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sábado, 9 de novembro de 2013

O Crime do Padre Amaro - Eça Queirós [parte 8]

Vinha depois a confissão de pecadinhos doces, um ato de contrição de amor, uma penitência terna:
Seis beijinhos de manhã,
De tarde um abraço só...
E pra acalmar doces chamas
Jejuar a pão-de-ló.
Aquela composição galante e devota fora muito apreciada na sociedade eclesiástica de Leiria. O senhor chantre pedira uma cópia, e perguntara, referindo-se ao poeta:
- Quem é o hábil Anacreonte?
E informado que era o escrevente da administração, falou dele com tanto apreço à esposa do senhor governador civil, que Artur obteve a gratificação de oito mil-réis, que havia anos implorava.
Àquelas reuniões nunca faltava o Libaninho. A sua última pilhéria era furtar beijos à Sra. D. Maria da Assunção; a velha escandalizava-se muito alto, e abanando-se com furor atirava-lhe de revés um olhar guloso. Depois o Libaninho desaparecia um momento, e entrava com uma saia de Amélia vestida, uma touca da S. Joaneira, fingindo uma chama lúbrica por João Eduardo - que, entre as risadas agudas das velhas, recuava, muito escarlate. Brito e Natário vinham às vezes: formava-se então um grande quino. Amaro e Amélia ficavam sempre juntos; e toda a noite, com os joelhos colados, ambos vermelhos, permaneciam vagamente entorpecidos no mesmo desejo intenso.
Amaro saía sempre de casa da S. Joaneira mais apaixonado por Amélia. Ia pela rua devagar, ruminando com gozo a sensação deliciosa que lhe dava aquele amor - uns certos olhares dela, o arfar desejoso do seu peito, os contatos lascivos dos joelhos e das mãos. Em casa despia-se depressa, porque gostava de pensar nela, às escuras, atabafado nos cobertores; e ia percorrendo em imaginação, uma a uma, as provas sucessivas que ela lhe dera do seu amor, como quem vai aspirando uma e outra flor, até que ficava como embriagado de orgulho: era a rapariga mais bonita da cidade! e escolhera-o a ele, a ele padre, o eterno excluído dos sonhos femininos, o ser melancólico e neutro que ronda como um ser suspeito à beira do sentimento! À sua paixão misturava-se então um reconhecimento por ela; e com as pálpebras cerradas murmurava:
- Tão boa, coitadinha, tão boa!
···

Mas na sua paixão havia ás vezes grandes impaciências. Quando tinha estado, durante três horas da noite, recebendo o seu olhar, absorvendo a voluptuosidade que se exalava de todos os seus movimentos, - ficava tão carregado de desejos que necessitava conter-se "para não fazer um disparate ali mesmo na sala, ao pé da mãe". Mas depois, em casa, só torcia os braços de desespero: queria-a ali de repente, oferecendo-se ao seu desejo; fazia então combinações - escrever-lhe-ia, arranjariam uma casinha discreta para se amarem, planeariam um passeio a alguma quinta! Mas todos aqueles meios lhe pareciam incompletos e perigosos, ao recordar o olho finório da irmã do cônego, as Gansosos tão mexeriqueiras! E diante daquelas dificuldades que se erguiam como as muralhas sucessivas duma cidadela, voltavam as antigas lamentações: não ser livre! não poder entrar claramente naquela casa, pedi-la à mãe, possuí-la sem pecado, comodamente! Por que o tinham feito padre? Fora "a velha pega" da marquesa de Alegros! Ele não abdicava voluntariamente a virilidade do seu peito! Tinham-no impelido para o sacerdócio como um boi para o curral!
Então, passeando excitado pelo quarto, levava as suas acusações mais longe, contra o Celibato e a Igreja: por que proibia ela aos seus sacerdotes, homens vivendo entre homens, a satisfação mais natural, que até têm os animais? Quem imagina que desde que um velho bispo diz - serás casto - a um homem novo e forte, o seu sangue vai subitamente esfriar-se? e que uma palavra latina - accedo - dita a tremer pelo seminarista assustado, será o bastante para conter para sempre a rebelião formidável do corpo? E quem inventou isto? Um concílio de bispos decrépitos, vindos do fundo dos seus claustros, da paz das suas escolas, mirrados como pergaminhos, inúteis como eunucos! Que sabiam eles da Natureza e das suas tentações? Que viessem ali duas, três horas para o pé da Ameliazinha, e veriam, sob a sua capa de santidade, começar a revoltar-se-lhe o desejo! Tudo se ilude e se evita, menos o amor! E se ele é fatal, por que impediram então que o padre o sinta, o realize com pureza e com dignidade? É melhor talvez que o vá procurar pelas vielas obscenas! - Porque a carne é fraca!
