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quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

O Diário de Anne Frank [parte 12]

Quinta-feira, 6 de Janeiro de 1944
Querida Kitty:
O meu desejo de falar com alguém tornou-se tão forte,
ultimamente, que escolhi, não sei porquê, o Peter como
vítima. Quando eu estava lá em cima com ele sentia-me
bem. Mas como é modesto e incapaz de pedir a alguém
para o deixar em paz, mesmo se se sentir molestado, eu
nunca tinha coragem de me demorar com receio de que
me pudesse achar aborrecida.
Discretamente, faço agora tentativas para ficar mais
um bocadinho para conversarmos e ontem, por acaso,
houve um pretexto bom, pois o Peter tem a mania das
palavras cruzadas e se pudesse não faria mais nada em
todo o dia. Ajudei-o, e assim ficamos à mesa, um em
frente do outro, ele na cadeira, eu no divã.
Sempre que eu olhava para os seus olhos escuros e
observava o sorriso bailar-lhe à volta da boca, tinha uma
sensação estranha. Adivinhava-lhe o íntimo. Lia-lhe no
rosto a insegurança, o desamparo e, ao mesmo tempo, um
laivo de certeza de se saber homem. O seu embaraço
enterneceu-me e precisei de o olhar de novo nos olhos.
Apeteceu-me pedir-lhe :

- Conta-me tudo o que sentes e não tenhas medo de
que eu seja indiscreta. Contigo nunca o serei!
Mas a tarde foi passando e nada de especial aconteceu
a não ser que lhe falei a respeito do corar mas, evidentemente, não lhe disse tudo o que escrevi
aqui. Só falei
nisso por causa dele, para ele sentir mais segurança. quando
de noite, na cama, pensei em tudo aquilo, a situação
parecia-me desagradável e achei então um exagero da
minha parte cobiçar assim as boas graças do Peter. Acho
esquisito a gente tentar tanta coisa para satisfazer um desejo. Dou-me a mim como prova.
Resolvi procurar mais
vezes o Peter e fazê-lo falar. Não julgues que estou apaixonada por ele, não, nem pensar nisso.
Se os van Daans,
em vez de um filho, tivessem uma filha, eu faria as mesmas
tentativas para conseguir a sua amizade.
Hoje de manhã acordei às sete horas e lembrei-me
nitidamente do que sonhei. Estava eu sentada à mesa, em
frente do Peter... Folheávamos um livro ilustrado.
O sonho tinha sido tão nítido que até ainda me lembro
das gravuras. Mas não acabou aqui. Os nossos olhares
encontravam-se e eu via os olhos do Peter, tão belos, de
um castanho aveludado. Depois o Peter disse, baixinho
e carinhoso :
-Se eu soubesse, já te teria procurado há mais tempo.
Virei-me bruscamente porque estava muito comovida.
Então senti a face do Peter junto da minha e senti-me
tão bem, ai! tão bem!
Quando acordei parecia-me sentir ainda o seu contacto
e tive a sensação de que os seus queridos olhos castanhos
tinham penetrado até ao fundo do meu coração e que
tinham compreendido quanto eu gostava dele, e ainda
gosto. Os meus olhos encheram-se de lágrimas, fiquei
triste por ele estar tão longe de mim, mas também fiquei
contente por sentir com tanta força que ainda gosto do
Peter. Estranho: tenho aqui visões tão nítidas. Uma noite
apareceu-me a avó paterna com tanta nitidez que lhe consegui
ver as rugazinhas aveludadas na pele. Depois veio a avó materna como anjo da guarda e depois a
Lies, que para mim é o
símbolo da infelicidade das minhas amigas e de todos os
judeus. Ao rezar por ela incluo sempre os judeus e todos
os homens perseguidos e infelizes.
E agora apareceu-me o Peter, o meu querido Peter!
Nunca o tinha visto tão claramente na minha imaginação.
Não tenho dele nenhuma fotografia, nem é preciso, pois
tenho-o bem gravado na memória! Como é bom e simpático!
Tua Anne.

Sexta-feira, 7 de Janeiro de 1944
Querida Kitty:
Que estúpida que sou. Nunca me lembrei de te contar
a história dos meus admiradores.
