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quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

O Crime do Padre Amaro - Eça de Queirós [parte 24]

- Não, não! disse ela com força, desprendendo-se, pronta a fugir para casa do ferreiro.
- Tu mas pagarás, maldita! rosnou o padre por entre dentes, voltando as costas, descendo o caminho com passadas de desesperado.
E não abrandou o passo até à cidade, levado dum impulso de indignação que, sob aquela doce paz dum meio de Outono, lhe sugeria planos de vinganças ferozes. Chegou a casa esfalfado, ainda com o ramo na mão. Mas aí, na solidão do quarto, veio-lhe pouco a pouco o sentimento da sua impotência. Que lhe podia fazer por fim? Ir pela cidade dizer que ela estava grávida? Seria denunciar-se a si. Espalhar que estava amigada com o abade Ferrão? Era absurdo: um velho de quase setenta anos, de uma fealdade de caricatura, com todo um passado de virtude santa!... Mas perdê-la, não tornar a ter no braços aquele corpo de neve, não ouvir mais aquelas ternuras balbuciadas que lhe arrebatavam a alma para alguma coisa de melhor que o Céu... Isso não!
E era possível que ela, em seis ou sete semanas, tivesse assim esquecido tudo? Naquelas longas noites na Ricoça, só na cama, não lhe viria uma recordação das manhãs no quarto do tio Esguelhas?... Decerto: ele sabia-o da experiência de tantas confessadas que lhe tinham revelado aflitas a tentação muda e teimosa que não deixa a carne que uma vez pecou...
Não: devia persegui-la, e por todos os modos soprar-lhe aquele desejo que agora ardia nele mais alto e mais ruidoso.
Passou a noite a escrever-lhe uma carta de seis páginas, absurda, cheia de implorações apaixonadas, de argúcias místicas, de pontos de exclamação e de ameaças de suicídio...
Mandou-a ao outro dia cedo, pela Dionísia. A resposta veio só á noite, por um rapazito da quinta. Com que sofreguidão rasgou o sobrescrito! Eram apenas estas palavras: "Peço-lhe que me deixe em paz com os meus pecados".

Não desistiu: ao outro dia lá estava na Ricoça a visitar a velha. Amélia achava-se no quarto de D. Josefa, quando ele apareceu. Fez-se muito pálida; mas os seus olhos não deixaram a costura - durante a meia hora que ele ali ficou, ora num silêncio sombrio acabrunhado para o fundo da poltrona, ora respondendo distraidamente à tagarelice da velha, muito faladora essa manhã.
E na semana seguinte foi o mesmo: se o ouvia entrar fechava-se rapidamente no quarto: só vinha se a velha mandava a Gertrudes dizer-lhe ''que estava ali o senhor pároco que a queria ver''. Ia, então, estendia-lhe a mão, que ele achava sempre a escaldar - e tomando a sua eterna costura, junto da janela, ia picando o posponto com uma taciturnidade que desesperava o padre.
Tinha-lhe escrito outra carta. Ela não respondera.
Então jurava não voltar à Ricoça, desprezá-la, - mas depois de ter passado a noite, rolando-se pela cama sem poder dormir, com a mesma visão da nudez dela cravada intoleravelmente no cérebro, lá partia de manhã para a Ricoça, corando quando o apontador das obras na estrada, que o via passar todos os dias, lhe tirava o seu boné de oleado.
Numa tarde que chuviscava, ao entrar no casarão, dera com o abade Ferrão que à porta abria o seu guarda-chuva.
- Olá, por aqui, senhor abade? disse ele.
O abade respondeu naturalmente:
- Em vossa senhoria é que não há que estranhar, que vem por aqui todos os dias...
Amaro não se conteve; e tremendo de cólera:
- E que lhe importa ao senhor abade se eu venho ou não? A casa é sua?
Aquela brutalidade tão injustificável ofendeu o abade:
- Pois era melhor para todos que não viesse...
- E por quê, senhor abade? e por quê? gritou Amaro, perdido.
Então, o bom homem estremeceu. Cometera, ali, a culpa mais grave do sacerdote católico: o que sabia de Amaro, dos seus amores, era em segredo de confissão; e era trair o mistério do sacramento, mostrar que desaprovava aquela insistência no pecado. Tirou muito baixo o seu chapéu e disse humildemente:
- Tem vossa senhoria razão. Peço perdão do que disse sem refletir. Muito boas-tardes, senhor pároco.
- Muito boas-tardes, senhor abade.