A carne! Punha-se então a pensar nos três inimigos da alma - MUNDO, DIABO e CARNE. E apareciam à sua imaginação em três figuras vivas: uma mulher muito formosa; uma figura negra de olho de brasa e pé de cabra; e o mundo, coisa vaga e maravilhosa (riquezas, cavalos, palacetes) - de que lhe parecia uma personificação suficiente o Sr, conde de Ribamar! Mas que mal tinham eles feito à sua alma? O diabo nunca o vira; a mulher formosa amava-o e era a única consolação da sua existência; e do mundo, do senhor conde, só recebera proteção, benevolência, tocantes apertos de mão... E como poderia ele evitar as influências da Carne e do Mundo? A não ser que fugisse, como os santos de outrora, para os areais do deserto e para a companhia das feras! Mas não lhe diziam os seus mestres no seminário que ele pertencia a uma Igreja militante? O ascetismo era culpado, sendo a deserção dum serviço santo. - Não compreendia, não compreendia!
Procurava então justificar o seu amor com exemplos dos livros divinos. A Bíblia está cheia de núpcias! Rainhas amorosas adiantam-se nos seus vestidos recamados de pedras; o noivo vem-lhe ao encontro, com a cabeça coberta de faixas de linho puro, arrastando pelas pontas um cordeiro branco; os levitas batem em discos de prata, gritam o nome de Deus; abrem-se as portas de ferro da cidade para deixar passar a caravana que leva os bem esposados; e as arcas de sândalo onde vão os tesouros do dote rangem, amarradas com cordas de púrpura, sobre o dorso dos camelos! Os mártires no circo casam-se num beijo, sob o bafo dos leões, às aclamações da plebe! Jesus mesmo não vivera sempre na sua santidade inumana; era frio e abstrato nas ruas de Jerusalém, nos mercados do bairro de Davi; mas lá tinha o seu lugar de ternura e de abandono em Betânia, sob os sicômoros do Jardim de Lázaro; ali, enquanto os magros nazarenos seus amigos bebem o leite e conspiram à parte, ele olha defronte os tetos dourados do templo, os soldados romanos que jogam o disco ao pé da Porta de Ouro, os pares amorosos que passam sob os arvoredos de Getsêmani - e pousa a mão sobre os cabelos louros de Marta, que ama e fia a seus pés!
O seu amor era pois uma infração canônica, não um pecado da alma: podia desagradar ao senhor chantre, não a Deus; seria legitimo num sacerdócio de regra mais humana. Lembrava-se de se fazer protestante: mas onde, como? Parecia-lhe mais extraordinariamente impossível que transportar a velha Sé para cima do monte do Castelo.
Encolhia então os ombros, escarnecendo toda aquela vaga argumentação interior. "Filosofia e palhada!" Estava doido pela rapariga, - era o positivo. Queria-lhe o amor, queria-lhe os beijos, queria-lhe a alma... E o senhor bispo se não fosse velho faria o mesmo, e o papa faria o mesmo!
Eram às vezes três horas da manhã, e ainda passeava no quarto, falando só.
···
Quantas vezes João Eduardo, passando alta noite pela Rua das Sousas, tinha visto na janela do pároco uma luz amortecida! Porque ultimamente João Eduardo, como todos que têm um desgosto amoroso, tomara o hábito triste de andar até tarde pelas ruas.
O escrevente, logo desde os primeiros tempos, percebera a simpatia de Amélia pelo pároco. Mas conhecendo a sua educação e os hábitos devotos da casa, atribuía aquelas atenções quase humildes com Amaro ao respeito beato pela sua batina de padre, pelos seus privilégios de confessor.
Instintivamente porém começou a detestar Amaro. Sempre fora inimigo de padres! Achava-os um "perigo para a civilização e para a liberdade"; supunha-os intrigantes, com hábitos de luxúria, e conspirando sempre para restabelecer "as trevas da Meia-Idade"; odiava a confissão que julgava uma arma terrível contra a paz do lar; e tinha uma religião vaga - hostil ao culto, às rezas, aos jejuns, cheia de admiração pelo Jesus poético, revolucionário, amigo dos pobres, e "pelo sublime espirito de Deus que enche todo o Universo"! Só desde que amava Amélia é que ouvia missa, para agradar à S. Joaneira.