Ainda eu era pequena, andava no jardim-escola,
quando simpatizei com Karl Samson. Ele já não tinha
pai e vivia com a mãe em casa de uma tia. Bobby, o filho
desta, era um rapazinho esperto, esbelto e moreno, que
conseguia sempre chamar a atenção sobre si mais do que
o Karl, gordinho e patusco. Mas eu não me importava
com o aspecto exterior e fui amiga do Karl, durante anos.
Éramos camaradas autênticos.
Depois o Peter Wessel entrou na minha vida e foi a
minha primeira paixão. Ainda nos vejo - de mãos dadas -
a correr pelas ruas, ele com um fato de linho, eu com
um vestido de Verão.
Quando ele foi para o liceu passei eu para a última
classe da escola primária. Ia buscar-me à escola ou eu ia
buscá-lo a ele ao liceu. O Peter era um lindo rapaz, alto,
esbelto, bem feito, com uma cara calma, séria e inteligente.
Tinha cabelo escuro, a pele tostada, grandes e belos olhos
castanhos e um nariz afilado. Do que eu mais gostava nele
era do sorriso que lhe dava um ar de maroto.
Passei as férias grandes com a família, fora. Quando
regressamos o Peter tinha mudado de casa, morava agora
com um rapaz mais velho do que ele e de quem era muito
amigo. Decerto esse rapaz fez-lhe ver que eu não passava,
afinal, de uma criança e o Peter não quis saber mais de
mim. Eu, ao princípio, nem queria acreditar, tanto gostava
dele! Por fim tive de me conformar, pois, se fosse a
andar atrás dele, chamavam-me maluca.
Os anos iam passando. O Peter andava com raparigas da sua idade, e a mim nem sequer me
cumprimentava já,
mas eu não conseguia esquecê-lo. Quando entrei para o
liceu judaico, muitos dos rapazes apaixonaram-se por
mim. Achava aquilo engraçado, mas não sentia nada
de especial por nenhum deles. Mais tarde era o Harry
quem andava atrás de mim. Mas como já disse: nunca
mais me apaixonei.
Há um provérbio que diz: "O tempo cura todos os
males". Parecia que era assim mesmo, e eu imaginava
que me ia esquecendo do Peter e que já nem gostava dele.
Mas a recordação vivia tão fortemente no meu subconsciente
que, um dia, tive de confessar a mim mesma o ciúme que
sentia de todas as raparigas do seu círculo. Por força quis
então achá-lo pouco simpático.
Hoje de manhã compreendi, no entanto, que nada se
modificou, antes pelo contrário: á medida que os anos
iam passando e eu me desenvolvia, o amor pelo Peter
crescia em mim. Compreendo que ele me tenha achado
infantil, mas não posso deixar de sentir uma certa dor
por me ter esquecido tão depressa. Vi-o muito nitidamente
diante de mim e sei que nunca ninguém poderá encher da
mesma maneira o meu coração.
O sonho confundiu-me. Quando o pai me beijou esta
manhã, apeteceu-me gritar: "Ai!, se fosses antes o Peter!"
Só posso pensar nele e durante todo o dia repito de mim
para mim :
-Oh, Peter, meu querido Peter!
Ninguém me pode ajudar. Tenho de continuar a viver
e a pedir a Deus que me deixe reencontrar o Peter logo
que eu fique em liberdade. Então há - de ler nos meus
olhos que o amo e há - de dizer :
-Oh! Anne, se eu soubesse já te tinha procurado há
mais tempo!
O pai disse-me uma vez, ao falar comigo sobre sexualidade, que eu ainda não podia
compreender este desejo,
esta ânsia. Mas eu sabia que podia compreender, e agora
compreendo sem dúvida! Nada me é tão caro como tu,
meu Peter!
Contemplei a minha cara no espelho e achei-a transformada. Os meus olhos são agora muito
claros e profundos,
a pele é rosada como a não tinha há muitas semanas, e a
boca parece-me mais meiga. Tenho um ar de pessoa feliz
e, todavia, há qualquer tristeza no meu olhar que afugenta
o sorriso dos meus lábios. Não, não posso ser feliz, porque
sei que os pensamentos do Peter não estão comigo. Mas
sinto os seus queridos olhos fixos em mim e a sua face,
suave e fresca, contra a minha.
