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quarta-feira, 20 de novembro de 2013

O Crime do Padre Amaro - [parte 12]

 Provarei, disse Amaro, tomando um ladrilho em que cravou os dentes com dignidade.
- É dos marmelos da D. Maria. Saiu-me melhor que a das Gansosinhos...
- Pois adeus, D. Josefa... Ah, é verdade, que diz o nosso cônego deste caso do escrevente?
- O mano?...
Neste momento a campainha embaixo repicou com furor.
- Há de ser ele, disse logo D. Josefa. E vem zangado!
Vinha, com efeito, da fazenda - furioso com o caseiro, o regedor, o governo e a perversidade dos homens. Tinham-lhe roubado uma porção de cebolinho; e, abafado de cólera, aliviava-se repetindo com gozo o nome do Inimigo.
- Credo, mano, que até lhe fica mal! - exclamou D. Josefa tomada de escrúpulos.
- Ora, mana, deixemos essas pieguices para a quaresma! Digo co'os diabos! e repito co'os diabos! Mas eu lá disse ao caseiro, que se sentir gente na fazenda, carregue a espingarda e faça fogo!
- Há uma falta de respeito pela propriedade... disse Amaro.
- Há uma falta de respeito por tudo! exclamou o cônego. Um cebolinho que dava saúde só olhar para ele! Pois senhores, lá vai! Isto é o que eu chamo um sacrilégio!... Um desaforado sacrilégio! - acrescentou com convicção; porque o roubo do seu cebolinho, o cebolinho dum cônego, parecia-lhe um ato tão negro de impiedade como se tivessem sido furtados os vasos santos da Sé.
- Falta de temor a Deus, falta de religião, observou D. Josefa.
- Qual falta de religião! replicou o cônego exasperado. Falta de cabos de polícia, é o que é! - E voltando-se para Amaro: - Hoje é o enterro da velha, hem? Inda mais essa! Vá, mana, mande-me lá dentro uma volta lavada e os sapatos de fivela!
O padre Amaro então, retomado pela sua preocupação:
- Estávamos cá a falar do caso do João Eduardo: o Comunicado!



- Isso é outra maroteira que tal, fez logo o cônego. Vejam essa, também! Que quadrilha vai pelo mundo, que quadrilha! - e ficou de braços cruzados, com os olhos arregalados, como contemplando uma legião de monstros, soltos pelo universo, e arremessando-se com impudência contra as reputações, os princípios da Igreja, a honra das famílias e o cebolinho do clero.
Ao sair, o padre Amaro renovou ainda as suas recomendações a D. Josefa, que o acompanhara ao patamar.
- Então hoje, noite de pêsames, não se faz nada. Amanhã fala à rapariga, e lá para o fim da semana leva-me à Sé. Bem. E convença a rapariga, D. Josefa, trate de salvar aquela alma! Olhe que Deus tem os olhos em si. Fale-lhe teso, fale-lhe teso!... E o nosso cônego que se entenda com a S. Joaneira.
- Pode ir descansado, senhor pároco. Sou madrinha, e, quer ela queira quer não, hei-de pô-la no caminho da salvação...
- Amém, disse o padre Amaro.
Nessa noite, com efeito, D.Josefa "não fez nada". Eram os pêsames na Rua da Misericórdia. Estavam embaixo, na saleta, alumiada lugubremente por uma só vela com um abajur verde-escuro. A S. Joaneira e Amélia, de luto, ocupavam tristemente o canapé ao centro; e em redor, nas fileiras de cadeiras apoiadas à parede, as amigas, cobertas de negro pesado, conservavam-se funebremente imóveis, de faces contristadas, num torpor mudo: às vezes duas vozes ciciavam, ou dum canto, na sombra, saía um suspiro: depois o Libaninho, ou Artur Couceiro, ia em bicos de pés espevitar o morrão da vela; a D. Maria da Assunção expectorava o seu catarro com um som choroso: e no silêncio ouviam tamancos bater no lajedo da rua, ou os quartos de hora no relógio da Misericórdia.
A intervalos a Ruça, toda de negro, entrava com o tabuleiro de doces e copos de chazada; levantava-se então o abajur; e as velhas, que já iam cerrando as pálpebras, sentindo a sala mais clara, levavam logo os lenços aos olhos, e, com ais, serviam-se de bolinhos da Encarnação.