E desejaria sobretudo apressar o casamento, para tirar Amélia daquela sociedade de beatas e padres, receando ter mais tarde uma mulher que tremesse do Inferno, passasse horas a rezar estações na Sé, e se confessasse aos padres "que arrancam às confessadas os segredos de alcova"!
Quando Amaro voltara a frequentar a Rua da Misericórdia, ficou contrariado. "Cá temos outra vez o marmanjo!", pensou. Mas que desgosto, quando reparou que Amélia tratava agora o pároco com uma familiaridade mais terna, que a presença dele lhe dava visivelmente uma animação singular, "e que havia uma espécie de namoro"! Como ela se fazia vermelha, mal ele entrava! Como o escutava, com uma admiração babosa! Como arranjava sempre a ficar ao pé dele nas partidas de quino!

Uma manhã, mais inquieto, veio à Rua da Misericórdia, - e enquanto a S. Joaneira tagarelava na cozinha, disse bruscamente a Amélia:
- Menina Amélia, sabe? Está-me a dar um grande desgosto com essas maneiras com que trata o Sr. padre Amaro.
Ela ergueu os olhos espantados:
- Que maneiras? Ora essa! Então como quer que o trate? É um amigo da casa, esteve aqui de hóspede...
- Pois sim, pois sim...
- Ah! mas sossegue. Se isso o quezila, verá. Não me torno a chegar para ao pé do homem.
João Eduardo, tranquilizado, raciocinou que "não havia nada". Aqueles modos eram excessos de beatério. Entusiasmo pela padaria!
Amélia decidiu então disfarçar o que lhe ia no coração: sempre considerara o escrevente um pouco tapado - e se ele percebera, que fariam as Gansosos tão finas, e a irmã do cônego que era curtida em malícia! Por isso mal sentia Amaro na escada, daí por diante, tomava uma atitude distraída, muito artificial; mas, ai! apenas ele lhe falava com a sua voz suave ou voltava para ela aqueles olhos negros que lhe faziam correr estremeções nos nervos, - como uma ligeira camada de neve que se derrete a um sol muito forte, a sua atitude fria desaparecia, e toda a sua pessoa era uma expressão contínua de paixão. Às vezes, absorvida no seu enlevo, esquecia que João Eduardo estava ali; e ficava toda surpreendida quando ouvia a um canto da sala a sua voz melancólica.
Ela sentia de resto que as amigas da mãe envolviam a sua "inclinação" pelo pároco numa aprovação muda e afável. Ele era, como dizia o cônego, o menino bonito: e das maneirinhas e dos olhares das velhas exalava-se uma admiração por ele que fazia ao desenvolvimento da paixão de Amélia uma atmosfera favorável. D. Maria da Assunção dizia-lhe às vezes ao ouvido:
- Olha para ele! É de inspirar fervor. É a honra do clero. Não há outro!...
E todas elas achavam em João Eduardo "um presta para nada"! Amélia então já não disfarçava a sua indiferença por ele: as chinelas que lhe andava a bordar tinham há muito desaparecido do cesto do trabalho, e já não vinha à janela vê-lo passar para o cartório.
A certeza agora tinha-se estabelecido na alma de João Eduardo - na alma, que como ele dizia, lhe andava mais negra que a noite.
- A rapariga gosta do padre, tinha ele concluído. E à dor da sua felicidade destruída juntava-se a aflição pela honra dela ameaçada.
Uma tarde, tendo-a visto sair da Sé, esperou-a adiante da botica, e muito decidido:
- Eu quero-lhe falar, menina Amélia... Isto não pode continuar assim... Eu não posso... A menina traz namoro com o pároco!
Ela mordeu o beiço, toda branca:
- O senhor está a insultar-me! - e queria seguir, toda indignada.
Ele reteve-a pela manga do casabeque: '
- Ouça, menina Amélia. Eu não a quero insultar, mas é que não sabe. Tenho andado, que até se me parte o coração. - E perdeu a voz, de comovido.
- Não tem razão... Não tem razão, balbuciava ela.
- Jure-me então que não há nada com o padre!
- Pela minha salvação!... Não há nada!... Mas também lhe digo, se tornar a falar em tal, ou a insultar-me, conto tudo à mamã, e o senhor escusa de nos voltar a casa.
- Oh menina Amélia...
- Não podemos continuar aqui a falar... Está ali já a D. Micaela a cocar.
Era uma velha, que levantara a cortina de cassa numa janela baixa, e espreita-la com olhinhos reluzentes e gulosos, a face toda ressequida encostada sofregamente á vidraça. Separaram-se então, - e a velha desconsolada deixou cair a cortina.