Oh! Peter, Peter, como me hei de libertar da tua imagem?
Qualquer outro que venha a tomar o teu lugar
não passará de um substituto mesquinho! É a ti que amo,
e de tal forma te amo que o amor não coube no meu
coração e rompeu para se me revelar em toda a sua imensa
plenitude.
Ainda há uma semana, mesmo ainda ontem, se me
tivessem perguntado com quem eu queria casar-me, teria
respondido:-Não sei.-Mas agora queria gritar alto para
que me ouvissem:
-Quero o Peter, só o Peter! Amo-o com todo o meu
coração, com toda a minha alma - mas não quero que ele
toque senão no meu rosto.
Estive hoje no sótão junto da janela aberta e imaginei
conversar com ele. Acabamos por chorar os dois e senti
nitidamente a sua boca e o seu rosto cheios de ternura
por mim.
-Oh, Peter, pensa em mim! Vem, meu querido, querido
Peter!
Tua Anne.

Quarta-feira, 12 de Janeiro de 1944.
Qerida Kitty:
Há quinze dias voltou a Elli. A Miep e o Henk não
puderam vir durante dois dias porque comeram alguma
coisa que lhes fez mal ao estômago.
A maior novidade que tenho a dar-te é que me interesso
agora pelo "ballet" e treino-me a dançar todas as noites.
A Mansa transformou-me um vestido de renda azul-claro
num ultramoderno vestido de "ballet". Uma fita passa no
decote e cruza sobre o peito. Um laçarote enorme remata
tudo. Mas em vão tentei transformar os meus sapatos de
ginástica em sandálias de "ballet". Os meus membros, que
tinham ficado quase rígidos, começam a tornar-se flexíveis
como eram dantes. Um exercício estupendo, é assim:
sentada no chão e segurando em cada mão um calcanhar,
levantar as duas pernas sem dobrar os joelhos. Para fazer
isto sento-me em cima de uma almofada para não torturar
tanto o meu pobre cóccix.
Os adultos estão a ler um livro: Manhã sem nuvens.
A mãe acha-o muito bom. Focam-se nele problemas da
juventude. Cheia de ironia pensei de mim para mim:
-E se tu tratasses antes de compreender os jovens
com quem vives? Julgo que a mãe está convencida de que
a Margot e eu vivemos nas melhores relações do mundo
com os nossos pais e que ninguém compreende tão bem
os filhos como ela. Mas em boa verdade isso só sucede
com a Margot e, creio-o bem, porque ela não tem pensamentos
e problemas como eu. Não tenciono fazer ver à mãe que no íntimo de uma das suas filhas as
coisas se
passam de uma maneira muito diferente do que ela imagina.
Ficaria admirada mas não seria capaz de resolver nada a
meu respeito. Sentir-se-ia apenas triste, e não vale a pena
dar-lhe este desgosto, principalmente porque tudo, ao
fim e ao cabo, ficaria na mesma.
A mãe bem sente na Margot uma dedicação maior do
que em mim. Mas está convencida de que também eu me
modificarei. A Margot tem agora para mim muitos carinhos. Parece-me tão diferente! Já não
troça de mim e
é uma amiga a valer. Já não vê em mim apenas a miudinha com quem não se pode falar a sério.
É curioso : por vezes olho para mim como se fosse
outra pessoa a olhar-me. Estou contemplando esta Anne
com serenidade e calma e folheio o livro da minha vida
como se fosse pessoa estranha. Antigamente, na nossa casa,
quando eu ainda não cismava tanto, estava convencida
de que não pertencia ao pai, nem à mãe, nem à Margot,
julgava-me uma espécie de ovo de cuco. Representava
sozinha o papel de uma órfã e acabava por achar-me
ridícula nesta figura tão triste quando, na realidade,
levava uma boa vida. Depois seguiu-se um tempo em que
me esforçava por ser amável: todas as manhãs, quando
ouvia alguém subir a escada do nosso quarto, fazia votos
para que fosse a mãe para nos dar os bons-dias. Cumprimentava-a com meiguice e ficava muito
contente por ela
olhar para mim com carinho. às vezes ela, por causa disto
ou daquilo, não estava tão simpática e, então, eu ia para
a escola muito triste e desconsolada. Quando regressava,
pelo caminho, arranjava desculpas para ela, pensava que
decerto tinha preocupações; e entrava em casa bem disposta
e alegre, ansiosa por contar as minhas aventuras... até
suceder a mesma coisa e eu ir, de novo, triste e pensativa
para a escola. Por vezes resolvia mostrar o meu desapontamento. Mas ao voltar para casa tinha
sempre tantas
coisas para contar, que me esquecia. Só queria a todo o
custo que a mãe me desse atenção.
