Total de visualizações de página

sábado, 9 de novembro de 2013

O Crime do Padre Amaro - Eça de Queirós [parte 9]


Mas a voz imperturbável do cônego retomara a leitura. Agora era o retrato dele, traçado com ódio:
"...Cônego bojudo e glutão, antigo caceteiro do Sr. D. Miguel, que foi expulso da freguesia de Ourém, outrora mestre de Moral num seminário e hoje mestre de imoralidade em Leiria..."
- Isso é infame! exclamou Amaro exaltado.
O cônego pousou o jornal, e com a voz pachorrenta:
- Você pensa que me dá isto cuidado? disse ele. Boa! Tenho que comer e que beber, graças a Deus! Deixar rosnar quem rosna!
- Não, mano, interrompeu a irmã, mas a gente sempre tem o seu bocadinho de brio!
- ora, mana! replicou o cônego Dias com um azedume de raiva concentrada. Ora, mana! ninguém lhe pede a sua opinião!
- Nem preciso que ma peçam, gritou ela empertigando-se. Sei-a dar muito bem quando quero e como quero. Se não tem vergonha, tenho-a eu!
- Então! então! disseram em roda, acalmando-a.
- Menos língua, mana, menos língua! disse o cônego fechando os seus óculos. Olhe, não lhe caiam os dentes postiços!
- Seu malcriado!
Ia falar, mas sufocou-se; e começou subitamente a soltar ais.
Recearam logo que lhe desse o flato; a S. Joaneira e a D. Joaquina Gansoso levaram-na para o quarto, embaixo, amparando-a, com palavras brandas:
- Estás doida! Por quem és, filha! Olha que escândalo! Nossa Senhora te valha!
Amélia mandava buscar água de flor de laranja.

- Deixe-a lá, rosnou o cônego, deixe-a lá! Aquilo passa-lhe. São calores!
Amélia deu um olhar triste ao padre Amaro, e desceu ao quarto com a Sra. D. Maria da Assunção e a Gansoso surda, que iam também "sossegar a D. Josefa, coitadita!" Os padres agora estavam sós e o cônego voltando-se para Amaro: - Ouça você, que é a sua vez - disse retomando o jornal.
- E verá que dose! disse Natário.
O cônego escarrou, aproximou mais o candeeiro, e declamou:
"... Mas o perigo são certos padres novos e ajanotados, párocos por influências de condes da capital, vivendo na intimidade das famílias de bem onde há donzelas inexperientes, e aproveitando-se da influência do seu sagrado ministério para lançar na alma da inocente a semente de chamas criminosas!"
- Pouca vergonha! murmurou Amaro lívido.
"... Dize, sacerdote de Cristo, onde queres arrastar a impoluta virgem? Queres arrastá-la aos lodaçais do vício? Que vens fazer aqui ao seio desta respeitável família? Por que rondas em volta da tua presa, como o milhafre em torno da inocente pomba? Para trás, sacrílego! Murmuras-lhe sedutoras frases, para a desviares do caminho da honra; condenas á desgraça e á viuvez algum honrado moço que lhe queira oferecer a sua mão trabalhadora; e vais-lhe preparando um horroroso futuro de lágrimas. E tudo para quê? Para saciares os torpes impulsos da tua criminosa lascívia..."
- Que infame! rosnou com os dentes cerrados o padre Amaro.
"...Mas acautela-te, presbítero perverso!" E a voz do cônego tinha tons cavos ao soltar aquelas apóstrofes. "Já o arcanjo levanta a espada da justiça. E sobre ti, e teus cúmplices, já a opinião da ilustrada Leiria fita seu olho imparcial. E nós cá estamos, nós, filhos do trabalho, para vos marcar na fronte o estigma da infâmia. Tremei, sectários do Syllabus! cuidado, sotainas negras!"
- De escacha! fez o cônego suado, dobrando a Voz do Distrito.
O padre Amaro tinha os olhos enevoados de duas lágrimas de raiva: passou devagar o lenço pela testa, soprou, disse com os beiços a tremer:
- Eu, colegas, nem sei o que hei de dizer! Pelo Deus que me ouve, isto é a calúnia das calúnias.