Amélia nessa noite - enquanto as senhoras discutiam com algazarra os missionários que então pregavam na Barrosa - disse baixo a Amaro, picando vivamente a costura:
- Precisamos ter cautela... Não olhe tanto para mim nem esteja tão chegado... Já houve quem reparasse.
Amaro recuou logo a cadeira para junto de D. Maria da Assunção; e, apesar da recomendação de Amélia, os seus olhos não se despregavam dela, numa interrogação muda e ansiosa, já assustado que as desconfianças da mãe ou a malícia das velhas "andassem armando escândalo". Depois do chá, no rumor das cadeiras que se acomodavam ao quino, perguntou-lhe rapidamente:
- Quem reparou?
- Ninguém. Eu é que tenho medo. É preciso disfarçar.
Desde então cessaram as olhadelas doces, os lugares chegadinhos à mesa, os segredos; e sentiam um gozo picante em afetar maneiras frias, tendo a certeza vaidosa da paixão que os inflamava. Era para Amélia delicioso - enquanto o padre Amaro afastado tagarelava com as senhoras - adorar a sua presença, a sua voz, as suas graças, com os olhos castamente aplicados às chinelas de João Eduardo que muito astutamente recomeçara a bordar.
Todavia o escrevente vivia ainda inquieto: amargurava-o encontrar o pároco instalado ali todas as noites, com a face próspera, a pema traçada, gozando a veneração das velhas. "A Ameliazinha, sim, agora portava-se bem, e era-lhe fiel, era-lhe fiel...": mas ele sabia que o pároco a desejava, a "cocava"; e apesar do juramento dela pela sua salvação, da certeza que não havia nada - temia que ela fosse lentamente penetrada por aquela admiração caturra das velhas, para quem o senhor pároco era um anjo: só se contentaria em arrancar Amélia (já empregado no governo civil) àquela casa beata: mas essa felicidade tardava a chegar - e saía todas as noites da Rua da Misericórdia mais apaixonado, com a vida estragada de ciúmes, odiando os padres, sem coragem para desistir. Era então que se punha a andar pelas ruas até tarde; às vezes voltava ainda ver as janelas fechadas da casa dela; ia depois à alameda ao pé do rio, mas o frio ramaIhar das árvores sobre a água negra entristecia-o mais; vinha então ao bilhar, olhava um momento os parceiros carambolando, o marcador, muito esguedelhado, que bocejava encostado ao reste. Um cheiro de mau petróleo sufocava. Saía; e dirigia-se, devagar, à redação da Voz do Distrito.
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O redator da Voz do Distrito, o Agostinho Pinheiro, era ainda seu parente. Chamavam-lhe geralmente o Raquítico, por ter uma forte corcunda no ombro, e uma figurinha enfezada de ético. Era extremamente sujo; e a sua carita de fêmea, amarelada, de olhos depravados, revelava vícios antigos, muito torpes. Tinha feito (dizia-se em Leiria) toda a sorte de maroteira. E ouvira tantas vezes exclamar: ''Se você não fosse um raquítico, quebrava-lhe os ossos" - que, vendo na sua corcunda uma proteção suficiente, ganhara um descaro sereno. Era de Lisboa, o que o tomava mais suspeito aos burgueses sérios: atribuía-se a sua voz rouca e acre "a faltar-lhe as campainhas": e os seus dedos queimados terminavam em unhas muito compridas - porque tocava guitarra.
A Voz do Distrito fora criada por alguns homens, a quem chamavam em Leiria o grupo da Maia, particularmente hostis ao senhor governador civil. O doutor Godinho, que era o chefe e o candidato do grupo, tinha encontrado em Agostinho, como ele dizia, o homem que se precisa: o que o grupo precisava era um patife com ortografia, sem escrúpulos, que redigisse em linguagem sonora os insultos, as calúnias, as alusões que eles traziam informemente à redação, em apontamentos. Agostinho era um estilista de vilezas. Davam-lhe quinze mil-réis por mês e casa de habitação na redação - um terceiro andar desmantelado numa viela ao pé da Praça.
Agostinho fazia o artigo de fundo, as locais, a Correspondência de Lisboa; e o bacharel Prudêncio escrevia o folhetim literário sob o título de Palestras Leirienses: era um moço muito honrado, a quem o Sr. Agostinho era repulsivo; mas tinha uma tal gula de publicidade, que se sujeitava a sentar-se todos os sábados fraternalmente á mesma banca, a rever as provas da sua prosa - prosa tão florida de imagens, que se murmurava na cidade, ao lê-la: "Que opulência! Que opulência, Jesus!"