João Eduardo lá estava, a um canto, ignorado, ao pé da Gansoso surda que dormia com a boca aberta: toda a noite o seu olhar procurara debalde o olhar de Amélia, que não se movia, com o rosto sobre o peito, as mãos no regaço, torcendo e destorcendo o seu lenço de cambraieta. O Sr. padre Amaro e o Sr. cônego Dias vieram às nove horas: o pároco com passos graves foi dizer à S. Joaneira:
- Minha senhora, o golpe é grande. Mas consolemo-nos, pensando que sua excelentíssima mana está a esta hora gozando a companhia de Jesus Cristo.
Houve em redor uma murmuração de soluços; e como não restavam cadeiras, os dois eclesiásticos sentaram-se aos dois cantos do canapé, tendo no meio a S. Joaneira e Amélia em lágrimas. Eram assim reconhecidos pessoas de família; a Sra. D. Maria da Assunção notou baixinho a D. Joaquina Gansoso:
- Ai, até dá gosto vê-los assim todos quatro!
E até às dez horas a noite de pêsames continuou soturna e sonolenta, perturbada apenas pela tosse constante de João Eduardo que estava constipado, e que (na opinião da Sra. D. Josefa Dias que o disse a todos, depois), "tossia só para fazer troça e para achincalhar o respeito aos mortos".
···
Daí a dois dias, às oito horas da manhã, a Sra. D. Josefa Dias e Amélia entraram na Sé - depois de terem falado no terraço à Amparo, mulher do boticário, que tinha uma criança com sarampo, e, apesar de não ser coisa de cuidado, "viera à cautela fazer uma promessa".
O dia estava enevoado, a igreja tinha luz parda. Amélia, pálida sob a sua mantilha de renda, parou defronte do altar de Nossa Senhora das Dores, deixou-se cair de joelhos, e ficou imóvel, com o rosto sobre o livro de missa. A Sra. D. Josefa Dias, com passos fofos, depois de se ter prostrado diante da capela do Santíssimo e do altar-mor, foi empurrar devagarinho a porta da sacristia: o padre Amaro lá passeava, com os ombros vergados, as mãos atrás das costas:
- Então? perguntou logo, erguendo para D. Josefa a sua face muito barbeada, onde os olhos reluziam inquietos.
- Está ali, disse a velha baixinho, numa expressão de triunfo. Fui eu mesma buscá-la! Ai, falei-lhe teso, senhor pároco, não lhas poupei! Agora é consigo!
- Obrigado, obrigado, D. Josefa! disse o padre, apertando-lhe as mãos ambas com força. Deus há-de-lho levar em conta.
Olhou em redor, nervoso; apalpou-se para sentir o lenço, a carteira dos papéis; e, cerrando devagarinho a porta da sacristia, desceu à igreja. Amélia ainda estava ajoelhada, fazendo um vulto negro imóvel contra o pilar branco.
- Pst, fez-lhe D. Josefa.
Ela ergueu-se devagar, muito escarlate, compondo tremulamente com as mãos as pregas da mantilha em roda do pescoço.
- Aqui lha deixo, senhor pároco, disse a velha. Vou à Amparo da botica, e venho depois por ela. Ora vai filha, vai, Deus te alumie essa alma!
E saiu com mesuras a todos os altares.
O Carlos da botica - que era inquilino do cônego e um pouco ronceiro na renda - desbarretou-se com espalhafato apenas D. Josefa apareceu à porta, e conduziu-a logo acima, à sala de cortinas de cassa, onde a Amparo costurava à janela.
- Ai, não se prenda, Sr. Carlos, dizia-lhe a velha. Não largue os seus afazeres. Eu deixei a afilhada na Sé, e venho aqui descansar um bocadinho.
- Então, se me dá licença... E como vai o nosso cônego?
- Não tornou a ter a dor. Mas tem sofrido de tonturas.
- Começos de Primavera, disse o Carlos que retomara o seu ar majestoso, de pé no meio da sala, com os dedos nas aberturas do colete. Também eu me tenho sentido perturbado... Nós, as pessoas sangüíneas, sofremos sempre disto que se pode chamar o renascimento da seiva... Há uma abundância de humores no sangue, que, não sendo eliminados pelos canais próprios, vão, por assim dizer, abrir caminho, aqui e além, pelo corpo, sob a forma de furúnculo, espinha, nascida, às vezes, em lugares bem incômodos, e, ainda que em si insignificantes, acompanhados sempre, por assim dizer, dum cortejo... Perdão, sinto o praticante a palrar... Se me dá licença... Respeitos ao nosso cônego. Que use a magnésia de James!