- Uma calúnia infame... rosnaram.
- E a mim, o que me parece, continuou Amaro, é que nos dirijamos à autoridade!
- É o que eu tinha dito, acudiu Natário, é necessário falar ao secretário-geral...
- Um cacete é que é! rugiu o padre Brito. Autoridade! O que é, é rachá-lo! Eu bebia-lhe o sangue!...
O cônego, que meditava coçando o queixo, disse então:
- E você, Natário, é que deve ir ao secretário-geral. Você tem língua, tem lógica...
- Se os colegas decidem, disse Natário curvando-se, vou. E hei-de- lhas cantar, à autoridade!
Amaro ficara junto da mesa com a cabeça entre as mãos, aniquilado. E o Libaninho murmurava:
- Ai, filhos, eu não é nada comigo, mas só de ouvir todo esse aranzel, até se me estão a vergar as pernas. Ai, filhos, um desgosto assim...
Mas sentiram a voz da Sra. Joaquina Gansoso subindo a escada; e o cônego imediatamente com uma voz prudente:
- Colegas, o melhor, diante das senhoras, é não se falar mais nisto. Bem basta o que basta.
Daí a momentos, apenas Amélia entrou, Amaro ergueu-se, declarou que estava com uma forte dor de cabeça, e despediu-se das senhoras.
- E sem tomar chá? acudiu a S. Joaneira.
- Sim, minha senhora, disse ele embrulhando-se no seu capote, não me estou a sentir bem. Boas noites... E você, Natário, apareça amanhã pela Sé à uma hora.
Apertou a mão de Amélia, que se lhe abandonou entre os dedos passiva e mole, - e saiu com os ombros vergados.
A S. Joaneira notou, desconsolada:
- O senhor pároco ia muito pálido...
O cônego levantou-se, e com um tom impaciente e quezilado:
- Se ia pálido, amanhã estará corado. E agora quero dizer uma coisa. Esse aranzel do jornal é a calúnia das calúnias! Eu não sei quem o escreveu, nem para que o escreveu. Mas são tolices e são infâmias. É pateta e maroto, quem quer que seja. O que devemos fazer já o sabemos, e como já se tagarelou bastante sobre o caso, a senhora mande vir o chá. E o que lá vai, lá vai, não se fala mais na questão.
As faces em roda continuavam contristadas. - E então o cônego acrescentou:
- Ah! e quero dizer outra coisa: como não morreu ninguém, não há necessidade de estar aqui com cara de pêsames. E tu, pequena, senta- te ao instrumento e repenica-me essa Chiquita!
···
O secretário-geral, o Sr. Gouveia Ledesma, antigo jornalista, e, em anos mais expansivos, autor do livro sentimental Devaneios de um Sonhador, estava então dirigindo o distrito na ausência do governador civil.
Era um moço bacharel que passava por ter talento. Representara de galã no teatro acadêmico, em Coimbra, com muito aplauso; e tomara a esse tempo o hábito de passear à tarde na Sofia, com o ar fatal com que no palco arrepelava os cabelos, ou levava, nos transes de amor, o lenço aos olhos. Depois em Lisboa arruinara um pequeno patrimônio com o amor de Lolas e de Carmens, ceias no Mata, muita caça no Xafredo e perniciosas convivências literárias: aos trinta anos estava pobre, saturado de mercúrio e autor de vinte folhetins românticos na Civilização: mas tornara- se tão popular, que era conhecido nos lupanares e nos cafés por um cognome carinhoso - era o Bibi. Julgando então que conhecia a fundo a existência, deixou crescer as suíças, começou a citar Bastiat, frequentou as câmaras e entrou na carreira administrativa; chamava agora à república que tanto exaltara em Coimbra uma absurda quimera; e Bibi era um pilar das instituições.
Detestava Leiria, onde passava por espirituoso; e dizia às senhoras, nas soirées do deputado Novais - "que estava cansado da vida". Rosnava- se que a esposa do bom Novais andava doida por ele: e em verdade Bibi escrevera a um amigo da capital: - "enquanto a conquistas, pouco por ora; tenho apenas no papo a Novaisitos".
