sinistro, porque nunca sabemos se e
e quando o ladrão virá de novo abrir a porta. Ou será
possível que ele próprio se tenha assustado por ter
visto alguém dentro da casa?
Tua Anne.

Quinta-feira, 3 de Março de 1944
Querida Kitty:
A Margot e eu estivemos hoje no sótão. Mas o prazer
não foi o mesmo, embora eu saiba que em muitas coisas
ela sente como eu.
Ao lavar a louça, a Elli confessou à minha mãe e à
sra. van Daan o seu desespero. E queres saber como
as duas a consolaram? Sabes qual foi o conselho que a
mãe lhe deu? Que devia pensar em todos aqueles que
estão agora a perecer no Mundo! Mas quando uma pessoa
está desesperada, pode valer-lhe de alguma coisa pensar
nas misérias dos outros? Foi o que eu disse, mas responderam-me :
-Não sabes ainda nada destas coisas.
Os adultos são tapados, são estúpidos. Como se a
Margot, o Peter, a Elli e eu não sentíssemos todos o mesmo!
Só o amor de uma mãe ou o amor de um grande amigo
nos pode consolar. As nossas mães não têm uma centelha
de compreensão para nós sequer, e acho que a sra. van
Daan ainda tem mais um bocado do que minha mãe.
Eu gostaria de ter dito à pobre Elli algumas palavras,
dessas palavras que confortam, como sei por experiência
própria. Mas o pai interveio e afastou-me. São tão estúpidos, todos eles! Nós não temos direito a
ter uma opinião!
Eles são imensamente modernos! Então a gente não sabe
pensar? Pode obrigar-se alguém a não falar, mas nunca
a não ter uma opinião. Não é possível proibir-se isto a
ninguém, seja qual for a idade. A Elli, ao Peter, à Margot
e a mim só o amor autêntico, abnegado, pode valer,
mas o amor assim não nos é dado. Nenhum de todos estes
sábios idiotas nos compreende aqui, porque nós somos
muito mais sensíveis, muito mais avançados nas nossas
ideias do que eles imaginam.
Presentemente, a mãe anda a criticar-me a torto e
a direito. Tem ciúmes da sra. van Daan, com quem agora
falo mais do que com ela.
Hoje de tarde consegui apanhar o Peter. Conversamos
pelo menos uns três quartos de hora. O Peter tem muita
dificuldade em falar de si próprio, mas pouco a pouco
há de fazê-lo. Contou-me que os pais se zangavam a cada
passo por causa da política, dos cigarros e de outras coisas
que tais. Estava embaraçado. Depois falei-lhe dos meus pais.
O Peter tem grande entusiasmo por meu pai, disse que
era um tipo "bestial". Assim falamos da nossa família.
Ficou admirado quando eu lhe disse que não gostávamos
muito dos seus pais.
- Peter - disse-lhe -, sabes que sou sempre franca.
Porque é que não te devia de contar? Conhecemos os
defeitos dos teus pais!
E depois ainda lhe disse :
- Peter, eu gostava de ajudar-te. Não será possível?
Tu andas metido entre os dois e sei que isto te faz mal.
- Sim, gostava que me ajudasses, agradecer-te-ia toda
a vida.
- Mas talvez seja melhor tu falares com meu pai,
podes ser franco com ele; nunca denuncia ninguém.
- Ah, sim, deve ser um camarada a valer.
-Gostas dele, não gostas?
Fez que sim com a cabeça e depois eu disse:
- Ele também gosta muito de ti.
Ficou corado, o que me enterneceu. Que felicidade
lhe dei com tão poucas palavras!
- Mas isso é verdade? - Perguntou.
- Pois claro -disse eu-, já lho ouvi dizer não sei
quantas vezes.
O Peter é um tipo "bestial", exatamente como o pai.
Tua Anne.