D. Josefa então quis ver a menina com o sarampo. Mas não passou da porta do quarto, recomendando à pequena, que arregalava uns olhos de febre, muito abafada na roupa, "não se descuidasse das suas oraçõezinhas de manhã e à noite". Aconselhou à Amparo alguns remédios, que eram milagrosos no sarampo; mas se a promessa fora feita com fé, a menina podia considerar-se curada... Ai, todos os dias dava graças a Deus de se não ter casado! Que filhos eram só para dar trabalho e canseiras; e com as quezílias que traziam e o tempo que tomavam, eram até causa duma mulher se descuidar das suas práticas e meter a alma no Inferno.
- Tem razão, D. Josefa, disse a Amparo, é um castigo... E eu com cinco! Às vezes fazem-me tão doida, que me sento aqui na cadeirinha, e ponho-me a chorar só comigo...
Tinham voltado para junto da janela, e gozaram muito, espreitando o senhor administrador do conselho, que, por trás da vidraça da repartição, namorava de binóculo a do Teles alfaiate. - Ai, era um escândalo! Que nunca houvera em Leiria autoridades assim! O secretário-geral era um desaforo com a Novais... Que se podia esperar de homens sem religião, educados em Lisboa, que, segundo D. Josefa, estava predestinada a perecer como Gomorra pelo fogo do Céu! - A Amparo cosia com a cabeça baixa, envergonhada talvez diante daquela indignação piedosa, dos desejos culpados que a roíam de ver o Passeio Público e de ouvir os cantores em S. Carlos.
Mas bem depressa a Sra. D. Josefa começou a falar do escrevente. A Amparo não sabia nada; e a velha teve a satisfação de contar prolixamente, "tintim por tintim", a história do Comunicado, o desgosto na Rua da Misericórdia, e a campanha de Natário para descobrir o liberal. Alargou-se principalmente sobre o caráter de João Eduardo, a sua impiedade, as suas orgias... E, considerando um dever de cristã aniquilar o ateu, deu mesmo a entender que alguns roubos ultimamente cometidos em Leiria, eram "obra de João Eduardo".
A Amparo declarou-se "banzada". O casamento então, com a Ameliazinha...
- Isso pertence á história, declarou com júbilo D. Josefa Dias. Vão pô-lo fora de casa! E por muito feliz se deve o homem dar em não ir parar ao banco dos réus... Que a mim o deve, e à prudência do mano e do Sr. padre Amaro. Que havia motivos para o ferrar na cadeia!
- Mas a pequena gostava dele, ao que parece.
D. Josefa indignou-se. Credo, a Amélia era uma rapariga de juízo, de muita virtude! Apenas conheceu os desaforos, foi a primeira a dizer que não, e que não! Ai! detestava-o... - E D. Josefa, baixando a voz em confidência, contou "que era positivo que ele vivia com uma desgraçada para os lados do quartel".
- Disse-o o Sr. padre Natário, afirmou. - E aquilo é homem que da sua boca nunca sai senão a verdade pura... Foi muito delicado comigo, devo-lhe esse favor. Apenas soube veio-me logo dizer a casa, pedir-me conselhos... Enfim, muito atencioso.
Mas o Carlos apareceu de novo. Tinha a botica desembaraçada um momento (que não o tinham deixado respirar toda a manhã!) e vinha fazer companhia às senhoras.
- Então já sabe, Sr. Carlos, exclamou logo D. Josefa, o caso do Comunicado e do João Eduardo?
O farmacêutico arregalou os seus olhos redondos. Que relação havia entre um artigo tão indigno, e esse mancebo que lhe parecia honesto?
- Honesto? ganiu a Sra. D. Josefa Dias. Foi ele que o escreveu, Sr. Carlos!
E vendo o Carlos morder o beiço de surpresa, D. Josefa, entusiasmada, repetiu a história da "maroteira".
- Que lhe parece, Sr. Carlos, que lhe parece?