Levantava-se tarde; e nessa manhã, de robe-de-chambre à mesa do almoço, partia os seus ovos quentes, lendo com saudade no jornal a narração apaixonada duma pateada em S. Carlos, quando o criado, - um galego que trouxera de Lisboa - veio dizer que "estava ali um cura".
- Um cura? Que entre para aqui! - E murmurou para sua satisfação pessoal: - o Estado não deve fazer esperar a Igreja.
Ergueu-se, e estendeu as duas mãos ao padre Natário que entrava, muito composto, na sua longa batina de lustrina.
- Uma cadeira, Trindade! Toma uma chávena de chá, senhor cura? Soberba manhã, hem? Estava justamente pensando em si, - isto é, estava pensando no clero em geral... Acabava de ler as peregrinações que se estão fazendo a Nossa Senhora de Lourdes... Grande exemplo! Milhares de pessoas da melhor roda... É realmente consolador ver renascer a fé... Ainda ontem eu disse em casa do Novais: "No fim de tudo a fé é a mola real da sociedade". Tome uma chávena de chá... Ah! é um grande bálsamo!...

- Não, obrigado, almocei já.
- Mas não! Quando digo um grande bálsamo refiro-me à fé, não ao chá! Ah! ah! É boa, não?
E prolongou a sua risadinha com complacência. Queria agradar a Natário, pelo princípio que repetia muito, com um sorriso astuto - "que quem está metido na política deve ter por si a padraria".
- E depois, acrescentou, como eu dizia ontem em casa do Novais, que vantagem para as localidades! Lourdes, por exemplo, era uma aldeola; pois com a afluência dos devotos está uma cidade... Grandes hotéis, bulevares, belas lojas... É por assim dizer o desenvolvimento econômico, correndo parelhas com o renascimento religioso.
E deu com satisfação um puxãozinho grave ao colarinho.
- Pois eu vinha aqui falar a V. Ex.a a respeito dum comunicado na Voz do Distrito.
- Ah! interrompeu o secretário-geral, perfeitamente, li! Uma famosa verrina... Mas literariamente, como estilo e como imagens, que miséria!
- E que tenciona V. Ex.a fazer, senhor secretário-geral?
O Sr. Gouveia Ledesma apoiou-se nas costas da cadeira, perguntou pasmado:
- Eu?
Natário disse, destilando as palavras:
- A autoridade tem o dever de proteger a religião do Estado, e implicitamente os seus sacerdotes... Que tenha V. Ex.a em vista, eu não venho aqui em nome do clero...
E acrescentou com a mão sobre o peito:
- Sou apenas um pobre padre sem influência... Venho, como particular, perguntar ao senhor secretário-geral se se pode permitir que caracteres respeitáveis da Igreja diocesana sejam assim difamados...
- É certamente lamentável que um jornal...
Natário interrompeu, empertigando o busto com indignação:
- Jornal que já devia estar suspenso, senhor secretário-geral!
- Suspenso! Por quem é, senhor cura! Mas V. St decerto não quer que eu volte ao tempo dos corredores-mores! - Suspender o jornal! Mas a liberdade de imprensa é um princípio sagrado! Nem as leis de imprensa o permitem... Mesmo querelar pelo ministério público porque um periódico diz duas ou três pilhérias sobre o cabido, impossível! Tínhamos de querelar toda a imprensa de Portugal, com exceção da Nação e do Bem Público! Onde iria parar a liberdade de pensamento, trinta anos de progresso, a própria idéia governamental? Mas nós não somos os Cabrais, meu caro senhor! Nós queremos luz, muitíssima luz! Justamente o que nós queremos é luz!
Natário tossiu devagarinho, disse:
- Perfeitamente. Mas então quando pelas eleições, a autoridade nos vier pedir o nosso auxilio, nós vendo que não encontramos nela proteção, diremos simplesmente: "Non possumus!"
- E pensa o senhor cura, que por amor de alguns votos que dão os senhores abades, nós vamos trair a civilização?
E o antigo Bibi, tomando uma grande atitude, soltou esta frase:
- Somos filhos da liberdade, não renegaremos nossa mãe!