Amaro não entrou na Ricoça. Voltou para a cidade sob a chuva que batia forte agora. E, apenas em casa, escreveu uma longa carta a Amélia, em que lhe contava a cena com o abade, acabrunhando-o de acusações - sobretudo de lhe trair indiretamente o segredo da confissão. Como das outras, desta carta não veio resposta da Ricoça.
Amaro então começou a acreditar que tanta resistência não podia vir só do arrependimento e do terror do inferno... "Ali há homem", pensou. E devorado dum ciúme negro principiou a rondar de noite a Ricoça: mas não viu nada; o casarão permanecia adormecido e apagado. Uma ocasião, porém, ao aproximar-se do muro do pomar, sentiu adiante no caminho que desce dos Poiais uma voz cantarolar sentimentalmente a valsa dos Dois mundos, e um ponto brilhante de charuto aceso adiantar-se na escuridão. Assustado, refugiou-se num casebre que desmantelava em ruínas do outro lado da estrada. A voz calou-se; e Amaro, espreitando, viu então um vulto que parecia embrulhado num xalemanta claro, parado, contemplando as janelas da Ricoça. Um furor de ciúme apossou-se dele, e ia saltar e atacar o homem - quando o viu seguir tranquilamente ao comprido da estrada, de charuto alto, trauteando:
Ouves ao longe retumbar na serra
O som do bronze que nos causa horror...
Pela voz, pelo xalemanta, pelo andar tinha reconhecido João Eduardo. Mas teve a certeza que se um homem falava de noite a Amélia ou entrava na quinta - não era decerto o escrevente. Todavia, receoso de ser descoberto, não tornou a rondar o casarão.
Era com efeito João Eduardo, que sempre que passava pela Ricoça, de dia ou de noite, parava um momento a olhar melancolicamente as paredes que ela habitava. Porque apesar de tantas desilusões, Amélia permanecera para o pobre rapaz a ela, a bem-amada, a coisa mais preciosa da terra. Nem em Ourém, nem em Alcobaça, nem pelas estalagens onde errara, nem em Lisboa, onde chegara como vem à praia uma quilha de barco naufragado, deixara um momento de a ter presente na alma e de se enternecer com as saudades dela. Durante esses dias tão amargos de Lisboa, os piores da sua vida, em que fora fiel de feitos dum cartório obscuro, perdido naquela cidade que lhe parecia ter a vastidão duma Roma ou duma Babilônia e em que sentia o duro egoísmo das multidões azafamadas, esforçava- se mesmo por desenvolver mais esse amor que lhe dava como a doçura duma companhia. Achava-se menos isolado, tendo sempre no espírito aquela imagem com quem travava diálogos imaginados, nos seus infindáveis passeios ao longo do Cais do Sodré, acusando-a das tristezas que o envelheciam.
E esta paixão, sendo para ele como a indefinida justificação das suas misérias, tomava-o aos seus próprios olhos interessante. Era "um mártir de amor"; isto consolava-o, como o consolara nas suas primeiras desesperações considerar-se "uma vítima das perseguições religiosas". Não era um pobre-diabo banal a quem o acaso, a preguiça, a falta de amigos, a sorte e os remendos do casaco mantêm fatalmente nas privações da dependência: era um homem de grande coração, a quem uma catástrofe em parte amorosa e em parte política, um drama doméstico e social, forçara assim, depois de lutas heroicas, a viajar de um a outro cartório com um saco de lustrina cheio de autos. O destino tornara-o igual a tantos heróis que lera nas novelas sentimentais... E o seu paletó coçado, os seus jantares a quatro vinténs, os dias em que não tinha dinheiro para tabaco, tudo atribuía ao amor fatal de Amélia e à perseguição duma classe poderosa, dando assim, por um instinto muito humano, uma origem grandiosa às suas misérias triviais... Quando via passar os que ele chamava felizes - indivíduos batendo tipoia, rapazes que encontrava com uma linda mulher pelo braço, gente bem atabafada que se dirigia aos teatros, sentia-se menos desgraçado pensando que também ele possuía um grande luxo interior que era aquele amor infeliz. E quando enfim por um acaso obteve a certeza dum emprego no Brasil, o dinheiro da passagem, idealizava a sua aventura banal de emigrante, repetindo-se durante todo o dia que ia passar os mares, exilado do seu país por uma tirania combinada de padres e autoridades e por ter amado uma mulher!