Depois veio um período em que já não me importava
de ouvir os passos na escada. Sentia-me só, enterrava a
cabeça na almofada e chorava. Aqui é tudo muito pior.
Tu bem o sabes. Mas Deus deu-me uma ajuda na minha miséria: o Peter! Pego no medalhão que
trago sempre
comigo, beijo-o e penso:
-Que tenho eu que ver com toda esta trapalhada?
Tenho o meu Peter. E o meu segredo.
Desta maneira hei de vencer muitas coisas. Haverá
quem adivinhe o que se passa na alma de uma adolescente?
Tua Anne.

Sábado, 15 de Janeiro de 1944
Querida Kitty:
Não faz sentido eu repetir-te constantemente, com todos
os pormenores, as zangas e as disputas. Só te quero contar
que guardamos agora muitas coisas separadas, o pingue,
a carne e a manteiga, por exemplo, e fritamos as nossas
batatas à parte. Conseguimos mais um bocado de pão de
centeio suplementar, porque às quatro horas da tarde os
nossos estômagos já não aguentavam com a fome.
Aproxima-se o aniversário da mãe. Já recebeu açúcar
do Kraler para o dia da festa, e agora a sra. van Daan
está com inveja por ele não lhe ter dado nenhum a ela
no dia dos seus anos. Não é lá prazer nenhum assistir todos
os dias a cenas de choros e ouvir gritos de raiva. Podes
crer, Kitty, estamos cheios até não poder mais.
A mãe exprimiu o desejo de não ver os van Daans
durante quinze dias. Mas é um desejo que ninguém lhe
pode satisfazer. Eu pergunto-me se será sempre assim na
vida: as pessoas obrigadas a viver juntas durante muito
tempo acabam por ter conflitos. Ou temos nós pouca
sorte neste caso especial? A maioria dos homens será na
verdade egoísta e mesquinha? Em certa medida, acho bem
adquirir aqui alguns conhecimentos humanos, mas agora
já me chega e sobra. A guerra ainda não acabou, e as
nossas disputas, a fome de ar e de liberdade continuam.
Temos de tentar "to make the best of it".
Para que estou eu aqui a fazer sermões? Se continuo
assim, ainda dou numa velha seca e casmurra! E gostava
tanto de ser uma moça a valer!
Tua Anne.

Sábado, 22 de Janeiro de 1944
Querida Kitty:
Podes tu dizer-me porque é que a maioria das pessoas
esconde tão ciosamente o que lhe vai no íntimo? E como
se explica que eu me porte, junto das outras pessoas, tão
diferentemente do que deveria ser? Deve haver razões
para isso. Mas acho horrível não nos confiarmos inteiramente,
mesmo àqueles que nos são mais queridos. Tenho
a sensação de ter ficado mais velha depois daquele sonho,
de ter agora mais "personalidade". Com certeza ficas
admirada por eu te confessar que até vejo os van Daans
com outros olhos. Não vejo as suas discussões e os seus
atritos só do nosso ponto de vista parcial. Porque será
que estou tão modificada?