João Eduardo reconhecia também que o Agostinho era "um trastezito"; não se atreveria a passear com ele de dia nas ruas; mas gostava de ir para a redação, alta noite, fumar cigarros, ouvir o Agostinho falar de Lisboa, do tempo que lá vivera empregado na redação de dois jornais, no teatro da Rua dos Condes, numa casa de penhores, e em outras instituições. Estas visitas eram segredo!
Àquela hora da noite a sala da tipografia no primeiro andar estava fechada (o jornal tirava-se aos sábados); e João Eduardo encontrava em cima Agostinho abancado com uma velha jaqueta de peles cujos colchetes de prata tinham sido empenhados - ruminando, curvado, à luz dum medonho candeeiro de petróleo, sobre longas tiras de papel: estava fazendo o jornal, e a sala escura em redor tinha o aspecto duma caverna. João Eduardo estirava-se no canapé de palhinha, ou indo buscar a um canto a velha guitarra de Agostinho, repenicava o fado corrido. O jornalista, no entanto, com a testa apoiada a um punho, produzia laboriosamente: "a coisa não lhe saía catita": e como nem o fadinho o inspirava, erguia-se, ia a um armário engolir um copinho de genebra que gargarejava nas fauces estanhadas, espreguiçava-se escancaradamente, acendia o cigarro, e aproveitando o acompanhamento cantarolava roucamente:
Ora foi o fado tirano
Que me levou à má vida,
E a guitarra: dir-lim, dim, dim, dir-lim, dim, dom.
Na vida do negro fado
Ai! que me traz assim perdida...
Isto trazia-lhe sempre as recordações de Lisboa, porque terminava por dizer, com ódio:
- Que pocilga de terra, esta!
Não se podia consolar de viver em Leiria, de não poder beber o seu quartilho na taberna do tio João, à Mouraria, com a Ana Alfaiata ou com o Bigodinho - ouvindo o João das Biscas de cigarro ao canto da boca, o olho choroso meio fechado pelo fumo do tabaco, fazer chorar a guitarra dizendo a morte da Sofia!
Depois, para se reconfortar com a certeza do seu talento, lia a João Eduardo os seus artigos, muito alto. E João interessava-se - porque essas "produções", sendo ultimamente sempre "desandas ao clero", correspondiam às suas preocupações.
Era por esse tempo que, em virtude da famosa questão da Misericórdia, o doutor Godinho se tomara muito hostil ao cabido e à padraria. Sempre detestara padres; tinha uma má doença de fígado, e como a Igreja o fazia pensar no cemitério, odiava a sotaina, porque lhe parecia uma ameaça da mortalha. E Agostinho que tinha um profundo depósito de fel a derramar, instigado pelo doutor Godinho, exagerava as suas verrinas: mas, com o seu fraco literário, cobria o vitupério de tão espessas camadas de retórica que, como dizia o cônego Dias, "aquilo era ladrar, não era morder!"
Uma dessas noites João Eduardo encontrou Agostinho todo entusiasmado com um artigo que compusera de tarde, e que lhe "saíra cheio de piadas à Vítor Hugo!"
- Tu verás! Coisa de sensação!
Como sempre, era uma declamação contra o clero e o elogio do doutor Godinho. Depois de celebrar as virtudes do doutor, "esse tão respeitável chefe de família" e a sua eloquência no tribunal que "arrancara tantos desventurados ao cutelo da lei", o artigo, tomando um tom roncante, apostrofava Cristo: - "Quem te diria a ti (bradava Agostinho), ó imortal Crucificado! quem te diria, quando do alto do Gólgota expiravas exangue, quem te diria que um dia, em teu nome, à tua sombra, seria expulso dum estabelecimento de caridade o doutor Godinho, - a alma mais pura, o talento mais robusto..." - E as virtudes do doutor Godinho voltavam, em passo de procissão, solenes e sublimadas, arrastando caudas de adjetivos nobres.
Depois, deixando por um momento de contemplar o doutor Godinho, Agostinho dirigia-se diretamente a Roma: - "É no século XIX que vindes atirar à face de 1,eiria liberal os ditames do Syllabus? Pois bem. Quereis a guerra? Tê-la-eis!"
- Hem, João?! dizia. Está forte! Está filosófico!
E retomando a leitura: - "Quereis a guerra? Tê-la-eis! Levantaremos bem alto o nosso estandarte, que não é o da demagogia, compreendei-o bem! e arvorando-o, com braço firme, no mais alto baluarte das liberdades públicas, gritaremos à face de Leiria, à face da Europa: Filhos do século XIX! às armas! Às armas, pelo progresso!"