Quem lhe diria então, ao emalar o seu fato no baú de lata, que daí a semanas estaria outra vez a meia légua desses padres e dessas autoridades, contemplando de olho temo a janela de Amélia! Fora aquele singular Morgadinho de Poiais - que não era nem Morgadinho nem de Poiais, e apenas um ricaço excêntrico de ao pé de Alcobaça que comprara aquela velha propriedade dos fidalgos de Poiais, e que, com a posse da terra, recebia do povo da freguesia a honra do título: fora esse santo cavalheiro que o livrara dos enjôos no paquete e dos acasos da emigração. Encontrara-o casualmente no cartório onde ele ainda trabalhava nas vésperas da viagem. O Morgadinho cliente do velho Nunes, conhecia-lhe a história, a façanha do Comunicado, o escândalo no Largo da Sé; e já de há muito concebera por ele uma simpatia ardente.
O Morgadinho tinha com efeito por padres um ódio maníaco, a ponto de não ler no jornal a notícia dum crime, sem decidir (ainda mesmo quando o culpado estava já sentenciado) que "no fundo devia de haver na história um sotaina". Dizia-se que este rancor provinha dos desgostos que lhe dera sua primeira mulher, devota célebre de Alcobaça. Apenas viu João Eduardo em Lisboa e soube da viagem próxima, teve imediatamente a ideia de o trazer para Leiria, instalá-lo nos Poiais, e entregar-lhe a educação das primeiras letras dos seus dois pequenos como um insulto estridente feito a todo o clero diocesano. Imaginava de resto João Eduardo um ímpio; e isto convinha ao seu plano filosófico de educar os rapazitos num "ateísmo desbragado". João Eduardo aceitou, com as lágrimas nos olhos: era um salário magnífico que lhe vinha, uma posição, uma família, uma reabilitação estrondosa...
- Oh, senhor Morgado, nunca hei-de esquecer o que faz por mim!...
- É para meu gosto próprio!... É para arreliar a canalha! E partimos amanhã!
Em Chão de Maçãs, apenas desceu do vagão, exclamou logo para o chefe da estação que não conhecia João Eduardo, nem a sua história:
- Cá o trago, cá o trago um triunfo! Vem para quebrar a cara a toda a padraria... E se houver custas a pagar, sou eu que as pago!
O chefe da estação não estranhou - porque o Morgadinho passava no distrito por maluco.
Foi aí, nos Poiais, logo ao outro dia da sua chegada, que João Eduardo soube que Amélia e D. Josefa estavam na Ricoça. Soube-o pelo bom abade Ferrão, o único sacerdote a quem o Morgado falava, e que recebia em casa, não como padre, mas como cavalheiro.
- Eu como cavalheiro estimo-o, Sr. Ferrão, costumava ele dizer, mas como padre abomino-o!
E o bom Ferrão sorria, sabendo que, sob aquela ferocidade de ímpio obtuso, havia um santo coração, um pai de pobres na freguesia...
O Morgado era também grande amador de alfarrábios, questionador incansável; às vezes os dois tinham pelejas tremendas sobre história, botânica, sistemas de caça... Quando o abade, no fogo da controvérsia, punha de alto alguma opinião contrária:
- O senhor apresenta-me isso como padre ou como cavalheiro? exclamava, empinando-se, o Morgado.
- Como cavalheiro, Sr. Morgado.
- Então aceito a objeção. É sensata. Mas se fosse como padre, quebrava-lhe os ossos.
Às vezes pensando irritar o abade, mostrava-lhe João Eduardo, batendo de alto no ombro do rapaz, numa carícia de amador, como a um cavalo favorito:
- Veja-me isto! Já ia dando cabo de mim. E ainda há-de matar dois ou três... E se o prenderem eu hei-de livrá-lo da forca!
- Isso não é difícil, Sr. Morgado, dizia o abade tomando tranquilamente a sua pitada. Que já não há forca em Portugal...
Então era uma indignação do Morgado. Não havia forcas? E por que não? Porque tínhamos um governo livre e um rei constitucional! Que se se seguisse a vontade dos padres, havia uma forca em cada praça e uma fogueira em cada esquina!
- Diga-me uma coisa, Sr. Ferrão, o senhor vem defender aqui em minha casa a Inquisição?
- Oh, Sr. Morgado, eu nem sequer falei da Inquisição...
- Não falou por medo! Porque sabe perfeitamente que lhe enterrava uma faca no estômago!
E tudo isto aos gritos e aos pulos pela sala, fazendo um vendaval com as abas prodigiosas do seu robe-de-chambre amarelo.