Mas escuta. Refleti sobre tudo isto e cheguei à conclusão
de que o nosso convívio podia ser diferente, se
minha mãe fosse a Mamsi ideal. Bem sei que a sra. van Daan
não é uma pessoa delicada. Mas talvez metade dos conflitos
se pudessem ter evitado se a mãe não fosse tão difícil
nas suas relações com os outros e se tivesse mais tacto nas
conversas, pois a sra. van Daan tem também o seu lado
bom: apesar do egoísmo, da mesquinhez e da mania das
discussões, consegue-se fàcilmente levá-la a ceder. O
principal é que a gente a não irrite nem espicace. Não é
que esta receita dê sempre resultado mas, com um bocado
de paciência, a coisa vai. Questões sobre educação, mimos,
comida, etc., deviam ter sido todas abordadas com franqueza
e amizade. Assim não teríamos chegado a este ponto
nem veríamos só os lados desagradáveis dos outros.
Sei exatamente o que me queres dizer, Kitty!
-Mas, Anne, estas palavras são tuas. Então não tens
recebido tantas censuras dos de lá de cima? Não te
lembras já de todas as injustiças?-Sim, sim, lembro!
Mas, mesmo assim, as palavras são minhas. Quero eu
própria aprofundar tudo e não papaguear o que dizem
os mais velhos... Não! Quero observar os van Daans e
verificar o que é verdade e o que é exagero. Se depois disto
ainda continuar desapontada, concordarei com os pais.
Mas se os van Daans forem melhores do que nos têm
parecido a nós, tentarei emendar a opinião errada do pai
e da mãe; e se mesmo isto não der resultado, hei de continuar
a manter a minha opinião e o meu parecer. Hei de
aproveitar, de agora em diante, todas as ocasiões para falar
com a sra. van Daan e não me acanharei de dizer-lhe
sempre o que penso. Pois sempre fui considerada uma
rapariga atrevida.
Não penses sequer que quero agir contra a minha
própria família, mas fazer má-língua e ter preconceitos não
é coisa que me agrade por mais tempo. Até agora,julgava
firmemente que os van Daans eram os culpados de tudo,
mas não nos cabe a nós alguma culpa também? Pode ser
que tenhamos razão em princípio. Mas as pessoas razoáveis
-e julgo que nós somos pessoas razoáveis - devem fazer
os possíveis para conviver com toda a espécie de gente.
Reconheço isto e espero ter ocasião de poder aplicar as
minhas ideias na prática.
Tua Anne.

Segunda-feira, 24 de Janeiro de 1944
Querida Kitty :
Aconteceu-me qualquer coisa de muito estranho. Antigamente
falava-se em casa, em segredo, das coisas sexuais,
e na escola só se falava disso de um modo feio. As raparigas
falavam baixinho e por meias palavras e se alguma não
percebia o que aquilo queria dizer riam-se dela. Eu
achava tudo aquilo esquisito e pensava:
-Porque é que se fala destas coisas em segredo e de
uma maneira tão feia? Mas como não podia modificar
nada, calava-me ou falava do assunto, de longe em longe,
com uma amiga mais íntima. Mais tarde comecei a compreender
tudo e os pais também resolveram explicar-me
as coisas. A mãe disse uma vez :
-Anne, dou-te o conselho de não abordares este tema
com os rapazes e, sempre que eles queiram começar, muda
de assunto.
Ainda me lembro de que respondi:
-Pois claro, mãe, que ideia!
E assim mantive as coisas até agora.
Aqui, nos primeiros tempos, o pai falava-me, de vez
em quando, de coisas que eu antes preferia ter ouvido da
boca da mãe. O resto aprendi-o nos livros e nas conversas.
O Peter van Daan não se atrevia a dizer nada a tal respeito
e só uma vez, muito no princípio, falou no assunto, mas não
era para provocar uma resposta.
A sra. van Daan disse uma vez que nem ela nem o
marido falavam sobre isso com o Peter. Ela nem fazia
ideia até que ponto o Peter sabia dessas coisas. Ontem, quando a Margot, o Peter e eu estávamos
a descascar
batatas, a conversa caiu sobre Boschi, o gato.
-Ainda não sabemos se Boschi é gato ou gata - disse eu.
-Eu sei-disse o Peter-, é gato.
-Lindo gato - retorqui - que está à espera de gatinhos.
Pois umas semanas antes o Peter tinha dito que Boschi
estava grávida porque tinha a barriga muito gorda. Provàvelmente isso era consequência do
costume de roubar
petiscos, pois os tais gatinhos faziam-se esperar. Agora o
Peter quis defender-se.