- Hem? Está de os enterrar!
João Eduardo, que ficara um momento calado, disse então, levantando as suas expressões em harmonia com a prosa sonora do Agostinho:
- O clero quer-nos arrastar aos funestos tempos do obscurantismo!
Uma frase tão literária surpreendeu o jornalista: fitou João Eduardo, disse:
- Por que não escreves tu alguma coisa, também?
O escrevente respondeu, sorrindo:
- E eu, Agostinho, eu é que te escrevia uma desanda aos padres... E eu tocava-lhes os podres. Eu é que os conheço!...
Agostinho instou logo com ele para que escrevesse a desanda.
- Vem a calhar, menino!
O doutor Godinho ainda na véspera lhe recomendara: - "Em tudo que cheirar a padre, para baixo! Havendo escândalo, conta-se! não havendo, inventa-se!"
E Agostinho acrescentou, com benevolência:
- E não te dê cuidado o estilo, que eu cá o florearei!
- Veremos, veremos, murmurou João Eduardo.
Mas daí por diante Agostinho perguntava-lhe sempre:
- E o artigo, homem? Traz-me o artigo.
Tinha avidez dele, porque sabendo como João Eduardo vivia na intimidade da "panelinha canônica da S. Joaneira", supunha-o no segredo de infâmias especiais.
João Eduardo, porém, hesitava. Se se viesse a saber?
- Qual! afirmava Agostinho. A coisa publica-se como minha. É artigo da redação. Quem diabo vai saber?
Sucedeu na noite seguinte que João Eduardo surpreendeu o padre Amaro resvalando sorrateiramente um segredinho a Amélia - e ao outro dia apareceu de tarde na redação com a palidez de uma noite velada, trazendo cinco largas tiras de papel, miudamente escritas numa letra de cartório. Era o artigo, e intitulava-se: Os modernos fariseus! - Depois de algumas considerações, cheias de flores, sobre Jesus e o Gólgota, o artigo de João Eduardo era, sob alusões tão diáfanas como teias de aranha, um vingativo ataque ao cônego Dias, ao padre Brito, ao padre Amaro e ao padre Natário!... Todos tinham a sua dose, como exclamou cheio de júbilo o Agostinho.
- E quando sai? perguntou João Eduardo.
O Agostinho esfregou as mãos, refletiu, disse:
- É que está forte, diabo! É como se tivesse os nomes próprios! Mas descansa, eu arranjarei.
Foi cautelosamente mostrar o artigo ao doutor Godinho - que o achou "uma catilinária atroz". Entre o doutor Godinho e a Igreja havia apenas um arrufo: ele reconhecia, em geral, a necessidade da religião entre as massas; sua esposa, a bela D. Cândida, era além disso de inclinações devotas, e começava a dizer que aquela guerra do jornal ao clero lhe causava grandes escrúpulos: e o doutor Godinho não queria provocar ódios desnecessários entre os padres, prevendo que o seu amor da paz doméstica, os interesses da ordem e o seu dever de cristão o forçariam bem cedo a uma reconciliação, - "muito contra as suas opiniões, mas..."
Disse por isso a Agostinho secamente:
- Isto não pode ir como artigo da redação, deve aparecer como comunicado. Cumpra estas ordens.
E Agostinho declarou ao escrevente - que a coisa publicava-se como um Comunicado, assinado: Um liberal. Somente João Eduardo terminava o artigo exclamando: - Alerta, mães de família! O Agostinho sugeriu que este final alerta podia dar lugar à réplica jocosa - Alerta está! E depois de largas combinações decidiram-se por este fecho: - Cuidado, sotainas negras!
No domingo seguinte apareceu o comunicado assinado: Um liberal.
···
Durante toda essa manhã de domingo, o padre Amaro, à volta da Sé, estivera ocupado em compor laboriosamente uma carta a Amélia. Impaciente, como ele dizia, "com aquelas relações que não andavam nem desandavam, que era olhar e apertos de mão e dali não passava" - tinha-lhe dado uma noite, à mesa do quino, um bilhetinho onde escrevera com boa letra, a tinta azul; - Desejo encontrá-la só, porque tenho muito que lhe falar. Onde pode ser sem inconveniente? Deus proteja o nosso afeto. Ela não respondera: - E Amaro despeitado, descontente também por não a ter visto nessa manhã à missa das nove, resolveu "pôr tudo a claro numa carta de sentimento": e preparava os períodos sentidos que lhe deviam ir revolver o coração, passeando pela casa, juncando o chão de pontas de cigarro, a cada momento curvado sobre o Dicionário de Sinônimos.