- No fundo um anjo, dizia o abade a João Eduardo. Capaz de dar a camisa mesmo a um padre, se o soubesse em necessidade... E você aqui está bem, João Eduardo... É não lhe reparar nas manias...
Tinha tomado afeição a João Eduardo, o abade Ferrão: e sabendo por Amélia a famosa legenda do Comunicado quisera, segundo a sua expressão querida, "folhear o homem aqui e além". Conversava com ele tardes inteiras na rua de loureiros da quinta, na residência onde João Eduardo se ia fornecer de Iivros; e sob o "exterminador de padres", como dizia o Morgado, encontrara um pobre moço sensível, com uma religião sentimental, ambições de paz doméstica, e prezando muito o trabalho. Então viera-lhe uma ideia que, sobretudo por lhe ter acudido num dia que saia das suas devoções ao Santíssimo, lhe parecia descida de cima, da vontade do Senhor: era o casá-lo com Amélia. Não seria difícil levar aquele coração fraco e terno a perdoar o erro dela; e a pobre rapariga, depois de tantos transes, extinta aquela paixão que lhe entrara na alma como um sopro do demônio, levando-lhe a vontade, a paz e o pudor de empurrão para o abismo, encontraria na companhia de João Eduardo todo um resto de vida calmo, e contente, um canto suave de interior, refúgio doce e purificação do passado. Não falou nem a um, nem a outro, nesta idéia que o enternecia. Não era o momento agora, que ela trazia nas entranhas o filho do outro. Mas ia preparando com amor aquele resultado, - sobretudo quando estava com Amélia, contando-lhe as suas conversas com João Eduardo, algum dito muito sensato que ele tivera, os bons cuidados de preceptor que estava desenvolvendo na educação dos Morgaditos.
- É um bom rapaz, dizia. Homem de família... Destes a quem uma mulher pode realmente confiar a sua vida e a sua felicidade. Se eu pertencesse ao mundo, se tivesse uma filha, dava-lha...
Amélia não respondia, corando.
Já não podia objetar àqueles elogios persuasivos a antiga, a grande objeção - o Comunicado, a impiedade! O abade Ferrão destruíra-lha um dia, com uma palavra:
- Eu li o artigo, minha senhora. O rapaz não escreveu contra os sacerdotes, escreveu contra os fariseus!
E para atenuar este julgamento severo, o menos caridoso que tivera havia muitos anos, acrescentou:
- Enfim, foi uma falta grave... Mas está muito arrependido. Pagou-o com lágrimas, e com fome.
E isto enternecia Amélia.
···
Fora também por esse tempo que o doutor Gouveia começara a vir à Ricoça, porque D. Josefa tinha piorado com os dias mais frios do Outono. Amélia, ao princípio, à hora da visita, fechava-se no seu quarto, tremendo à idéia de ver o seu estado descoberto pelo velho doutor Gouveia, o médico da casa, aquele homem duma severidade legendária. Mas enfim fora necessário aparecer no quarto da velha, para receber as suas instruções de enfermeira sobre as horas dos remédios e as dietas. E um dia que acompanhara o doutor até à porta, ficou gelada, vendo-o parar, voltar-se para ela cofiando a sua grande barba branca que lhe caía sobre o jaquetão de veludo, e dizer-lhe sorrindo:
- Eu bem tinha dito a tua mãe que te casasse!
Duas lágrimas saltaram-lhe dos olhos.
- Bem, bem, pequena, não te quero mal por isso. Estás na verdade. A natureza manda conceber, não manda casar. O casamento é uma fórmula administrativa...
Amélia olhava-o, sem o compreender, com as duas lágrimas muito redondinhas a correrem-lhe devagar pela face. Ele bateu-lhe com os dedos no queixo, muito paternal:
- Quero dizer que, como naturalista, regozijo-me. Acho que te tornaste útil à ordem geral das coisas. Vamos ao que importa...
Deu-lhe então conselhos sobre a higiene que devia ter.
- E quando chegar a ocasião, se te vires atrapalhada, manda-me chamar...
Ia descer; Amélia deteve-o, e com uma suplicação assustada:
- Mas o senhor doutor não vai dizer nada na cidade...