-Queres vir ver? - disse -Quando eu, outro dia, andava
a brincar com ele, vi nitidamente que era gato.
Não consegui dominar a minha curiosidade e fui com
ele ao armazém. Mas Boschi não havia meio de aparecer.
Esperamos um bocado e depois subimos porque estava
muito frio. à tardinha ouvi o Peter descer. Cheia de
coragem atravessei a casa silenciosa e fui ao armazém.
O Peter estava a brincar com o Boschi, estava precisamente
a pesá-lo na balança.
-Olá, então queres ver agora?
Não fez cerimônias. Agarrou no Boschi pela cabeça,
segurou-lhe as patas, virou-o e a lição começou!
-Aqui é o sexo, aqui alguns cabelos soltos e isto é o
traseiro.
O Boschi deu meia volta e pôs-se em cima das suas
patinhas brancas. Se qualquer outro rapaz me tivesse
mostrado assim "o sexo masculino" eu nunca mais olharia
para ele. Mas o Peter tratou com tanta naturalidade este
tema melindroso que acabei por não achar mal nenhum.
Brincamos com o Boschi, divertimo-nos, falamos bastante
e por fim subimos devagarinho a escada.
- Quase sempre encontro num livro ao acaso aquilo
que gostava de saber. Tu também? - perguntei.
-Mas porquê? Eu cá pergunto ao meu pai. Ele sabe
muita coisa e tem grande experiência.
Estávamos em cima da escada e eu calei-me. Com outro
rapaz não podia ter falado com tanta simplicidade.
Quando a mãe me aconselhou que evitasse falar neste
assunto com rapazes, devia ser justamente isto o que ela
receava. Senti-me todo o dia um tanto confusa ao pensar naquele encontro no armazém. Mas
aprendi que se pode
falar com rapazes de uma maneira ajuizada e sem dizer
piadinhas estúpidas.
Será verdade que o Peter conversa muito com os seus
pais? E será ele, na realidade, como se me mostrou ontem.
Que sei eu dele, afinal?
Tua Anne.


Quinta-feira, 27 de Janeiro de 1944
Querida Kitty:
Ultimamente deu-me a paixão pelas árvores genealógicas,
em especial pelas das casas reais. Se uma vez se
começa a investigar, é preciso recuar cada vez mais no
tempo e, por fim, chega-se a descobertas interessantíssimas.
Os meus estudos estão a ir bem, tenho feito progressos,
já consigo perceber o "Home-Service" das emissões inglesas.
Mas aos domingos passo o tempo a fazer a escolha para a
minha coleção de "estrelas" de cinema, aliás uma coleção
já muito respeitável. O sr. Kraler, amável como é, traz
às segundas-feiras a revista de cinema. Embora os companheiros
cá do anexo, todos pouco dados a este assunto,
achem que isto de comprar uma revista de cinema é
deitar fora o dinheiro, não podem deixar de se admirar
por eu ainda saber, depois de mais de um ano de isolamento,
quem eram os artistas que trabalhavam em determinados
filmes. A Elli, nos dias de folga, vai quase sempre
ao cinema com o namorado, e quando ela me diz quais
são os filmes da semana seguinte, digo-lhe logo quem são
os artistas que entram e as críticas dos filmes. A Mansa
disse outro dia que eu, quando sairmos daqui, já não
preciso de ir ao cinema, visto que já sei o conteúdo, a
qualidade do filme e a distribuição dos papéis.
Quando apareço com um penteado novo, todos olham
para mim com ar de censura e perguntam quem é a
"estrela" que anda assim penteada. E, se lhes digo que
fui eu sòzinha que inventei aquilo, só me acreditam com
grandes reservas. E, já se vê, não me aguento mais de meia
hora com o penteado porque os critiqueiros estragam-me
o prazer. Acabo sempre por ir ao quarto de banho
restabelecer o meu penteado de todos os dias.
Tua Anne.

Sexta-feira, 28 de Janeiro de 1944
Querida Kitty:
Hoje de manhã perguntei, de mim para mim, se tu não
te sentirás como uma vaca que tem de ruminar todas as
notícias velhas e quejá está aborrecida com esta alimentação
monótona, e se não bocejas ao ler estas cartas que te não
dão novidades. Sim, bem sei, estas velhas tretas são enfadonhas, mas podes crer que eu também
já estou maçada!
