Total de visualizações de página

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

O Crime do Padre Amaro - Eça de Queirós [parte 23]

- Ai, tem-nos feito muita companhia, disse Amélia. Vem quase todos os dias.
- É um santo! exclamou a Gertrudes.
- Decerto, decerto, murmurou Amaro descontente dum entusiasmo tão vivo. Pessoa de muita virtude...
- De muita virtude, suspirou a velha. Mas... - calou-se, não ousando decerto exprimir as suas reservas de devota. E exclamou numa súplica: Ai, o senhor pároco é que devia vir por aqui, ajudar-me a levar esta cruz da doença...
- Hei-de vir, minha senhora, hei-de vir. É bom para a distrair, para lhe dar as noticias... E a propósito, tive ontem carta do nosso cônego.
Rebuscou na algibeira, leu alguns períodos da carta. O padre-mestre já tinha quinze banhos. A praia estava cheia de gente. A D. Maria passara doente com um furúnculo. O tempo famoso. Todas as tardes grandes passeatas a ver recolher as redes. A S. Joaneira, boa, mas falando sempre na filha...
- Pobre mamã... choramigou Amélia.
Mas a velha não se interessava com as novidades, gemendo a sua ronqueira. Foi Amélia que perguntou pelos amigos de Leiria, pelo Sr, padre Natário, pelo Sr, padre Silvério...
Ia escurecendo já: a Gertrudes fora preparar o candeeiro. Amaro enfim ergueu-se:
- Pois, minha senhora, até outro dia. Esteja certa que hei-de aparecer de vez em quando. E nada de afligir... Agasalho, boa dieta, e a misericórdia de Deus não a há-de abandonar...
- Não nos falte, senhor pároco, não nos falte!...
Amélia estendera-lhe a mão, para se despedir ali no quarto; mas Amaro gracejando:
- Se não lhe causa incômodo, menina Amélia, sempre é bom vir mostrar-me o caminho, que eu perco-me neste casarão.
Saíram ambos. E apenas no salão, a que as três largas vidraças davam ainda uma claridade:
- A velha faz-te a vida negra, filha, disse Amaro parando.

- Que mereço eu mais? respondeu ela baixando os olhos.
- Desavergonhada, eu lhas cantarei!... Minha Ameliazinha, se soubesses o que me tem custado...
E falando, ia abraçá-la pelo pescoço.