O doutor Gouveia parou:
- Então não é estúpida?... Está bom, também to perdoo. Está na lógica do teu temperamento. Não, não digo nada, rapariga. Mas para que diabo, então, não casaste tu com esse pobre João Eduardo? Fazia-te tão feliz como o outro, e já não tinhas de pedir segredo... Enfim, isso para mim é um detalhe secundário... O essencial é o que te disse... Manda-me chamar. Não te fies muito nos teus santos... Eu entendo mais disso que Santa Brígida ou lá quem é. Que tu és forte, e hás-de dar um bom mocetão ao Estado.

Todas estas palavras que em parte não compreendera bem, mas em que sentia uma vaga justificação e uma bondade de avô indulgente, sobretudo aquela ciência que lhe prometia a saúde e a que as barbas grisalhas do doutor, umas barbas de Padre Eterno, davam um ar de infalibilidade, reconfortaram-na, aumentaram a serenidade que havia semanas gozava, desde a sua confissão desesperada na capela dos Poiais.
Ah, fora decerto Nossa Senhora, compadecida enfim dos seus tormentos, que lhe mandara do Céu aquela inspiração de se ir entregar toda dorida aos cuidados do abade Ferrão! Parecia-lhe que deixara lá, no seu confessionário azul-ferrete, todas as amarguras, os terrores, a negra farrapagem de remorso que lhe abafava a alma. A cada uma das suas consolações tão persuasivas sentira desaparecer o negrume que lhe tapava o Céu; agora via tudo azul; e quando rezava, já Nossa Senhora não desviava o rosto indignado. É que era tão diferente aquela maneira de confessar do abade! Os seus modos não eram os do representante rígido dum Deus carrancudo; havia nele alguma coisa de feminino e de maternal que passava na alma como uma carícia; em lugar de lhe erguer diante dos olhos o sinistro cenário das chamas do Inferno, mostrara-lhe um vasto Céu misericordioso com as portas largamente abertas, e os caminhos multiplicados que lá conduzem, tão fáceis e tão doces de trilhar que só a obstinação dos rebeldes se recusa a tentá-los. Deus aparecia, naquela suave interpretação da outra vida, como um bom bisavô risonho; Nossa Senhora era uma irmã de caridade; os santos, camaradas hospitaleiros! Era uma religião amável, toda banhada de graça, em que uma lágrima pura basta para remir uma existência de pecado. Que diferente da soturna doutrina que desde pequena a trazia aterrada e trêmula! Tão diferente - como aquela pequena capela de aldeia da vasta massa de cantaria da Sé. Lá, na velha Sé, muralhas da espessura de côvados separavam da vida humana e natural: tudo era escuridão, melancolia, penitência, faces severas de imagens; nada do que faz a alegria do mundo ali entrava, nem o alto azul, nem os pássaros, nem o ar largo dos prados, nem os risos dos lábios vivos; alguma flor que havia era artificial; o enxota-cães lá se postava ao portal para não deixar passar as criancinhas; até o sol estava exilado, e toda a luz que havia vinha dos lampadários fúnebres. E ali, na capelita dos Poiais, que familiaridade da natureza com o bom Deus! Pelas portas abertas penetrava a aragem perfumada das madressilvas; pequerruchos brincando faziam sonoras as paredes caiadas; o altar era como um jardinete e um pomar; pardais atrevidos vinham chilrear até junto aos pedestais das cruzes; às vezes um boi grave metia o focinho pela porta com a antiga familiaridade do curral de Belém, ou uma ovelha tresmalhada vinha regozijar-se de ver uma da sua raça, o Cordeiro Pascal, dormir regaladamente ao fundo do altar com a santa cruz entre as patas.
Além disso o bom abade, como ele lhe dissera, "não queria impossíveis". Sabia bem que ela não podia arrancar num momento aquele amor culpado, que ganhara raízes até às profundezas do seu ser. Queria apenas que, quando a assaltasse a ideia de Amaro se abrigasse logo na ideia de Jesus. Com a força colossal de Satanás, que tem o poder dum Hércules, uma pobre rapariga não pode lutar braço a braço; pode somente refugiar- se na oração quando o sente, e deixá-lo fatigar-se de rugir e espumar em tomo desse asilo impenetrável. Ele mesmo cada dia a ia ajudando naquela repurificação da alma, com uma solicitude de enfermeiro: fora ele que lhe marcara, como um ensaiador num teatro, a atitude que devia ter na primeira visita de Amaro à Ricoça; era ele que chegava, com alguma breve palavra reconfortante como um cordial, se a via vacilar naquela lenta reconquista da virtude; se a noite fora agitada das lembranças cálidas dos prazeres passados, era durante toda a manhã uma boa palestra, sem tom pedagógico, em que lhe mostrava familiarmente que o Céu lhe daria alegrias maiores que o quarto enxovalhado do sineiro. Chegara, com uma sutileza de teólogo, a demonstrar-lhe que no amor do pároco não havia senão brutalidade e furor bestial; que, doce como era o amor do homem, o amor do padre só podia ser uma explosão momentânea do desejo comprimido; quando tinham começado as cartas do pároco, analisara-lhas frase a frase, revelando-lhe o que elas continham de hipocrisia, de egoísmo, de retórica, e de desejo torpe...