Quando à mesa se não fala de política ou de boas comidas,
a mãe e a sra. van Daan põem-se a desencantar recordações
da sua juventude. Outras vezes o Dussel delira ao lembrar-se
do guarda-roupa da mulher, sempre cheio de
coisas bem escolhidas, ou falando de cavalos de corrida,
de um barquinho de remos já com rombos, de crianças
milagrosas que já sabiam nadar aos quatro anos de idade,
ou até de dores de músculos e de clientes medrosos. Já
chegamos a este ponto : se um dos oito começa a contar
uma coisa, qualquer outro pode substituí-lo e continuar
sozinho a história até ao fim. Já conhecemos o final de
todas as anedotas; só quem as conta se ri ainda com elas.
Já passamos, não sei quantas vezes, revista aos fornecedores das nossas ex-donas de casa, aos
carniceiros,
merceeiros e padeiros e, palavra, não sei o que ainda se
poderia ouvir inédito aqui no anexo. Tudo tem barbas!
Mas isto ainda seria suportável se os adultos não
tivessem o hábito desagradável de contar as histórias do
Koophuis, da Miep e do Henk dez vezes de formas diferentes, sempre enfeitadas com outras
invenções. Tenho de
me beliscar debaixo da mesa para não interromper o
narrador entusiasmado, visto que meninas como a Anne
não devem, de maneira nenhuma, corrigir os adultos, mesmo
se estes disserem petas ou começarem a inventar.
O Koophuis e o Henk contam-nos tudo o que sabem
de outra gente escondida e "mergulhada". Isto interessa-nos
imenso e vivemos e sofremos com aqueles que foram
apanhados como se de nós próprios se tratasse. Ficamos
radiantes ao ouvir que algum prisioneiro foi posto em
liberdade.
"Mergulhar" e desaparecer são agora coisas tão correntes
como eram antigamente os chinelos do pai à espera,
no Inverno, diante do fogão.
Organizações como, por exemplo, "A Holanda Livre"
fabricam falsos cartões de identidade, procuram esconderijos
seguros, fornecem os protegidos de dinheiro e de
víveres e arranjam, para os rapazes cristãos "mergulhados",
trabalho com mestres ou em empresas de confiança.
É admirável com que dignidade e altruísmo certas pessoas
fazem estes serviços, arriscando a sua própria vida para
prestarem auxílio aos outros. O melhor exemplo são os
nossos protetores que, até agora, nos têm ajudado sem
interrupção, e que nos hão de levar, se Deus quiser, até
ao fim de tudo isto. Se alguma coisa falhar, eles terão o
mesmo triste destino de todos aqueles que protegem os
judeus. Nunca deixam transparecer que lhes somos um
fardo-e não há dúvida de que somos-. nunca se queixam
das maçadas que lhes estamos a causar. Todos os dias
sobem até aqui, falam com os homens sobre o negócio e
a política, com as senhoras sobre as dificuldades do governo
da casa e conosco, os jovens, sobre livros e jornais. Entram
sempre de cara satisfeita, não se esquecem, nos dias de
festa, das flores e das prendas e estão sempre prontos a
ajudar. Não devemos esquecer nunca, apesar de todas as
heroicidades nos campos de batalha e de toda a luta
contra os opressores, os sacrifícios dos nossos amigos, aqui,
junto de nós, as provas diárias de simpatia e de amor!
Contam-se as histórias mais fantásticas deste Mundo,
mas são quase todas verdadeiras. O Koophuis falou-nos
de um desafio de futebol no Nelderland, onde de um lado
jogavam só "mergulhados" e do outro membros da guarda nacional.
Em Hilversum houve distribuição de novos cartões de
racionamento. Para que toda aquela gente que vive "mergulhada"
não ficasse privada das rações, os funcionários
do conselho convocaram os "protetores" para uma hora
certa, para lhes entregarem os cartões dos seus "mergulhados".
Mas é preciso cautela: tais façanhas não devem
chegar aos ouvidos dos "boches".
Tua Anne.

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