O farmacêutico deu a sua opinião, numa voz vagarosa, sobrecarregada da autoridade dum vasto entendimento:
- Nesse caso digo, e todas as pessoas de bem o dirão comigo, é uma vergonha para Leiria. Eu já tinha observado, quando li o Comunicado: a religião é a base da sociedade, e miná-la é, por assim dizer, querer aluir o edifício... É uma desgraça que haja na cidade desses sectários do materialismo e da república, que, como é sabido, querem destruir tudo o que existe; proclamam que os homens e as mulheres se devem unir com a promiscuidade de cães e cadelas... (Desculpem exprimir-me assim, mas a ciência é a ciência.) Querem ter o direito de entrar em minha casa, levar- me as pratas e o suor do meu rosto; não admitem que haja autoridades, e se os deixassem seriam capazes de cuspir na sagrada hóstia...
D. Josefa encolheu-se com um gritinho, muito arrepiada.
- E ousa esta seita falar em liberdade! Eu também sou liberal... Que, francamente o digo, eu não sou fanático... Nem pelo fato dum homem pertencer ao sacerdócio, o julgo um santo, não... Por exemplo, sempre embirrei com o pároco Miguéis... Era uma jibóia! Desculpe-me a senhora, mas era uma jiboia. Disse-lho na cara, porque a lei das rolhas já lá vai... Derramamos o nosso sangue nas trincheiras do Porto, justamente para não haver lei das rolhas... Disse-lho na cara: "Vossa senhoria é uma jibóia!" Mas, enfim, quando um homem veste uma batina deve ser respeitado... E o Comunicado, repito, é uma vergonha para Leiria... E também lhe digo, com esses ateus, esses republicanos, não deve haver consideração!... Eu sou um homem pacífico, aqui a Amparozinho conhece-me bem; pois se eu tivesse de aviar uma receita para um republicano declarado, não tinha dúvida, em lugar de lhe dar uma dessas composições benéficas que são o orgulho da nossa ciência, de lhe mandar uma dose de ácido prússico... Não, não direi que lhe mandasse ácido prússico... mas se estivesse no banco dos jurados, havia de lhe fazer cair em cima todo o peso da lei!
E balançou-se um momento sobre a ponta das chinelas, lançando um grande gesto em redor, como se esperasse os aplausos dum conselho de distrito ou duma municipalidade em sessão.
Mas na Sé bateram então devagar as onze; e D. Josefa embrulhou- se à pressa no seu mantelete para ir buscar a pequena, coitada, que havia de estar farta de esperar.
O Carlos acompanhou-a, desbarretando-se, e dizendo-lhe (como um mimo que remetia ao seu senhorio):
- Repita ao nosso cônego quais são as minhas opiniões... Que nessa questão do Comunicado e de ataques ao clero, estou de alma e coração com suas senhorias... Criado seu, minha senhora... O tempo vai-se a embrulhar.
Quando D. Josefa entrou na igreja, Amélia estava ainda no confessionário. A velha tossiu alto, ajoelhou, e, com as mãos sobre a face, abismou-se numa devoção à Senhora do Rosário. A igreja ficou numa imobilidade e num silêncio. Depois D. Josefa, voltando-se para o confessionário, espreitou por entre os dedos; Amélia conservava-se imóvel, com a mantilha muito puxada para o rosto, a roda do vestido negro espalhada em redor; e D. Josefa recaiu na sua reza. Uma chuva fina fustigava agora os vidros duma janela, ao lado. Enfim, houve no confessionário um rangido de madeira, um frufru de vestidos nas lajes, - e D. Josefa, voltando-se, viu de pé diante dela Amélia com a face escarlate e o olhar reluzindo muito.
- Está há muito tempo à espera, madrinha?
- Um bocadinho. Estás prontinha, hem?
Ergueu-se, persignou-se, e as duas senhoras saíram da Sé. Ainda caía uma chuva fina; mas o Sr. Artur Couceiro, que passava no largo com ofícios para o governo civil, foi levá-las à Rua da Misericórdia debaixo do seu guarda-chuva.

XIII

João Eduardo, à noitinha, ia sair de casa para a Rua da Misericórdia, levando debaixo do braço um rolo de amostras de papel de parede para Amélia escolher, quando à porta encontrou a Ruça que ia puxar a campainha.
- Que é, Ruça?
- As senhoras foram passar a noite fora de casa, e aqui está esta carta que manda a senhora.
João Eduardo sentiu apertar-se-lhe o coração, e seguia com o olhar pasmado a Ruça, que descia a rua, batendo os tamancos. Foi ao pé do candeeiro, defronte, abriu a carta:
"SR. JOÃO EDUARDO.