Ia-a assim lentamente desgostando do pároco. Mas não a desgostava do amor legítimo, purificado pelo sacramento; conhecia bem que ela era toda de carne e de desejos, e que lançá-la violentamente no misticismo seria apenas torcer-lhe um momento o instinto natural e não criar-lhe uma paz duradoura. Não tentava arrancá-la bruscamente à realidade humana; ele não a queria para freira; só desejava que aquela força amante que sentia nela servisse à alegria dum esposo e à útil harmonia duma família, e não se gastasse erradamente em concubinagens casuais... No fundo o bom Ferrão preferiria decerto na sua alma de sacerdote que a rapariga se separasse absolutamente de todos os interesses egoístas do amor individual, e se desse, como irmã de caridade, como enfermeira dum recolhimento, ao amor mais largo de toda a humanidade. Mas a pobre Ameliazita tinha a carne muito bonita e muito fraca; não seria prudente assustá-la com sacrifícios tão altos; era toda mulher - toda mulher devia ficar; limitar-lhe a ação era estragar- lhe a utilidade. Cristo não lhe bastava com os seus membros ideais pregados na cruz: era-lhe necessário um homem como todos, de bigode e chapéu alto. Paciência! Que ao menos ele fosse um esposo sob a legitimação sacramental...
Assim a ia curando daquela paixão mórbida com uma direção de todos os dias, uma destas persistências de missionário que só dá a fé sincera, pondo a sutileza dum casuísta ao serviço da moralidade de um filósofo, paternal e hábil - uma cura maravilhosa de que o bom abade em segredo tirava alguma vaidade.
E foi grande a sua alegria quando lhe pareceu que enfim z paixão por Amaro já não era na alma dela um sentimento vivo; mas estava morto, embalsamado, arrumado no fundo da sua memória como num jazigo, escondido já sob a delicada florescência duma virtude nova. Assim julgava pelo menos o bom Ferrão - vendo-a agora aludir ao passado com o olhar tranqüilo, sem aqueles rubores que outrora lhe escaldavam a face ao simples nome de Amaro.
Ela, com efeito, já não pensava no senhor pároco com a comoção de outrora: o terror do pecado, a influência penetrante do abade, aquela brusca separação do meio devoto em que o seu amor se desenvolvera, o gozo que sentia numa serenidade maior, sem sustos noturnos e sem a inimizade de Nossa Senhora, tudo concorrera para que o fogo ruidoso daquele sentimento se fosse reduzindo a alguma brasa que ainda rebrilhava surdamente. O pároco estivera ao princípio na sua alma com o prestígio dum ídolo coberto de ouro; mas tantas vezes, desde a sua gravidez, sacudira, nas horas de terror religioso ou de arrependimento histérico, aquele ídolo, que todo o dourado lhe ficara nas mãos, e a forma trivial e escura que aparecia por baixo já a não deslumbrava; viu por isso o abade derrubar-lho inteiramente, sem chorar e sem lutar. Se ainda pensava em Amaro, é porque não podia deixar de pensar na casa do sineiro; mas o que a tentava ainda era o prazer e não o pároco.
E com a sua natureza de boa rapariga tinha um reconhecimento sincero pelo abade. Como dissera a Amaro naquela tarde, "devia-lhe tudo". Era o que sentia agora também pelo doutor Gouveia, que vinha regularmente ver a velha de dois em dois dias. Eram os seus bons amigos, como dois papás que o Céu lhe mandava - um que lhe prometia a saúde, outro a graça.
Refugiada naquelas duas proteções, gozou uma paz adorável nas últimas semanas de Outubro. Os dias iam muito serenos e muito tépidos. Era bom estar no terraço, pelas tardes, naquela serenidade outonal dos campos. O doutor Gouveia às vezes encontrava-se com o abade Ferrão; ambos se estimavam; depois da visita à velha, iam para o terraço, e começavam logo as suas eternas questões sobre Religião e sobre Moral.

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