"Ameliazinha do meu coração, (escrevia ele) não posso atinar com as razões maiores que a não deixaram responder ao bilhetinho que lhe dei em casa da senhora sua mamã; pois que era pela muita necessidade que tinha de lhe falar a sós, e as minhas intenções eram puras, e na inocência desta a/ma que tanto lhe quer e que não medita o pecado.

Deve ter compreendido que lhe voto um fervente afeto, e pela sua parte me parece, (se não me enganam esses olhos que são os faróis da minha vida, e como a estrela do navegante) que também tu, minha Ameliazinha, tens inclinação por quem tanto te adora; pois que até outro dia, quando o Libano quinou com os seis primeiros números, e que todos fizeram tanta algazarra, tu apertaste-me a mão por baixo da mesa com tanta ternura, que até me pareceu que o Céu se abria e que eu sentia os anjos entoarem o Hossana! Por que não respondeste pois? Se pensas que o nosso afeto pode ser desagradável aos nossos anjos da guarda, então te direi que maior pecado cometes trazendo-me nesta incerteza e tortura, que até na celebração da missa estou sempre com o pensar em ti, e nem me deixa elevar a minha a/ma no divino sacrifício. Se eu visse que este mútuo afeto era obra do tentador, eu mesmo te diria: oh, minha bem amada filha, façamos o sacrifício a Jesus, para lhe pagar parte do sangue que derramou por nós! Mas eu tenho interrogado a minha a/ma e vejo nela a brancura dos lírios. E o teu amor também é puro como a tua a/ma, que um dia se unirá à minha, entre os coros celestes, na bem-aventurança. Se tu soubesses como eu te quero, querida Ameliazinha, que até às vezes me parece que te podia comer aos bocadinhos! Responde pois e dize se não te parece que poderia arranjar-se a vermo-nos no Morena/, pela tarde. Pois eu anseio por te exprimir todo o fogo que me abrasa, bem como falar-te de coisas importantes, e sentir na minha mão a tua que eu desejo que me guie pelo caminho do amor, até aos êxtases duma felicidade celestial. Adeus, anjo feiticeiro, recebe a oferta do coração do teu amante e pai espiritual,
Amaro."
Depois de jantar copiou esta carta a tinta azul, e com ela bem dobrada no bolso da batina foi à Rua da Misericórdia. Logo da escada sentiu em cima a voz aguda de Natário, discutindo.
- Quem está por cá? - perguntou à Ruça, que alumiava, encolhida no seu xale.
-.As senhoras todas. Está o Sr, padre Brito.
- Olá! Bela sociedade!
Galgou os degraus, e à porta da sala, com o seu capote ainda pelos ombros, tirando alto o chapéu:
- Muito boas noites a todos, começando pelas senhoras.
Natário, imediatamente, plantou-se diante dele e exclamou:
- Então que lhe parece?
- O quê? perguntou Amaro. E reparando no silêncio, nos olhos cravados nele: - O que é? Alguma coisa de novo?
- Pois não leu, senhor pároco? exclamaram. Não leu o Distrito!?
Era papel em que ele não pusera os olhos, disse. Então as senhoras indignadas romperam:
- Ai! é um desaforo!
- Ai! é um escândalo, senhor pároco!
Natário com as mãos enterradas nas algibeiras contemplava o pároco com um sorrizinho sarcástico, saltando dentre os dentes:
- Não leu! Não leu! Então que fez?
Amaro reparava, já aterrado, na palidez de Amélia, nos seus olhos muito vermelhos. E enfim o cônego erguendo-se pesadamente:
- Amigo pároco, dão-nos uma desanda...
- Ora essa! exclamou Amaro.
- Tesa!
O senhor cônego, que trouxera o jornal, devia ler alto - lembraram.
- Leia, Dias, leia, acudiu Natário. Leia, para saborearmos!
A S. Joaneira deu mais luz ao candeeiro: o cônego Dias acomodou- se à mesa, desdobrou o jornal, pôs os óculos cuidadosamente, e, com o lenço do rapé nos joelhos, começou a leitura do Comunicado na sua voz pachorrenta.