Sexta-feira, 9 de Março de 1944
Querida Kitty:
Hoje, quando se acenderam as velas, fiquei contente,
senti-me calma. Vi a avó, envolvida pela luz. A avó
é quem me protege e preserva e quem me dá, sempre de
novo, alegria e satisfação.
Mas... agora há mais uma pessoa que domina os meus
pensamentos: é o Peter. Quando hoje fui buscar as batatas
e estava, com a panela cheia, ao pé da escada, ele
perguntou-me :
- Que fizeste hoje de tarde?
Sentei-me num degrau e conversamos. Só às cinco e um
quarto (uma hora depois de ter subido) desci com as batatas.
O Peter não falou dos seus pais. Falamos de livros e
dos tempos passados. Quase me podia apaixonar por ele!
Tocou no assunto. Depois de ter descascado as batatas,
fui ter com ele. Estava calor e eu disse :
- Para saberes a temperatura basta olhares para mim
e para a Margot. O frio torna-nos pálidas e com o calor
ficamos coradas.
- Apaixonada?-perguntou.
- Eu apaixonada? Mas porquê?-respondi eu cheia
de candura.
- E porque não?-perguntou.
Depois descemos para jantar.
Que queria ele dizer com aquilo? Hoje perguntei-lhe,
finalmente, se não achava as minhas conversas maçadoras.
Disse :
-Acho-as engraçadas.
E não disse mais nada. Não sei se estava a ser muito
tímido.
Oh, Kitty! Estou a portar-me como uma apaixonada
que não consegue falar senão do seu namorado. Mas,
podes crer, o Peter é um amor de rapaz! Quando lhe
poderei eu dizer isto? Claro que não será antes de ele
me achar também um amor de rapariga. Eu não sou uma
gatinha que se possa tocar sem luvas, bem sei. A verdade
é que o Peter gosta do seu sossego, e será difícil eu saber
se gosta de mim.
De qualquer forma estamos a conhecer-nos melhor
um ao outro e eu só queria que tivéssemos coragem para
nos abrirmos ainda mais. Quem sabe, talvez isto se dê
mais depressa do que estou a imaginar. Olha-me várias
vezes como quem me compreende e eu respondo piscando
os olhos. E então ficamos ambos felizes e divertidos!
Devo parecer uma tola a falar assim da nossa felicidade,
mas estou convencida de que ele pensa exatamente
como eu!
Tua Anne.


Sábado, 10 de Março de 1944
Querida Kitty:
Este sábado é, desde há meses e meses, o primeiro que
não se passou aborrecido, triste e desesperado. E isto por
causa do Peter.
Quando hoje de manhã fui ao sótão para estender
o meu avental lavado, estava lá o pai, que estuda todos os
dias com o Peter. Perguntou-me se eu não queria ficar
a estudar com eles. Claro que quis e falamos primeiro
francês. Expliquei umas coisas ao Peter e depois passamos
para o inglês. O pai leu-nos umas passagens de um livro
de Dickens e, confesso, senti-me no sétimo céu, assim
sentada ao lado do pai e tão próxima do Peter.
às onze desci. Quando meia hora depois voltei para
cima, o Peter já me esperava junto da escada. Conversamos
até à uma menos um quarto. Sempre que pode, isto é, quando ninguém está a ouvir, ele diz-me
depois do almoço :
- Até logo, Anne.
Ah, como me sinto contente! Ele gostará de mim?
Seja como for, o Peter é um ótimo rapaz e acho que nos
havemos de entender muito bem.
A sra. van Daan gosta de nos ver juntos. Mas hoje
perguntou um tanto trocista:
- Posso deixar-vos sós lá em cima?
- claro que pode, - protestei - A senhora quer ofender-me?
De manhã à noite folgo em ver o Peter.
Tua Anne.

Segunda-feira, 12 de Março de 1944
Querida Kitty:
Leio no rosto do Peter que pensa tanto em mim como
eu nele. Ontem à noite aborreci-me terrivelmente quando
a sra. van Daan disse, toda trocista:
- Olhem o grande pensador!
O Peter corou, ficou encavacado, e a mim apeteceu-me
saltar à cara da senhora.
Porque é que falam sem ser preciso? Não calculas
como sofro por vê-lo assim tão só. compreendo-o como
se fosse eu própria a viver a sua vida, sinto-lhe o
desespero quando discutem e se zangam junto dele, noto o
vazio em que ele mergulha. Pobre Peter! Como tu
necessitas de amor!
Disse-me que não precisava de amigos: ainda trago
nos ouvidos a dureza destas palavras. Como está enganado!
Julgo que não acredita no que disse. Quer por força
parecer uma pessoa indiferente, não mostrar os seus
sentimentos.
Quanto tempo te quererás assim enganar, Peter? Não se
seguirá a este esforço sobre-humano uma tremenda reação?
Oh, Peter, se me deixasses ajudar-te! Os dois juntos
vencíamos a nossa solidão.
Ando sempre a cismar, mas não o digo a ninguém.
Sinto-me feliz quando o vejo a ele e quando vejo o Sol
brilhar.
Ontem, ao lavar o cabelo, estava terrivelmente endiabrada.
Sabia que ele se encontrava no quarto ao lado.
Não tenho culpa : mas quanto mais calada e mais séria
estou no íntimo mais espalhafato tenho de fazer. Quem
será o primeiro a descobri-lo e a quebrar a armadura?
Ainda bem que os van Daans não têm uma filha! A minha
conquista não seria tão difícil, tão bela e tão esplêndida
se não fosse a atração do sexo oposto!
Tua Anne.
P. S. Bem sabes que te escrevo tudo com a máxima
franqueza. Por isso vou ainda confessar-te que só vivo
agora dos nossos encontros. Quem me dera saber se ele
também me espera com a mesma ansiedade. Fico radiante
quando sinto as suas tímidas tentativas de uma aproximação.
Sei que ele gostava tanto como eu de abrir, finalmente,
o coração. Não adivinha que é precisamente a sua
falta de jeito que me encanta.
Tua Anne.

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