- Mas o doutor Godinho, que é a alma do jornal, é oposição, observou então Natário; proteger-lhe o jornal é implicitamente proteger-lhe as manobras...
O secretário-geral teve um sorriso:
- Meu caro senhor cura, V. St não está no segredo da política. Entre o doutor Godinho e o governo civil não há inimizade, há apenas um arrufo... O doutor Godinho é uma inteligência... Vai reconhecendo que o grupo da Maia não produz nada... O doutor Godinho aprecia a política do governo, e o governo aprecia o doutor Godinho.
E, rebuçando-se todo num mistério de Estado, acrescentou:
- Coisas de alta política, meu caro senhor.
Natário ergueu-se:
- De modo que...
- Impossibilis est, disse o secretário. De resto acredite, senhor cura, que, como particular, revolto-me contra o Comunicado; mas como autoridade devo respeitar a expressão do pensamento... Mas creia, e pode dizê-lo a todo o clero diocesano, a Igreja católica não tem um filho mais fervente que eu, Gouveia Ledesma... Quero porém uma religião liberal, de harmonia com o progresso, com a ciência... Foram sempre as minhas idéias; preguei-as bem alto, na imprensa, na universidade e no grêmio... Assim, por exemplo, não acho que haja poesia maior que a poesia do cristianismo! E admiro Pio IX, uma grande figura! Somente lamento que ele não arvore a bandeira da civilização! - E o antigo Bibi, contente da sua frase, repetia-a: - Sim, lamento que ele não arvore a bandeira da civilização... O Syllabus é impossível neste século de eletricidade, senhor cura! E a verdade é que nós não podemos querelar dum jornal, porque ele diz duas ou três pilhérias sobre o sacerdócio, nem nos convém, por altas razões de política, escandalizar o doutor Godinho. Aqui tem o meu pensamento.
- Senhor secretário-geral, disse Natário curvando-se.
- Um criado de V. S.a. Sinto que não tome uma chávena de chá. E como vai o nosso chantre?
- S. Ex. a nestes últimos dias, segundo creio, tem tornado a sofrer de tonturas.
- Sinto. Uma negligência também! Grande latinista... Tenha cuidado com o degrau!...
Natário correu à Sé, com um passo nervoso, resmungando alto de cólera. Amaro passeava devagar no terraço, com as mãos atrás das costas: tinha as olheiras batidas e a face envelhecida.
- Então? disse ele, indo rapidamente ao encontro de Natário.
- Nada!
Amaro mordeu o beiço: e enquanto Natário lhe contava, excitado, a conversação com o secretário-geral, "e como argumentara com ele, e como o homem tagarelara, tagarelara", - a face do pároco cobria-se duma sombra desconsolada, e ia arrancando raivosamente, com a ponta do guarda-sol, a erva que crescia nas fendas do terraço.
- Um patarata! resumiu o padre Natário com um grande gesto. Pela autoridade não se faz nada. É escusado... Mas a questão agora é entre mim e o liberal, padre Amaro! Eu hei-de saber quem é, padre Amaro! E quem o esmaga sou eu, padre Amaro, sou eu!...
···
No entanto, João Eduardo desde o domingo triunfava; o artigo fizera escândalo: tinham-se vendido oitenta números avulsos do jornal, e o Agostinho afirmara-lhe que na botica da Praça a opinião era "que o liberal conhecia a padraria a fundo e tinha cabeça" ! _
- És um gênio, rapaz, disse o Agostinho. É trazer-me outro, é trazer-me outro!
João Eduardo gozava prodigiosamente "daquele falatório que ia pela cidade".
Relia então o artigo com uma deleitação paternal; se não receasse escandalizar a S. Joaneira, desejaria ir pelas lojas dizer bem alto: fui eu, eu é que o escrevi! - e já ruminava outro, mais terrível, que se deveria intitular: O diabo feito eremita, ou O sacerdócio de Leiria perante o século XIX!
O doutor Godinho encontrara-o na Praça, e parara com condescendência, para lhe dizer:
- A coisa tem feito barulho. Você é o diabo! E a piada ao Brito é bem jogada. Que eu não sabia... E diz que é bonita, a mulher do regedor...