O que estava decidido a respeito do nosso casamento era na persuasão que era V. Sa. uma pessoa de bem e que me poderia fazer feliz,' mas como se sabe tudo, e que foi o senhor que escreveu o artigo do Distrito, e caluniou os amigos da casa e me insultou a mim, e como os seus costumes não me dão garantia de felicidade na vida de casada, deve desde hoje, considerar tudo acabado entre nós, pois não há banhos publicados nem despesas feitas. E eu espero, bem como a mamã, que o senhor seja bastante delicado para não nos voltar a casa, nem perseguir-nos na rua. O que tudo lhe comunico por ordem da mamã, e sou
criada de V. Sa. Amélia Caminha'' .
João Eduardo ficou a olhar estupidamente a parede defronte onde batia a claridade do candeeiro, imóvel como uma pedra, com o seu rolo de papéis pintados debaixo do braço. Maquinalmente, voltou a casa. As mãos tremiam-lhe tanto, que mal podia acender o candeeiro. De pé, junto da mesa, releu a carta. Depois ficou ali, fatigando a vista contra a chama da torcida, com uma sensação arrefecedora de Imobilidade e de Silêncio, como se subitamente, sem choque, toda a vida universal tivesse emudecido e parado. Pensou onde teriam elas ido passar a noite. Lembranças de serões felizes na Rua da Misericórdia atravessaram-lhe devagar na memória: Amélia trabalhava, com a cabeça baixa, e entre o cabelo muito preto e o colar muito branco o seu pescoço tinha uma palidez que a luz amaciava... Então a ideia de que a perdera para sempre varou-lhe o coração com um frio de punhalada. Apertou as fontes entre as mãos, tonto. Que havia de fazer? que havia de fazer? Resoluções bruscas relampejavam-lhe um momento no espírito, esvaíam-se. Queria escrever-lhe! Tirá-la por justiça! Ir para o Brasil! Saber quem descobrira que ele era o autor do artigo! - E como isto era o mais praticável àquela hora, correu à redação da Voz do Distrito.
Agostinho, estirado no canapé, com a vela ao pé sobre uma cadeira, saboreava os jornais de Lisboa. A face descomposta de João Eduardo assustou-o.
- Que é?
- É que me perdeste, maroto!
E de um só fôlego acusou furiosamente o corcunda de o ter traído.
Agostinho erguera-se devagar, procurando sem perturbação a bolsa do tabaco na algibeira da jaqueta.
- Homem, disse, nada de espalhafatos... Eu dou-te a minha palavra de honra que não disse a ninguém do Comunicado. É verdade que ninguém me perguntou...
- Mas quem foi, então? gritou o escrevente.
Agostinho enterrou a cabeça nos ombros.
- Eu o que sei é que os padres andavam numa azáfama para saber quem era. O Natário esteve aí uma manhã, por causa do anúncio de uma viúva que recorre à caridade pública, mas do Comunicado não se disse nem palavra... O doutor Godinho é que sabia, entende-te com ele! Mas então fizeram-te alguma?
- Mataram-me! disse João Eduardo lugubremente.
Ficou um momento a fixar o soalho, aniquilado, e saiu arremessando a porta. Passeou na Praça; foi ao acaso pelas ruas; depois, atraído pela obscuridade, à estrada de Marrazes. Abafava, sentindo uma intolerável palpitação surda latejar-lhe interiormente contra as fontes; apesar de ventar forte nos campos, parecia-lhe seguir um silêncio universal; por vezes a idéia da sua desgraça rasgava-lhe subitamente o coração, e então imaginava ver toda a paisagem oscilar e o chão da estrada afigurava-se-lhe mole como um lamaçal. Voltou pela Sé quando batiam onze horas; e achou-se na Rua da Misericórdia, com o olhar cravado para a janela da sala de jantar, onde havia ainda luz; a vidraça do quarto de Amélia alumiou-se também; ela ia deitar-se, decerto... Veio-lhe um desejo furioso da sua beleza, do seu corpo, dos seus beijos. Fugiu para casa; uma fadiga intolerável prostrou-o sobre a cama; depois uma saudade indefinida, profunda, foi-o amolecendo, e chorou muito tempo, enternecendo-se mais com o som dos seus próprios soluços, - até que ficou adormecido, de bruços, numa massa inerte.
···
Ao outro dia, cedo, Amélia vinha da Rua da Misericórdia para a Praça, quando ao pé do Arco, João Eduardo lhe saiu de emboscada.
- Quero falar-lhe, menina Amélia.
Ela recuou assustada, disse a tremer:
- Não tem que me falar...