O princípio não interessava: eram períodos enternecidos em que o liberal exprobrava aos fariseus a crucificação de Jesus: - "Por que o matásteis? (exclamava ele). Respondei!" E os fariseus respondiam: - "Matamo-lo porque ele era a liberdade, a emancipação, a aurora de uma nova era", etc. O liberal então esboçava, a largos traços, a noite do Calvário: - "Ei-lo pendente da cruz, traspassado de lanças, a sua túnica jogada aos dados, a plebe infrene", etc. E, voltando a dirigir-se aos fariseus infelizes, o liberal gritava-lhes com ironia: - "Contemplai a vossa bela obra!" Depois, por uma gradação hábil, o liberal descia de Jerusalém a Leiria: - "Mas pensam os leitores que os fariseus morreram? Como se enganam! Vivem! conhecemo-los nós; Leiria está cheia deles, e vamos apresentá-los aos leitores..."
- Agora é que elas começam, disse o cônego olhando para todos em redor, por cima dos óculos.
Com efeito "elas começavam"; era, numa forma brutal, uma galeria de fotografias eclesiásticas: a primeira era a do padre Brito: - "Vede-o, (exclamava o liberal) grosso como um touro, montado na sua égua castanha..."
- Até a cor da égua! murmurou com uma indignação piedosa a Sra. D. Maria da Assunção.
"... Estúpido como um melão, sem sequer saber latim..."
O padre Amaro, assombrado, fazia: Oh! oh! E o padre Brito, escarlate, mexia-se na cadeira, esfregando devagar os joelhos.
"... Espécie de caceteiro", continuava o cônego, que lia aquelas frases cruéis com uma tranqüilidade doce, "desabrido de maneiras, mas que não desgosta de se dar à ternura, e, segundo dizem os bem informados, escolheu para Dulcinéia a própria e legítima esposa do seu regedor..."
O padre Brito não se dominou:
- Eu racho-o de meio a meio! exclamou erguendo-se e recaindo pesadamente na cadeira.
- Escute, homem, disse Natário.
- Qual escute! O que é, é que o racho!
Mas se ele não sabia quem era o liberal!
- Qual liberal! Quem eu racho é o doutor Godinho. O doutor Godinho é que é o dono do jornal. O doutor Godinho é que eu racho!
A sua voz tinha tons roucos: e atirava furioso grandes palmadas à coxa.
Lembraram-lhe o dever cristão de perdoar as injúrias! A S. Joaneira com unção citou a bofetada que Jesus Cristo suportou. Devia imitar Cristo.
- Qual Cristo, qual cabaça! gritou Brito apoplético.
Aquela impiedade criou um terror.
- Credo! Sr, padre Brito, credo! exclamou a irmã do cônego, recuando a cadeira.
O Libaninho, com as mãos na cabeça, vergado sob o desastre, murmurava:
- Nossa Senhora das Dores, que até pode cair um raio!
E, vendo mesmo Amélia indignada, o padre Amaro disse gravemente:
- Brito, realmente você excedeu-se.
- Pois se estão a puxar por mim!...
- Homem, ninguém puxou por você, disse severamente Amaro. E com um tom pedagogo: - Apenas lhe lembrarei, como devo, que em tais casos, quando se diz a blasfêmia má, o reverendo padre Scomelli recomenda confissão geral e dois dias de recolhimento a pão e água.
O padre Brito resmungava.
- Bem, bem, resumiu Natário. O Brito cometeu uma grande falta, mas saberá pedir perdão a Deus, e a misericórdia de Deus é infinita!
Houve uma pausa comovida, em que se ouviu a Sra. D. Maria da Assunção murmurar "que ficara sem pinga de sangue": e o cônego, que durante a catástrofe pousara os óculos sobre a mesa, retomou-os, e continuou serenamente a leitura:
"...Conheceis um outro com cara de furão?..."
Olhares de lado fixaram o padre Natário.
"...Desconfiai dele: se puder trair-vos, não hesita; se puder prejudicar-vos, folga; as suas intrigas trazem o cabido numa confusão porque é a víbora mais daninha da diocese, mas com tudo isso muito dado à jardinagem, porque cultiva com cuidado duas rosas do seu canteiro."
- Homem, essa! exclamou Amaro.
- É para que você veja, disse Natário erguendo-se lívido. Que lhe parece? Você sabe que eu, quando falo das minhas sobrinhas, costumo dizer as duas rosas do meu canteiro. É um gracejo. Pois, senhores, até vem com isto! - E com um sorriso macilento, de fel: - Mas amanhã hei-de saber quem é! Olaré! Eu hei-de saber quem é!
- Deite ao desprezo, Sr. padre Natário, deite ao desprezo, disse a S. Joaneira pacificadora.
- Obrigado, minha senhora, acudiu Natário curvando-se com uma ironia rancorosa, obrigado! Cá recebi!



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