- V. Ex.a não sabia?
- Não sabia, e saboreei. Você é o diabo! Eu fui que disse ao Agostinho que publicasse a coisa como um comunicado. Você compreende... Eu não me convém ter turras de mais com o clero... E depois lá minha esposa tem seus escrúpulos... Enfim, é melhor e é conveniente que as mulheres tenham religião... Mas no meu foro interior saboreei... Sobretudo a piada ao Brito. O patife fez-me uma guerra dos diabos na eleição passada... Ah! e outra coisa, o seu negócio arranja-se. Lá para o mês que vem tem o seu emprego no governo civil.
- Oh, senhor doutor, V. Ex.a....
- Qual história, você é um benemérito!
João Eduardo foi para o cartório, trêmulo de alegria. O Sr. Nunes Ferral saíra: o escrevente aparou devagar uma pena, começou a cópia duma procuração, - e de repente, agarrando o chapéu, correu à Rua da Misericórdia.

A S. Joaneira costurava só á janela: Amélia fora ao Morenal: e João Eduardo, logo da porta:
- Sabe, D. Augusta? Estive agora com o doutor Godinho. Diz que lá para o mês que vem tenho o meu emprego...
A S. Joaneira tirou a luneta, deixou cair as mãos no regaço:
- Que me diz?...
- É verdade, é verdade...
E o escrevente esfregava as palmas, com risinhos nervosos de júbilo.
- Que pechincha! exclamou. De modo que agora, se a Ameliazinha estiver de acordo...
- Ai! João Eduardo! fez a S. Joaneira com um grande suspiro, que me tira um peso do coração... Que tenho estado... Olhe, nem tenho dormido!...
João Eduardo pressentiu que ela ia falar do Comunicado. Foi pôr o chapéu numa cadeira ao canto; e voltando à janela, com as mãos nos bolsos:
- Então por quê, por quê?
- Aquela pouca-vergonha no Distrito! Que diz você? Aquela calúnia! Ai! tenho-me feito velha!
João Eduardo escrevera o artigo sob as solicitações do ciúme, só para "enterrar" o padre Amaro; não previra o desgosto das duas senhoras; e vendo agora a S. Joaneira com duas lágrimas no branco dos olhos, sentia-se quase arrependido. Disse ambiguamente:
- Eu li, é o diabo...
Mas aproveitando o sentimento da S. Joaneira para servir a sua paixão, acrescentou sentando-se, chegando a cadeira para ao pé dela:
- Eu nunca lhe quis falar disso, D. Augusta, mas... olhe que a Ameliazinha tratava o pároco com muita familiaridade... E pelas Gansosos, pelo Libaninho, mesmo sem quererem, a coisa ia-se sabendo, ia-se rosnando... Eu bem sei que ela, coitada, não via o mal, mas... a D. Augusta sabe o que é Leiria. Que línguas, hem!
A S. Joaneira então declarou que lhe ia falar como a um filho: o artigo afligira-a, sobretudo por causa dele, João Eduardo. Porque enfim ele podia acreditar também, desfazer o casamento, e que desgosto! E ela podia dizer-lhe como mulher de bem, como mãe, que não havia entre a pequena e o senhor pároco, nada, nada, nada! Era a rapariga que tinha aquele gênio comunicativo! E o pároco tinha boas palavras, sempre muito delicado... Que ela sempre o dissera, o Sr. padre Amaro tinha maneiras que tocavam o coração...
- Decerto, disse João Eduardo mordendo o bigode, com a cabeça baixa.
A S. Joaneira então pôs a mão de leve sobre o joelho do escrevente, e fitando-o:
- E olhe, não sei se me fica mal dizer-lho, mas a rapariga quer-lhe deveras, João Eduardo.
O coração do escrevente teve uma palpitação comovida.
- E eu! disse. A D. Augusta sabe a paixão que eu tenho por ela... E lá do artigo que me importa a mim?
Então a S. Joaneira limpou os olhos ao avental branco. Ai! era uma alegria para ela! Ela sempre o dissera, como rapaz de bem, não havia outro na cidade de Leiria! .
- Você sabe, quero-lhe como filho!
O escrevente enterneceu-se:
- Pois vamos a isso, e tapam-se as bocas do mundo... E erguendo- se, com uma solenidade engraçada:
- Sra. D. Augusta! Tenho a honra de lhe pedir a mão...
Ela riu-se, - e na sua alegria João Eduardo beijou-a na testa, filialmente.
- E fale à noite à Ameliazinha, disse ao sair. Eu venho amanhã, e felicidade não há-de faltar...
- Louvado seja Nosso Senhor, acrescentou a S. Joaneira retomando a sua costura, com um suspiro de muito alivio.
Apenas, nessa tarde, Amélia voltou do Morenal, a S. Joaneira, que estava pondo a mesa, disse-lhe:
- Esteve ai o João Eduardo...
- Ah!...
- Ai esteve a falar, coitado...
Amélia, calada, dobrava a sua manta de lã.
- Aí esteve a queixar-se, continuou a mãe.
- Mas de quê? perguntou ela muito vermelha.
- Ora de quê! Que se falava muito na cidade do artigo do Distrito; que se perguntava a quem aludia o periódico com as donzelas inexperientes, e que a resposta era: "Quem há de ser? a Amélia da S. Joaneira, da Rua da Misericórdia!" O pobre João diz que tem andado tão desgostoso!... Não se atrevia, por delicadeza, a falar-te... Enfim...
- Mas que hei de eu fazer, minha mãe? exclamou Amélia com os olhos subitamente cheios de lágrimas, àquelas palavras que caíam sobre os seus tormentos como gotas de vinagre sobre feridas.
- Eu digo-te isto para seu governo. Faz o que quiseres, filha. Eu bem sei que são calúnias! Mas tu sabes o que são línguas do mundo... O que te posso dizer é que o rapaz não acreditou no periódico. Que era isso que me dava cuidado!... Credo! tirou-me o sono... Mas não, diz que não lhe importa o artigo, que te quer da mesma maneira, e está a arder por que se faça o casamento... E eu por mim o que fazia, para calar toda essa gente, era casar-me já. Eu bem sei que tu não morres por ele, bem sei. Deixa lá! Isso vem depois. O João é bom rapaz, vai ter o emprego...
- Vai ter o emprego!?
- Pois foi o que ele me veio dizer também... Esteve com o doutor Godinho, diz que lá para o fim do mês está empregado... Enfim tu fazes o que entenderes... Que olha que eu estou velha, filha, posso faltar-te dum momento para o outro!...
Amélia não respondeu, olhando de frente no telhado voarem os pardais - menos desassossegados, naquele instante, que os seus pensamentos.
···
Desde domingo vivia atordoada. Sabia bem que a donzela inexperiente a que aludia o Comunicado era ela, Amélia, e torturava-a o vexame de ver assim o seu amor publicado no jornal. Depois (como ela pensava, mordendo o beiço numa raiva muda, com os olhos afogados de lágrimas), aquilo vinha estragar tudo! Na Praça, na Arcada já se diria com risinhos perversos: - "Então a Ameliazita da S. Joaneira metida com o pároco, hem?" Decerto o senhor chantre, tão severo em "coisas de mulheres", repreenderia o padre Amaro... E por alguns olhares, alguns apertos de mão, aí estava a sua reputação estragada, estragado o seu amor!
Na segunda-feira, ao ir ao Morenal, parecera-lhe sentir pelas costas risinhos a escarnecê-la; no aceno que lhe fez da porta da botica o respeitável Carlos julgou ver uma secura repreensível; à volta encontrara o Marques da loja de ferragens, que não lhe tirou o chapéu, e ao entrar em casa julgava-se desacreditada - esquecendo que o bom Marques era tão curto de vista que usava na loja duas lunetas sobrepostas.
- Que hei de eu fazer? que hei de eu fazer? murmurava, às vezes, com as mãos apertadas na cabeça. O seu cérebro de devota apenas lhe fornecia soluções devotas - entrar num recolhimento, fazer uma promessa a Nossa Senhora das Dores "para que a livrasse daquele apuro", ir confessar-se ao padre Silvério... E terminava por se vir sentar resignadamente ao pé da mãe com a sua costura, considerando, muito enternecida, que desde pequena fora sempre bem infeliz!
A mãe não lhe falara claramente sobre o Comunicado: tivera apenas palavras ambíguas:
- É uma pouca-vergonha... É deitar ao desprezo... Quando a gente tem a sua consciência sossegada, o mais histórias...
Mas Amélia via-lhe bem o desgosto - na face envelhecida, nos tristes silêncios, nos suspiros repentinos quando fazia meia à janela com a luneta na ponta do nariz: e então mais se convencia que havia "grande falatório na cidade", de que a mãe, coitada, estava informada pelas Gansosos e pela D. Josefa Dias - cuja boca produzia o mexerico mais naturalmente que a saliva. Que vergonha, Jesus!
E então o seu amor pelo pároco, que até ai, naquela reunião de saias e batinas da Rua da Misericórdia se lhe afigurara natural, agora, julgando-o reprovado pelas pessoas que desde pequena fora acostumada a respeitar - os Guedes, os Marques, os Vaz, - aparecia-lhe já monstruoso: assim as cores dum retrato pintado à luz de azeite, e que à luz de azeite parecem justas, tomam tons falsos e disformes quando lhes cai em cima a luz do sol. E quase estimava que o padre Amaro não tivesse voltado à Rua da Misericórdia.

No entanto, com que ansiedade esperava todas as noites o seu toque de campainha! Mas ele não vinha; e aquela ausência, que a sua razão julgava prudente, dava ao seu coração o desespero de uma traição. Na quarta- feira á noite não se conteve, disse, corando sobre a sua costura: - Que será feito do senhor pároco?
O cônego, que na sua poltrona parecia dormitar, tossiu grosso, mexeu-se, rosnou:
- Mas que fazer... E escusam de esperar por ele tão cedo!...
E Amélia, que ficara branca como a cal, teve imediatamente a certeza que o pároco, aterrado com o escândalo do jornal, aconselhado pelos padres timoratos, zelosos "do bom nome do clero" - tratava de se descartar dela! Mas, cautelosa, diante das amigas da mãe, escondeu o seu desespero: foi mesmo sentar-se ao piano, e tocou mazurcas tão estrondosas - que o cônego, tomando a mexer-se na poltrona, grunhiu:
- Menos espalhafato e mais sentimento, rapariga!
Passou uma noite agoniada, e sem chorar. A sua paixão pelo pároco flamejava mais irritada; e todavia detestava-o pela sua cobardia. Mal uma alusão num jornal o picara, ficara a tremer na sua batina, apavorado, não se atrevendo sequer a visitá-la - sem se lembrar que também ela se via diminuída na sua reputação, sem ser satisfeita no seu amor! E fora ele que a tentara com as suas palavrinhas doces, as suas denguices! Infame!... Desejava violentamente apertá-lo ao coração - e esbofeteá-lo. Teve a ideia insensata de ir ao outro dia à Rua das Sousas atirar-se-lhe aos braços, instalar-se-lhe no quarto, fazer um escândalo que o obrigasse a fugir da diocese... Por que não? Eram novos, eram robustos, poderiam viver longe, noutra cidade, - e a sua imaginação começou a repastar-se logo histericamente nas perspectivas deliciosas dessa existência, em que se figurava constantemente a dar-lhe beijos! Através da sua intensa excitação, aquele plano parecia-lhe muito prático, muito fácil: fugiriam para o Algarve; lá, ele deixaria crescer o cabelo (que mais bonito seria então!) e ninguém saberia que era um padre; poderia ensinar latim, ela coseria para fora; e viveriam numa casinha - onde o que mais a atraia era o leito com as duas travesseirinhas chegadas... E a única dificuldade que via em todo este plano radiante, era fazer sair de casa, ás escondidas da mãe, o baú com a sua roupa! - Mas quando acordou, essas resoluções mórbidas, à luz clara do dia, desfizeram-se como sombras: tudo aquilo que parecia agora tão impraticável, e ele tão separado dela, como se entre a Rua da Misericórdia e a Rua das Sousas se erguessem inacessivelmente todas as montanhas da Terra. Ai, o senhor pároco abandonara-a, era certo! Não queria perder os lucros da sua paróquia nem a estima dos seus superiores!... Pobre dela! Considerou-se então para sempre infeliz e desinteressada da vida. Guardou, todavia, muito intenso, o desejo de se vingar do padre Amaro.