Mas ele plantara-se diante dela, muito decidido, com os olhos vermelhos como carvões:
- Quero-lhe dizer... Lá do artigo, é verdade, fui eu que o escrevi, foi uma desgraça; mas a menina tinha-me ralado de ciúmes... Mas o que a menina diz de maus costumes é uma calúnia. Eu sempre fui um homem de bem...
- O Sr. padre Amaro é que o conhece! Faz favor de me deixar passar...
Ao nome do pároco, João Eduardo fez-se lívido de raiva:
- Ah! é o Sr. padre Amaro! É o maroto do padre! Pois veremos Ouça...
- Faz favor de me deixar passar! disse ela irritada, tão alto, que um sujeito gordo de xale-manta parou olhando.
João Eduardo recuou, tirando o chapéu; e ela, imediatamente, refugiou-se na loja do Fernandes.
Então, num desespero, correu a casa do doutor Godinho. Já na véspera, por entre os seus acessos de choro, sentindo-se tão abandonado, se lembrara do doutor Godinho. Fora outrora seu escrevente; e como por pedido dele entrara no cartório do Nunes Ferral, e por sua influência ia ser acomodado no governo civil, julgava-o uma Providência pródiga e inesgotável! Demais, desde que escrevera o Comunicado considerava-se da redação da Voz do Distrito, do grupo da Maia; agora, que era atacado pelos padres, devia claramente ir acolher-se à forte proteção do seu chefe, do doutor Godinho, do inimigo da reação, o "Cavour de Leiria", como dizia, arregalando os olhos, o bacharel Azevedo, autor dos Ferrões! - E João Eduardo, dirigindo-se ao casarão amarelo, ao pé do Terreiro onde o doutor vivia, ia num alvoroço de esperanças, contente em se refugiar, como um cão escorraçado, entre as pernas daquele colosso!
O doutor Godinho descera já ao escritório, e repoltreado na sua poltrona abacial de pregos amarelos, com os olhos no teto de carvalho escuro, acabava com beatitude o charuto do almoço. Recebeu com majestade os "bons-dias" de João Eduardo.
- E então que temos, amigo?
As altas estantes de infólios graves, as resmas de autos, o aparatoso painel representando o marquês de Pombal, de pé num terraço sobre o Tejo, expulsando com o dedo a esquadra inglesa - acanharam como sempre João Eduardo; e foi com voz embaraçada que disse vinha ali para que sua excelência lhe desse remédio numa desgraça que lhe sucedia.
- Desordens, bordoada?
- Não, senhor, negócios de família.
Contou então, prolixamente, a sua história desde a publicação do Comunicado; leu, muito comovido, a carta de Amélia; descreveu a cena ao pé do Arco... Ali estava agora, escorraçado da Rua da Misericórdia por obras do senhor pároco! E parecia-lhe a ele, apesar de não ser formado em Coimbra, que contra um padre que se introduzia numa família, desinquietava uma menina simples, levava por intrigas a romper com o noivo e ficava de portas adentro senhor dela - devia haver leis!
- Eu não sei, senhor doutor, mas deve haver leis!
O doutor Godinho parecia contrariado.
- Leis! exclamou traçando vivamente a perna. Que leis quer você que haja? Quer querelar do pároco?... Por quê? Ele bateu-lhe? Roubou- lhe o relógio? Insultou-o pela imprensa? Não. Então?...
- Oh, senhor doutor, mas intrigou-me com as senhoras! Eu nunca fui homem de maus costumes, senhor doutor! Caluniou-me!
- Tem testemunhas?
- Não, senhor.
- Então?
E o doutor Godinho, assentando os cotovelos sobre a banca, declarou que, como advogado, não tinha nada a fazer. Os tribunais não tomavam conhecimento dessas questões, desses dramas morais por assim dizer, que se passavam nas alcovas domésticas... Como homem, como particular, como Alípio de Vasconcelos Godinho, também não podia intervir porque não conhecia o Sr. padre Amaro, nem essas senhoras da Rua da Misericórdia... Lamentava o fato, porque enfim fora novo, sentira a poesia da mocidade, e sabia (infelizmente sabia!) o que eram esses transes do coração... E ai está tudo o que ele podia fazer - lamentar! Também para que tinha ele dado a sua afeição a uma beata?...
João Eduardo interrompeu-o:
- A culpa não é dela, senhor doutor! A culpa é do padre que a anda a desencaminhar! A culpa é dessa canalha do cabido!
O doutor Godinho estendeu com severidade a mão, e aconselhou o Sr. João Eduardo que tivesse cuidado com semelhantes asserções! Nada provava que o senhor pároco possuísse nessa casa outra influência, que não fosse a dum hábil diretor espiritual... E recomendava ao Sr. João Eduardo, com a autoridade que lhe davam os anos e a sua posição no pais, que não fosse espalhar, por despeito, acusações que só serviam para destruir o prestigio do sacerdócio, indispensável numa sociedade bem constituída! - Sem ele, tudo seria anarquia e orgia!
E recostou-se, pensando, satisfeito, que estava nessa manhã com "o dom da palavra".
Mas a face consternada do escrevente, que não se movia, de pé junto da banca, impacientava-o; e disse com secura, puxando para diante de si um volume de autos:
- Enfim, acabemos, que quer o amigo? Já vê, eu não lhe posso dar remédio.
João Eduardo replicou, com um movimento de coragem desesperada:
- Eu imaginei que o senhor doutor podia fazer alguma coisa por mim... Porque enfim eu fui uma vitima... Tudo isto vem de se saber que eu escrevi o Comunicado. E tinha-se combinado que havia de ser segredo. O Agostinho não disse, só o senhor doutor o sabia...
O doutor pulou de indignação na sua cadeira abacial:
- Que quer o senhor insinuar? Quer-me dar a entender que fui eu que o disse? Não disse... Isto é, disse; disse-o a minha mulher, porque numa família bem constituída não deve haver segredos entre esposo e esposa. Ela perguntou-me, disse-lho... Mas suponhamos que fui eu que o espalhei pelas ruas. De duas uma: ou o Comunicado era uma calúnia, e então sou eu que devo acusá-lo de ter poluído um jornal honrado com um acervo de difamações; ou era verdade, e então que homem é o senhor que se envergonha das verdades que solta e que não se atreve a manter á luz do dia as opiniões que redigiu na escuridão da noite?
Duas lágrimas enevoaram os olhos de João Eduardo. Então, diante daquela expressão esmorecida, satisfeito de o ter esmagado com uma argumentação tão lógica e tão poderosa, o doutor Godinho abrandou:
- Bem, não nos zanguemos, disse. Não se fala mais em pontos de honra... O que pode acreditar é que lamento o seu desgosto.
Deu-lhe conselhos duma solicitude paternal. Que não sucumbisse; havia mais meninas em Leiria e meninas de bons princípios que não viviam sob a direção da sotaina. Que fosse forte, e que se consolasse pensando que ele, doutor Godinho - e era ele! - também tivera em moço desgostos do coração. Que evitasse o domínio das paixões que lhe seria prejudicial na carreira pública. E que se o não fizesse por seu interesse próprio, o fizesse ao menos em atenção a ele, doutor Godinho!
João Eduardo saiu do escritório, indignado, julgando-se traído pelo doutor.
- Isto sucede-me a mim, resmungava, porque sou um pobre-diabo, não dou votos nas eleições, não vou às soirées do Novais, não subscrevo para o clube. Ah, que mundo! Se eu tivesse um par de contos de réis!...
Veio-lhe então um desejo furioso de se vingar dos padres, dos ricos, e da religião que os justifica. Voltou muito decidido ao escritório, e entreabrindo a porta:
- Vossa excelência ao menos agora dá licença que eu desabafe no jornal?... Queria contar esta maroteira, cascar nessa canalha...
Esta audácia do escrevente indignou o doutor. Endireitou-se com severidade na poltrona, e cruzando terrivelmente os braços:
- O Sr. João Eduardo está realmente a abusar! Pois o senhor vem- me pedir que transforme um jornal de ideias num jornal de difamações? Vá, não se prenda! Pede-me que insulte os princípios da religião, que achincalhe o Redentor, que repita as baboseiras de Renan, que ataque as leis fundamentais do Estado, que injurie o rei, que vitupere a instituição da família! O senhor está ébrio.
- Oh, senhor doutor!
- O senhor está ébrio! Cuidado, meu caro amigo, cuidado, olhe que vai por um declive! É por esse caminho que se chega a perder o respeito da autoridade, da lei, das coisas santas e do lar. É por esse caminho que se vai ao crime! Escusa de arregalar os olhos... Ao crime, digo-lho eu! Tenho a experiência de vinte anos de foro. Homem, detenha-se! Refreie essas paixões. Safa! Que idade tem o senhor?
- Vinte e seis anos.
- Pois não há desculpa para um homem de vinte e seis anos ter essas ideias subversivas. Adeus, feche a porta. E escute. Escusa de pensar em mandar outro Comunicado para outro qualquer jornal. Não lho consinto, eu que o tenho protegido sempre! Havia de querer fazer espalhafato... Escusa de negar, estou-lho a ler nos olhos. Pois não lho consinto! É para seu bem, para lhe poupar uma má ação social!
Tomou uma grande atitude na poltrona, repetiu com força:
- Uma péssima ação social! Aonde nos querem os senhores levar com os seus materialismo, os seus ateísmos? Quando tiverem dado cabo da religião de nossos pais, que têm os senhores para a substituir? Que têm? Mostre lá!
A expressão embaraçada de João Eduardo (que não tinha ali, para a mostrar, um religião que substituísse a de nossos pais) fez triunfar o doutor.
- Não têm nada! Têm lama, quando muito têm palavreado! Mas enquanto eu for vivo, pelo menos em Leiria, há de ser respeitada a Fé e o principio da Ordem! Podem pôr a Europa a fogo e sangue, em Leiria não hão de erguer cabeça. Em Leiria estou eu alerta, e juro que lhes hei de ser funesto!
João Eduardo recebia de ombros vergados estas ameaças, sem as compreender. Como podia o seu Comunicado e as intrigas da Rua da Misericórdia produzirem assim catástrofes sociais e revoluções religiosas? Tanta severidade aniquilava-o. Ia perder decerto a amizade do doutor, o emprego no governo civil... Quis abrandá-lo:
- Oh, senhor doutor, mas vossa excelência bem vê...
O doutor interrompeu-o com um grande gesto:
- Eu vejo perfeitamente. Vejo que as paixões, a vingança o vão levando por um caminho fatal... O que espero é que os meus conselhos o detenham. Bem, adeus. Feche a porta. Feche a porta, homem!
João Eduardo saiu acabrunhado. Que havia de fazer agora? O doutor Godinho, aquele colosso, repelia-o com palavras tremendas! E que podia ele, pobre escrevente de cartório, contra o padre Amaro que tinha por si o clero, o chantre, o cabido, os bispos, o papa, classe solidária e compacta que lhe aparecia como uma medonha cidadela de bronze erguendo- se até ao céu! Eram eles que tinham causado a resolução de Amélia, a sua carta, a dureza das suas palavras. Era uma intriga de párocos, cônegos e beatas. Se ele pudesse arrancá-la àquela influência, ela tomaria a ser bem depressa a sua Ameliazinha que lhe bordava chinelas, e que vinha toda corada vê-lo passar à janela! As suspeitas que outrora tivera tinham-se desvanecido naqueles serões felizes, depois de decidido o casamento, quando ela, costurando junto do candeeiro, falava da mobília que havia de comprar e dos arranjos da sua casinha. Ela amava-o, decerto... Mas quê, tinham- lhe dito que ele era o autor do Comunicado, que era herege, que tinha costumes devassos; o pároco, na sua voz pedante, ameaçara-a com o Inferno; o cônego, furioso, e todo-poderoso na Rua da Misericórdia porque dava para a panela, falara teso - e a pobre menina, assustada, dominada, com aquele bando tenebroso de padres e de beatas a cochicharem-lhe ao ouvido, coitada, cedera! Estava talvez persuadida, de boa-fé, que ele era uma fera! E àquela hora, enquanto ele ali andava pelas ruas, escorraçado e desgraçado, o padre Amaro, na saleta da Rua da Misericórdia, enterrado na poltrona, senhor da casa e senhor da rapariga, de pema traçada, palrava de alto! Canalha! E não haver leis que o vingassem! E não poder sequer "fazer escândalo", agora que a Voz do Distrito se lhe tomava inacessível!
Vinham-lhe então desejos furiosos de demolir o pároco aos murros, com a força do padre Brito. Mas o que o satisfaria mais seriam artigos tremendos num jornal, que revelassem as intrigas da Rua da Misericórdia, amotinassem a opinião, caíssem sobre o padre como catástrofes, o forçassem a ele, ao cônego e aos outros a desaparecerem corridos da casa da S. Joaneira! Ah! estava certo que a Ameliazinha, livre daqueles galfarros, correria logo aos seus braços, com lágrimas de reconciliação...



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