Mas ela recuou, toda perturbada.
- Que é isso? fez Amaro assombrado.
- O quê?
- Esse modo! Tu não me queres dar um beijo, Amélia? Tu estás doida?
Ela ergueu as mãos para ele, numa suplicação ansiosa, falando toda trêmula:
- Não, senhor pároco, deixe-me! Isso acabou. Bem basta o que pecamos... Quero morrer na graça de Deus... Que nunca mais se fale em semelhante coisa!... Foi uma desgraça... Acabou-se... Agora o que quero é o sossego da minha alma... 
- Tu estás tola? Quem te meteu isso na cabeça? Ouve cá...
Foi para ela outra vez, com os abraços abertos.
- Não me toque, pelo amor de Deus, - e vivamente recuou até à porta.
Ele olhou-a um momento, numa cólera muda.
- Bem, como queira, disse por fim. Em todo o caso, quero preveni- Ia que o João Eduardo voltou, que passa aqui todos os dias, e que é bom não se pôr de janela.
- Que me importa a mim o João Eduardo e os outros e tudo o que passou?...
Ele acudiu, transbordando dum sarcasmo amargo:
- Está claro, agora o grande homem é o Sr. abade Ferrão!
- Devo-lhe muito, é o que sei...
A Gertrudes neste momento entrava com o candeeiro aceso. E Amaro, sem se despedir de Amélia, abalou, de guarda-chuva em riste, rilhando os dentes de raiva.
···
Mas a longa caminhada até à cidade calmou-o. Aquilo na rapariga por fim era apenas um acesso de virtude e de escrúpulos! Vira-se ali só naquele casarão, amargurada pela velha, impressionada pelos palavrões do moralista Ferrão, longe dele, e tinha-lhe vindo aquela reação de devota com os seus terrores do outro mundo e apetites de inocência... Chalaça! Se ele começasse a ir à Ricoça, numa semana reganhava todo o seu domínio... Ah, conhecia-a bem! Era só tocar-lhe, piscar-lhe o olho... Estava logo rendida.
Passou porém uma noite inquieta, desejando-a mais que nunca. E ao outro dia à uma hora marchou para Ricoça, levando-lhe um ramo de rosas.
A velha ficou toda contente ao vê-lo. É que lhe dava saúde a presença do senhor pároco! E se não fosse a distância, havia de lhe pedir esmola de vir todas as manhãs. Até depois daquela visitinha rezava com mais fervor...
Amaro sorria, distraído, com os olhos cravados na porta.
- E a menina Amélia? perguntou por fim.
- Saiu... Isso agora todas as manhãs é a passeata, disse a velha com azedume. Vai à residência, é toda do abade...
- Ah! fez Amaro com um sorriso lívido. Nova devoção, hem?... é pessoa de muitos méritos, o abade.
- Ai, não presta, não presta! exclamou D. Josefa. Não me percebe. Tem idéias muito esquisitas. Não dá virtude...
- Homem de livros... disse Amaro.
Mas a velha erguera-se sobre o cotovelo, e baixando a voz, com o magro carão aceso em ódio:
- E aqui para nós, a Amélia tem-se portado muito mal! Nunca lho hei-de perdoar... Confessou-se ao abade... É uma indelicadeza, sendo a confessada do senhor pároco, não tendo recebido de vossa senhoria senão favores... É uma ingrata, é uma traiçoeira!...
Amaro fizera-se pálido.
- Que me diz a senhora?
- A verdade! Que ela não o nega. Até se orgulha! É uma perdida, è uma perdida! Depois do favor que lhe estamos a fazer...
Amaro disfarçou a indignação que o revolvia. Riu até. Era necessário não exagerar. Não havia ingratidão. Era uma questão de fé. Se a rapariga pensava que o abade a podia dirigir melhor, tinha razão em se abrir com ele... O que todos queriam é que ela salvasse a sua alma... Que fosse pela direção de fulano ou sicrano, isso não importava... E nas mãos do abade estava bem.
E chegando vivamente a cadeira para o leito da velha:
- Então agora, todas as manhãs vai à residência?
- Quase todas... Que ela não há-de tardar, vai depois de almoço, volta sempre a esta hora... Ai, tem-me causado isto um desgosto!...
Amaro deu um passeiozinho nervoso pelo quarto, e estendendo a mão à velha:
- Pois minha senhora, eu não me posso demorar, que vim de fugida... Até um dia cedo.
E sem escutar a velha, que lhe pedia com ansiedade que ficasse para jantar - desceu os degraus como uma pedra que rola, meteu furioso pelo caminho da residência, ainda com o seu ramo na mão.
Esperava encontrar Amélia na estrada; e não tardou em a avistar quase ao pé da casa do ferreiro, agachada ao pé do valado, apanhando sentimentalmente florinhas silvestres.
- Que fazes tu aqui? exclamou, chegando junto dela.
Ela ergueu-se, com um gritinho.
- Que fazes tu aqui? repetiu.
Àquele tu, e àquela voz colérica, ela pôs rapidamente um dedo na boca, assustada. O senhor abade estava dentro da casa com o ferreiro...
- Ouve lá, disse Amaro com os olhos chamejantes, agarrando-lhe o braço, tu confessaste-te ao abade?...
- Para que quer saber? Confessei... Não é vergonha nenhuma...
- Mas confessaste tudo, tudo? perguntou ele com os dentes cerrados de raiva.
Ela perturbou-se, e tratando-o ainda por tu:
- Foste tu que me disseste muitas vezes... Que era o maior pecado neste mundo, esconder alguma coisa ao confessor!
- Bêbeda! rugiu Amaro.
Os seus olhos devoravam-na. E, através da névoa de cólera que lhe enchia o cérebro e lhe fazia latejar as veias na fronte, achava-a mais bonita, com umas redondezas em todo o corpo que ardia por abraçar, com uns lábios vermelhos avivados pelo largo ar do campo que ele queria morder até ao sangue.
- Ouve, disse-lhe cedendo a uma invasão brutal do desejo. Ouve... Acabou-se, não me importa. Confessa-te ao diabo se te agrada... Mas hás-de ser a mesma para mim!


Nenhum comentário: