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quarta-feira, 20 de novembro de 2013

O Crime do Padre Amaro - Eça de Queirós [parte 13]

Procurava assim à força convencer-se que "a culpa não era dela"; recordava os meses de felicidade antes da chegada do pároco; arranjava explicações naturais para aquelas maneirinhas ternas que ela outrora tinha para o padre Amaro, e que lhe tinham dado ciúmes desesperados: era o desejo, coitada, de ser agradável ao hóspede, ao amigo do senhor cônego, de o reter para vantagem da mãe e da casa! E além disso, como ela andava contente depois de resolvido o casamento! A sua indignação contra o Comunicado, estava certo, não era natural dela - vinha-lhe soprada pelo pároco e belas beatas. E achava uma consolação nesta ideia que não era repelido como namorado, como marido - mas que era uma vítima das intrigas do torpe padre Amaro, que lhe desejava a noiva e que o odiava como liberal! Isto acumulava-lhe na alma um rancor desordenado contra o padre; descendo a rua procurava ansiosamente uma vingança, atirando a imaginação, aqui e além - mas vinha-lhe sempre a mesma ideia, o artigo do jornal, a verrina, a imprensa! A certeza da sua fraqueza desprotegida revoltava-o. Ah, se tivesse por si um figurão!
Um homem do campo, amarelo como uma cidra, que ia caminhando devagar, com o braço ao peito, deteve-o a perguntar-lhe onde morava o doutor Gouveia.
- Na primeira rua, à esquerda, o portão verde ao pé do lampião, disse João Eduardo.
E uma esperança imensa alumiou-lhe bruscamente a alma: o doutor Gouveia é que o podia salvar! O doutor era seu amigo; tratava-o por tu desde que o curara havia três anos da pneumonia; aprovava muito o seu casamento com Amélia; havia ainda semanas perguntara-lhe ao pé da Praça: - "Então, quando se faz essa rapariga feliz?" E que respeitado, que temido na Rua da Misericórdia! Era médico de todas as amigas da casa que, apesar de se escandalizarem com a sua irreligião, dependiam humildemente da sua ciência para os achaques, os flatos, os xaropes. Além disso, o doutor Gouveia, inimigo decidido da padraria, decerto se ia indignar com aquela intriga beata: e João Eduardo via-se já entrando na Rua da Misericórdia atrás do doutor Gouveia, que repreendia a S. Joaneira, arrasava o padre Amaro, convencia as velhas, - e a sua felicidade recomeçava, inabalável agora!

- O senhor doutor está? perguntou ele quase alegre, à criada que no pátio estendia a roupa ao sol.
- Está na consulta, Sr. Joãozinho, faça favor de entrar.
Em dias de mercado os doentes do campo afluíam sempre. Mas àquela hora - quando os vizinhos das freguesias se reúnem nas tabernas - havia só um velho, uma mulher com uma criança ao colo e o homem do braço ao peito, esperando numa saleta baixa com bancos, dois manjericões na janela e uma grande gravura da Coroação da Rainha Vitória. Apesar do sol claro que entrava no pátio, e de uma fresca folhagem de tília que roçava o peitoril da janela, a saleta dava tristeza, como se as paredes, os bancos, os mesmos manjericões estivessem saturados da melancolia das doenças que ali tinham passado. João Eduardo entrou e sentou-se a um canto.
Tinha batido meio-dia, e a mulher estava-se queixando de ter esperado tanto: era de uma freguesia distante; deixara no mercado a irmã, e havia uma hora que o senhor doutor estava com duas senhoras! A cada momento a criança rabujava, ela sacudia-a nos braços: calavam-se depois: o velho arregaçava a calça, contemplava com satisfação uma chaga na canela envolta em trapos: e o outro homem dava bocejos desconsolados que tomavam mais lúgubre a sua longa face amarela. Aquela demora enervava, amolecia o escrevente; sentia perder gradualmente o ânimo de ocupar o doutor Gouveia; preparava laboriosamente a sua história, mas ela parecia-lhe agora bem insuficiente para o interessar. Vinha-lhe então um desalento, que as faces insípidas dos doentes tomavam ainda mais intenso. Positivamente era uma coisa bem triste esta vida, cheia só de misérias, de sentimentos traídos, de aflições, de doenças! Erguia-se; e com as mãos atrás das costas ia olhar desconsoladamente a Coroação da Rainha Vitória.
De vez em quando a mulher entreabria a porta, a espreitar se as duas senhoras ainda lá estariam. Lá estavam; e através do batente de baeta verde, que fechava o gabinete do doutor, sentia-se as suas vozes pachorrentas palrarem.
- Em caindo aqui, é dia perdido! rosnava o velho.
Também ele deixara a cavalgadura à porta do Fumaça, e a rapariga na Praça... E o que teria a esperar na botica, depois! Com três léguas ainda a fazer para voltar à freguesia!... Ser doente é bom, mas para quem é rico e tem vagares!
A idéia da doença, da solidão que ela traz, faziam agora parecer a João Eduardo mais amarga a perda de Amélia. Se adoecesse, teria de ir para o hospital. O malvado do padre tirara-lhe tudo - mulher, felicidade, confortos de família, doces companhias da vida!
Enfim, sentiram no corredor as duas senhoras que saíam. A mulher com a criança apanhou o seu cabaz, precipitou-se. E o velho, apoderando- se logo do banco junto da porta, disse com satisfação:
- Agora cá o patrão!
- Vossemecê tem muito que consultar? perguntou-lhe João Eduardo.
- Não senhor, é só receber a receita.
E imediatamente contou a história da sua chaga: fora uma trave que lhe caíra em cima; não fizera caso; depois a ferida assanhara-se; e agora ali estava, manco e curtidinho de dores.
- E vossa senhoria, é coisa de cuidado? perguntou ele.
- Eu não estou doente, disse o escrevente. São negócios com o senhor doutor.
Os dois homens olharam-se com inveja.
Enfim foi a vez do velho, depois a do homem amarelo de braço ao peito. João Eduardo, só, passeava nervoso pela saleta. Parecia-lhe agora muito difícil ir assim, sem cerimônia, pedir proteção ao doutor. Com que direito?... Lembrou-se de se queixar primeiro de dores do peito ou desarranjos do estômago, e depois, incidentalmente, contar os seus infortúnios...
Mas a porta abriu-se. O doutor estava diante dele, com sua longa barba grisalha que lhe caía sobre a quinzena de veludo preto, o largo chapéu desabado na cabeça, calçando as luvas de fio de Escócia.
- Olá! és tu, rapaz! Há novidade na Rua da Misericórdia? João Eduardo corou.
- Não senhor, senhor doutor, queria falar-lhe em particular.
Seguiu-o ao gabinete - o conhecido gabinete do doutor Gouveia que, com o seu caos de livros, o seu tom poeirento, uma panóplia de flechas selvagens e duas cegonhas empalhadas, tinha na cidade a reputação duma "Cela de Alquimista".
O doutor puxou o seu cebolão.
- Um quarto para as duas. Sê breve.
A face do escrevente exprimiu o embaraço de condensar uma narração tão complicada.
- Está bom, disse o doutor, explica-te como puderes. Não há nada mais difícil que ser claro e breve; é necessário ter gênio. Que é?
João Eduardo então tartamudeou a sua história, insistindo sobretudo na perfídia do padre, exagerando a inocência de Amélia...
O doutor escutava-o, cofiando a barba.
- Vejo o que é. Tu e o padre, disse ele, quereis ambos a rapariga. Como ele é o mais esperto e o mais decidido, apanhou-a ele. É lei natural: o mais forte despoja, elimina o mais fraco; a fêmea e a presa pertencem-lhe.
Aquilo pareceu a João Eduardo um gracejo. Disse, com a voz perturbada:
- Vossa excelência está a caçoar, senhor doutor, mas a mim retalhasse-me o coração!
- Homem, acudiu o doutor com bondade, estou a filosofar, não estou a caçoar... Mas enfim, que queres tu que eu te faça?
Era o que o doutor Godinho lhe tinha dito, também, com mais pompa!
- Eu tenho a certeza que se vossa excelência lhe falasse...
O doutor sorriu:
- Eu posso receitar à rapariga este ou aquele xarope, mas não lhe posso impor este ou aquele homem! Queres que lhe vá dizer: "A menina há de preferir aqui o Sr. João Eduardo?" Queres que vá dizer ao padre, um maganão que eu nunca vi: "O senhor faz favor de não seduzir esta menina?"
- Mas caluniaram-me, senhor doutor, apresentaram-me como um homem de maus costumes, um patife... - Não, não te caluniaram. Sob o ponto de vista do padre e daquelas senhoras que jogam a noite o quino na Rua da Misericórdia, tu és um patife: um cristão que nos periódicos vitupera abades, cônegos, curas, personagens tão importantes para se comunicar com Deus e para se salvar a alma, é um patife. Não te caluniaram, amigo!
- Mas, senhor doutor...
- Escuta. E a rapariga, descartando-se de ti em obediências às instruções do senhor padre fulano ou sicrano, comporta-se como uma boa católica. É o que te digo. Toda a vida do bom católico, os seus pensamentos, as sua ideias, os seus sentimentos, as suas palavras, o emprego dos seus dias e das suas noites, as sua relações de família e de vizinhança, os pratos do seu jantar, o seu vestuário e os seus divertimentos - tudo isto é regulado pela autoridade eclesiástica (abade, bispo ou cônego), aprovado ou censurado pelo confessor, aconselhado e ordenado pelo diretor da consciência. O bom católico, como a tua pequena, não se pertence; não tem razão, nem vontade, nem arbítrio, nem sentir próprio; o seu cura pensa, quer, determina, sente por ela. O seu único trabalho neste mundo, que é ao mesmo tempo o seu único direito e o seu único dever, é aceitar esta direção; aceitá-la sem a discutir; obedecer-lhe, dê por onde der; se ela contraria as suas idéias, deve pensar que as suas ideias são falsas; se ela fere as suas afeições, deve pensar que as suas afeições são culpadas. Dado isto, se o padre disse à pequena que não devia nem casar, nem sequer falar contigo, a criatura prova, obedecendo-lhe, que é uma boa católica, uma devota consequente, e que segue na vida, logicamente, a regra moral que escolheu. Aqui está, e desculpa o sermão.
João Eduardo ouvia com respeito, com espanto estas frases, a que a face plácida, a bela barba grisalha do doutor davam uma autoridade maior. Parecia-lhe agora quase impossível recuperar Amélia, se ela pertencia assim tão absolutamente, alma e sentidos, ao padre que a confessava. Mas enfim, por que era ele considerado um marido prejudicial?
- Eu compreenderia, disse ele, se fosse um homem de maus costumes, senhor doutor. Mas eu porto-me bem. Eu não faço senão trabalhar. Eu não frequento tabernas, nem troças. Eu não bebo, eu não jogo. As minhas noites passo-as na Rua da Misericórdia, ou em casa a fazer serão para o cartório...
- Meu rapaz, tu podes ter socialmente todas as virtudes; mas, segundo a religião de nossos pais, todas as virtudes que não são católicas são inúteis e perniciosas. Ser trabalhador, casto, honrado, justo, verdadeiro, são grandes virtudes; mas para os padres e para a Igreja não contam. Se tu fores um modelo de bondade mas não fores à missa, não jejuares, não te confessares, não te desbarretares para o senhor cura - és simplesmente um maroto. Outros personagens maiores que tu, cuja alma foi perfeita e cuja regra de vida foi impecável, têm sido julgados verdadeiros canalhas, porque não foram batizados antes de terem sido perfeitos. Hás de ter ouvido falar de Sócrates, dum outro chamado Platão, de Catão, etc... Foram sujeitos famosos pelas suas virtudes. Pois um certo Bossuet, que é o grande chavão da doutrina, disse que das virtudes desses homens estava cheio o Inferno... Isto prova que a moral católica é diferente da moral natural e da moral social... Mas são coisas que tu compreendes mal... Queres tu um exemplo? Eu sou, segundo a doutrina católica, um dos grandes desavergonhados que passeiam as ruas da cidade; e o meu vizinho Peixoto, que matou a mulher com pancadas e que vai dando cabo pelo mesmo processo de uma filhita de dez anos, é entre o clero um homem excelente, porque cumpre os seus deveres de devoto e toca figle nas missas cantadas. Enfim, amigo, estas coisas são assim. E parece que são boas, porque há milhares de pessoas respeitáveis que as consideram boas, o Estado mantém-nas, gasta até um dinheirão para as manter, obriga-nos mesmo a respeitá-las, - e eu, que estou aqui a falar, pago todos os anos um quartinho para que elas continuem a ser assim. Tu naturalmente pagas menos...
- Pago sete vinténs, senhor doutor.
- Mas enfim vais às festas, ouves música, sermão, desforras-te dos teus sete vinténs. Eu, o meu quartinho perco-o; consolo-me apenas com a ideia de que vai ajudar a manter o esplendor da Igreja - da Igreja que em vida me considera um bandido, e que para depois de morto me tem preparado um inferno de primeira classe. Enfim, parece-me que temos cavaqueado bastante... Que queres mais?
João Eduardo estava acabrunhado. Agora que escutava o doutor, parecia-lhe, mais que nunca, que se um homem de palavras tão sábias, de tantas ideias, se interessasse por ele, toda a intriga seria facilmente desfeita e a sua felicidade, o seu lugar na Rua da Misericórdia recobrados para sempre.
- Então vossa excelência não pode fazer nada por mim? disse muito desconsolado.
- Eu posso talvez curar-te de outra pneumonia. Tens outra pneumonia a curar? Não? Então...
João Eduardo suspirou:
- Sou uma vítima, senhor doutor!
- Fazes mal. Não deve haver vítimas, quando não seja senão para impedir que haja tiranos - disse o doutor, pondo o seu largo chapéu desabado.
- Porque no fim de tudo, exclamou ainda João Eduardo que se prendia ao doutor com uma sofreguidão de afogado, no fim de tudo o que o patife do pároco quer, com todos os seus pretextos, é a rapariga! Se ela fosse um camafeu, bem se importava o maroto que eu fosse um ímpio ou não! O que ele quer é a rapariga!
O doutor encolheu os ombros.
- É natural, coitado - disse, já com a mão no fecho da porta. Que queres tu? Ele tem para as mulheres, como homem, paixões e órgãos; como confessor, a importância dum Deus. É evidente que há-de utilizar essa importância para satisfazer essas paixões; e que há de cobrir essa satisfação natural com as aparências e com os pretextos do serviço divino... É natural.
João Eduardo então, vendo-o abrir a porta, desvanecer-se a esperança que o trouxera ali, furioso, vergastando o ar com o chapéu:
- Canalha de padres! Foi raça que sempre detestei! Queria-a ver varrida da face da Terra, senhor doutor!
- Isso é outra tolice, disse o doutor, resignando-se a escutá-lo ainda, e parando à porta do quarto. Ouve lá. Tu crês em Deus? No Deus do Céu, no Deus que lá está no alto do Céu, e que é lá de cima o princípio de toda a justiça e de toda a verdade?
João Eduardo, surpreendido, disse:
- Eu creio, sim senhor.
- E no pecado original?
- Também...
- Na vida futura, na redenção, etc.?
- Fui educado nessas crenças...
- Então para que queres varrer os padres da face da Terra? Deves pelo contrário ainda achar que são poucos. És um liberal racionalista nos limites da Carta, ao que vejo... Mas se crês no Deus do Céu, que nos dirige lá de cima, e no pecado original, e na vida futura, precisas duma classe de sacerdotes que te expliquem a doutrina e a moral revelada de Deus, que te ajudem a purificar da mácula original e te preparem o teu lugar no Paraíso! Tu necessitas dos padres. E parece-me mesmo uma terrível falta de lógica que os desacredites pela imprensa...
João Eduardo, atônito, balbuciou:
- Mas vossa excelência, senhor doutor... Desculpe-me vossa excelência, mas...
- Dize, homem. Eu quê?
- Vossa excelência não precisa dos padres neste mundo...
- Nem no outro. Eu não preciso dos padres no mundo, porque não preciso do Deus do Céu. Isto quer dizer, meu rapaz, que tenho o meu Deus dentro de mim, isto é, o princípio que dirige as minhas ações e os meus juízos. Vulgo Consciência... Talvez não compreendas bem... O fato é que estou aqui a expor doutrinas subversivas... E realmente são três horas...
E mostrou-lhe o cebolão.
À porta do pátio, João Eduardo disse-lhe ainda:
- Vossa excelência então desculpe, senhor doutor...
- Não há de quê... Manda a Rua da Misericórdia ao diabo!
João Eduardo interrompeu com calor:
- Isso é bom de dizer, senhor doutor, mas quando a paixão está a roer cá por dentro!...
- Ah! fez o doutor, é uma bela e grande coisa a paixão! O amor é uma das grandes forças da civilização. Bem dirigida levanta um mundo e bastava para nos fazer a revolução moral... - E mudando de tom: - Mas escuta. Olha que isso às vezes não é paixão, não está no coração... O coração é ordinariamente um termo de que nos servimos, por decência, para designar outro órgão. É precisamente esse órgão o único que está interessado, a maior parte das vezes, em questões de sentimento. E nesses casos o desgosto não dura. Adeus, estimo que seja isso!

XIV

João Eduardo desceu a rua, embrulhando o cigarro. Sentia-se enervado, todo cansado da noite desesperada que passara, daquela manhã cheia de passos inúteis das conversas do doutor Godinho e do doutor Gouveia.
- Acabou-se, pensava, não posso fazer mais nada! É aguentar.
Tinha a alma extenuada de tantos esforços de paixão, de esperança e de cólera. Desejaria ir estirar-se ao comprido, num sítio isolado, longe de advogados, de mulheres e de padres, e dormir durante meses. Mas como já passava das três horas, apressava-se para o cartório do Nunes. Teria talvez ainda de ouvir um sermão por ter chegado tão tarde! Triste vida a sua!
Dobrava a esquina no Terreiro, quando ao pé da casa de pasto do Osório se encontrou com um moço de quinzena clara, debruada de uma fita negra muito larga, e com um bigodinho tão preto que parecia postiço sobre as suas feições extremamente pálidas.
- Olé! Que é feito, João Eduardo?
Era um Gustavo, tipógrafo da Voz do Distrito, que havia dois meses fora para Lisboa. Segundo dizia o Agostinho, era "rapaz de cabeça e instruidote, mas de ideias do diabo". Escrevia às vezes artigos de política estrangeira, onde introduzia frases poéticas e retumbantes, amaldiçoando Napoleão III, o czar e os opressores do povo, chorando a escravidão da Polônia e a miséria do proletário. A simpatia entre ele e João Eduardo proviera de conversas sobre religião, em que ambos exalavam o seu ódio ao clero e a sua admiração por Jesus Cristo. A revolução de Espanha entusiasmara-o tanto que aspirara a pertencer à Internacional; e o desejo de viver num centro operário, onde houvesse associações, discursos e fraternidade, levara-o a Lisboa. Encontrara lá bom trabalho e bons camaradas. Mas como sustentava a mãe, velha e doente, e como era mais econômico viverem juntos, voltara a Leiria. O Distrito, além disso, na perspectiva de eleições, prosperava a ponto de aumentar o salário aos três tipógrafos.
- De modo que lá estou outra vez com o raquítico... Vinha jantar, e convidou logo João Eduardo a que lhe fizesse companhia. Não havia de acabar o mundo, que diabo, por ele faltar um dia ao cartório!
João Eduardo então lembrou-se que desde a véspera não tinha comido. Era talvez a debilidade que o trouxera assim estonteado, tão pronto a desanimar... Decidiu-se logo - contente, depois das emoções e das fadigas da manhã, de se estirar no banco da taberna, diante dum prato cheio, na intimidade com um camarada de ódios iguais aos seus. Demais, os repelões que sofrera davam-lhe uma necessidade, uma avidez de simpatia; e foi com calor que disse:
- Homem, valeu! Cais-me do céu! Este mundo é uma choldra. Se não fosse por alguma hora que se passa em amizade, caramba, não valia a pena andar por cá! .
Este modo, tão novo no João Eduardo, no Pacatinho, espantou Gustavo.
- Por quê? As coisas não correm bem? Turras com a besta do Nunes, hem? perguntou-lhe.
- Não, um bocado de spleen.
- Isso de spleen é de inglês! Oh menino, havias de ver o Taborda no Amor londrino!... Deixa lá o spleen. É deitar lastro para dentro e carregar no líquido!
Travou-lhe do braço, meteu-o pela porta da taberna.
- Viva o tio Osório! Saúde e fraternidade!
O dono da casa de pasto, o tio Osório, personagem obeso e contente da vida, com as mangas da camisa arregaçadas até aos ombros, os braços nus muito brancos apoiados sobre o balcão, a face balofa e finória, felicitou logo Gustavo de o ver de novo em Leiria. Achava-o mais magrito... Havia de ser das más águas de Lisboa e do muito paucampeche nos vinhos... E que havia dele servir aos cavalheiros?
Gustavo, plantando-se diante do contador, de chapéu para nuca, apressou-se a soltar o gracejo, que tanto o entusiasmara em Lisboa:
- Tio Osório, sirva-nos fígado de rei, com rim grelhado de padre! O tio Osório, pronto à réplica, disse logo, dando um raspão de rodilha sobre o zinco do contador:
- Não temos cá disso, Sr. Gustavo. Isso é petisco da capital.
- Então estão vocês muito atrasados! Em Lisboa era todos os dias o meu almoço... Bem, acabou-se, dê-nos duas iscas com batatas... E bem saltadinho, isso!
- Hão-de ser servidos como amigos.
Acomodaram-se à "mesa dos envergonhados", entre dois tabiques de pinho fechados por uma cortina de chita. O tio Osório, que apreciava Gustavo, "moço instruído e de pouca troça", veio ele mesmo trazer a garrafa do tinto e as azeitonas; e limpando os copos ao avental enxovalhado:
- Então que há de novo pela capital, Sr. Gustavo? Como vai por lá aquilo?
O tipógrafo deu imediatamente seriedade ao rosto: passou a mão pelos cabelos, e deixou cair algumas frases enigmáticas:
Tremidito... Muito pouca-vergonha em política... A classe operária começa a mexer-se... Falta de união, por ora... Está-se à espera de ver como as coisas correm em Espanha... Há de havê-las bonitas! Tudo depende de Espanha...
Mas o tio Osório, que juntara alguns vinténs e comprara uma fazenda, tinha horror a tumultos... O que se queria no país era paz... Sobretudo o que lhe desagradava era contar-se com espanhóis... De Espanha, deviam os cavalheiros sabê-lo, "nem bom vento nem bom casamento"!
- Os povos são todos irmãos! exclamou Gustavo. Quando se tratar de atirar abaixo Bourbons e imperadores, camarilhas e fidalguia, não há portugueses nem espanhóis, todos são irmãos! Tudo é fraternidade, tio Osório!
- Pois então é beber-lhe à saúde, e beber-lhe rijo, que isso é que faz andar o negócio, disse o tio Osório tranquilamente, rolando a sua obesidade para fora do cubículo.
- Elefante! rosnou o tipógrafo, chocado com aquela indiferença pela Fraternidade dos Povos. Que se podia esperar, de resto dum proprietário e dum agente de eleições?
Trauteou a Marselhesa, enchendo os copos do alto, e quis saber o que tinha feito o amigo João Eduardo... Já se não ia pelo Distrito? O raquítico dissera-lhe que não havia despegá-lo da Rua da Misericórdia.
- E quando é esse casamento, por fim? João Eduardo corou, disse vagamente:
- Nada decidido... Tem havido dificuldades. E acrescentou com um sorriso desconsolado: - Temos tidos arrufos.


- Pieguices! soltou o tipógrafo, com um movimento de ombros, que exprimia um desdém de revolucionário pelas frivolidades do sentimento.
- Pieguices... Não sei se são pieguices, disse João Eduardo. O que sei é que dão desgostos... Arrasam um homem, Gustavo...
Calou-se, mordendo o beiço, para recalcar a emoção que o revolvia.
Mas o tipógrafo achava todas essas histórias de mulheres ridículas. O tempo não estava para amores... O homem do povo, o operário que se agarrava a uma saia para não despegar era um inútil... era um vendido! Em que se devia pensar não era em namoros: era em dar a liberdade ao povo, livrar o trabalho das garras do capital, acabar com os monopólios, trabalhar para a república! Não se queria lamúria, queria-se ação, queria- se a força! - E carregava furiosamente no r da palavra - a forrrça! - agitando os seus pulsos magríssimos de tísico sobre o grande prato de iscas que o moço trouxera.
João Eduardo, escutando-o, lembrava-se do tempo em que o tipógrafo, doido pela Júlia padeira, aparecia sempre com os olhos vermelhos como carvões, e atroava a tipografia com suspiros medonhos. A cada ai os camaradas, troçando, davam uma tossezinha de garganta. Um dia mesmo, Gustavo e o Medeiros tinham-se esmurrado no pátio...
- Olha quem fala! disse por fim. És como os outros... Estás aí a palrar, e quando te chega és como os outros.
O tipógrafo então - que, desde que em Lisboa frequentara um clube democrático de Alcântara e ajudara a redigir um manifesto aos irmãos cigarreiros em greve, se considerava exclusivamente votado ao serviço do Proletariado e da República - escandalizou-se. Ele? Ele como os outros? Perder o seu tempo com saias?...
- Está vossa senhoria muito enganado! - e recolheu-se a um silêncio chocado, partindo com furor a sua isca.
João Eduardo receou tê-lo ofendido.
- Ó Gustavo, sejamos razoáveis! um homem pode ter os seus princípios, trabalhar pela sua causa, mas casar, arranjar o seu conchego, ter uma família.
- Nunca! exclamou o tipógrafo exaltado. O homem que casa está perdido! Daí por diante é ganhar a papa, não se mexer do buraco, não ter um momento para os amigos, passear de noite os marmanjos quando eles berram com os dentes. É um inútil! É um vendido! As mulheres não entendem nada de política. Têm medo que o homem se meta em barulhos, tenha turras com a polícia. Está um patriota atado de pés e mãos! E quando há um segredo a guardar? O homem casado não pode guardar um segredo?... E ai está às vezes uma revolução comprometida... Sebo para a família! Outra de azeitonas, tio Osório!
A pança do tio Osório apareceu entre os tabiques.
- Então que estão os senhores aqui a questionar, que parece que entraram os da Maia no conselho de distrito?
Gustavo atirou-se para o fundo do banco, de pema estirada, e interpelando-o de alto:
- O tio Osório é que vai dizer. Diga lá o amigo. Vossemecê era homem de mudar as suas opiniões políticas para fazer a vontade à sua patroa?
O tio Osório acariciou o cachaço e disse com um tom finório:
- Eu lhe respondo, Sr. Gustavo. Mulheres são mais espertas que nós... E em política, como em negócio, quem for com o que elas dizem vai pelo seguro... Eu sempre consulto a minha, e se quer que lhe diga, já vai em vinte anos e não me tenho achado mal.
Gustavo pulou no banco:
- Você é um vendido! gritou.
O tio Osório, acostumado àquela expressão querida do tipógrafo, não se escandalizou: gracejou até com o seu amor às boas réplicas:
- Vendido não direi, mas vendedor pro que quiser... Pois é o que lhe digo, Sr. Gustavo. O senhor casará, e depois mas contará.
- O que hei de contar, é, quando houver uma revolução, entrar-lhe por aqui de espingarda ao ombro, e metê-lo em conselho de guerra, seu capitalista!
- Pois enquanto isso não chega, é beber-lhe e beber-lhe rijo, disse o tio Osório retirando-se com pachorra.
- Hipopótamo - resmungou o tipógrafo.
E, como adorava discussões, recomeçou logo - sustentando que o homem, embeiçado por uma saia, não tem firmeza nas suas convicções políticas...
João Eduardo sorria tristemente, numa negação muda, pensando consigo que, apesar da sua paixão por Amélia, não se tinha confessado nos dois últimos anos!
- Tem provas! berrava Gustavo.
Citou um livre-pensador das suas relações que, para manter a paz doméstica, se sujeitava a jejuar às sextas-feiras, e palmilhar aos domingos o caminho da capela de ripanço debaixo do braço...
- E é o que te há de suceder!... Tu tens ideias menos más a respeito da religião, mas ainda te hei de ver de opa vermelha e círio na procissão do Senhor dos Passos... Filosofia e ateísmo não custam nada quando se conversa no bilhar entre rapazes... Mas praticá-los em família, quando se tem uma mulher bonita e devota, é o diabo! É o que te há de suceder, se é que te não vai sucedendo já hás de atirar as tuas convicções liberais para o caixão do cisco, e fazer barretadas ao confessor da casa!
João Eduardo fazia-se escarlate de indignação. Mesmo nos tempos da sua felicidade, quando tinha Amélia certa, aquela acusação (que o tipógrafo fazia só para questionar, para palrar) tê-lo-ia escandalizado. Mas hoje! Justamente quando ele perdera Amélia por ter dito de alto, num jornal, o seu horror a beatos! Hoje que se achava ali, com o coração partido, roubado de toda a alegria, exatamente pelas suas opiniões liberais!...
- Isso dito a mim tem graça! disse com uma amargura sombria.
O tipógrafo galhofou:
- Homem, não me constou ainda que fosses um mártir da liberdade!
- Por quem és não apoquentes, Gustavo, disse o escrevente muito chocado. Tu não sabes o que se tem passado. Se soubesses não me dizias isso!
Contou-lhe então a história do Comunicado - calando todavia que o escrevera num fogo de ciúmes, e apresentando-o como uma pura afirmação de princípios... E que notasse esta circunstância, ia então casar com uma rapariga devota, numa casa que era mais frequentada por padres que a sacristia da Sé...
- E assinaste? perguntou Gustavo, espantado da revelação.
- O doutor Godinho não quis, disse o escrevente corando um pouco.
- E deste-lhes uma desanda, hem?
- A todos, de rachar!
O tipógrafo, entusiasmado, berrou por "outra de tinto"!
Encheu os copos com transporte, bebeu uma grande saúde a João Eduardo.
- Caramba, quero ver isso! Quero mandá-lo à rapaziada em Lisboa!... E que efeito fez?
- Um escândalo, mestre.
- E os padrecas?
- Em brasa!
- Mas como souberam que eras tu?
João Eduardo encolheu os ombros. O Agostinho não o dissera. Desconfiava da mulher do Godinho, que o sabia pelo marido, e que o fora meter no bico do padre Silvério, seu confessor, o padre Silvério da Rua das Teresas...
- Um gordo, que parece hidrópico?
- Sim.
- Que besta! rugiu o tipógrafo com rancor.
Olhava agora João Eduardo com respeito, aquele João Eduardo que se lhe revelara inesperadamente um paladino do livre pensamento.
- Bebe, amigo, bebe! dizia-lhe, enchendo-lhe o copo com afeto, como se aquele esforço heroico de liberalismo necessitasse ainda, depois de tantos dias, reconfortos excepcionais.
E que se tinha passado? Que tinha dito a gente da Rua da Misericórdia?
Tanto interesse comoveu João Eduardo: e dum fôlego fez a sua confidência. Mostrou-lhe mesmo a carta de Amélia que ela decerto, coitada, fora levada a escrever num terror do Inferno, sob a pressão dos padres furiosos...
- E aqui tens a vítima que eu sou, Gustavo!

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