Foi então que refletiu, pela primeira vez, que João Eduardo desde a publicação do Comunicado não aparecera na Rua da Misericórdia. Também me volta as costas - pensou com amargura. Mas que lhe importava? No meio da aflição que lhe dava o abandono do padre Amaro, a perda do amor do escrevente, piegas e pesado, que lhe não trazia utilidade nem prazer, era uma contrariedade imperceptível: uma infelicidade viera que lhe arrebatava bruscamente todas as afeições - a que lhe enchia a alma, e a que apenas lhe acariciava a vaidadezinha; e irritava-a, sim, não sentir já o amor do escrevente colado a suas saias, com a docilidade dum cão - mas todas as suas lágrimas eram para o senhor pároco "que já não queria saber dela"! Só lamentava a deserção de João Eduardo, porque perdia assim um meio sempre pronto de fazer enraivecer o padre Amaro...
···
Por isso nessa tarde à janela, calada, olhando no telhado defronte voarem os pardais - depois de saber que João Eduardo certo do emprego, viera falar enfim a mãe - pensava com satisfação no desespero do pároco ao ver publicados na Sé os banhos do seu casamento. Depois as palavras muito práticas da S. Joaneira trabalhavam-lhe silenciosamente na alma: o emprego do governo civil rendia 25$000 réis mensais; casando, reentrava logo na sua respeitabilidade de senhora; e se a mãe morresse, com o ordenado do homem e com o rendimento do Morenal, podia viver com decência, ir mesmo no Verão aos banhos... E via-se já na Vieira, muito cumprimentada pelos cavalheiros, conhecendo talvez a do governador civil.
- Que lhe parece, minha mãe? - perguntou bruscamente. Estava decidida pelas vantagens que entrevia; mas, com a sua natureza lassa, desejava ser persuadida e forçada.
- Eu ia pelo seguro, filha - foi a resposta da S. Joaneira.
- É sempre o melhor - murmurou Amélia entrando no quarto. E sentou-se muito triste aos pés da cama porque a melancolia que lhe dava o crepúsculo tornava-lhe agora mais pungente a saudade "dos seus bons tempos com o senhor pároco".
Nessa noite choveu muito, as duas senhoras passaram sós. A S. Joaneira, repousada agora das suas inquietações, estava muito sonolenta, a cada momento cabeceava com a meia caída no regaço. Amélia então pousava a costura, e com o cotovelo sobre a mesa, fazendo girar o abajur verde do candeeiro, pensava no seu casamento: o João Eduardo era bom rapaz, coitado; realizava o tipo de marido tão estimado na pequena burguesia - não era feio e tinha um emprego; decerto o oferecimento da sua mão, apesar das infâmias do jornal, não lhe parecia, como a mãe dissera, "um rasgo de mão-cheia"; mas a sua dedicação lisonjeava-a, depois do abandono tão cobarde de Amaro: e havia dois anos que o pobre João gostava dela... Começou então laboriosamente a lembrar tudo o que nele lhe agradava - o seu ar sério, os seus dentes muito brancos, a sua roupa asseada.
Fora ventava forte, e a chuva, fustigando friamente as vidraças, dava-lhe apetites de confortos, um bom lume, o marido ao lado, o pequerrucho a dormir no berço - porque seria um rapaz, chamar-se-ia Carlos e teria os olhos negros do padre Amaro. O padre Amaro... Depois de casada, decerto, tornaria a encontrar o Sr. padre Amaro... E então uma idéia atravessou todo o seu ser, fê-la erguer bruscamente, ir por instinto procurar a escuridão da janela para ocultar a vermelhidão do rosto. Oh! isso não, isso não! Era horrível!... Mas a idéia implacavelmente apoderara-se dela como um braço muito forte que a sufocava e lhe dava uma agonia deliciosa. E então o antigo amor, que o despeito e a necessidade tinham recalcado no fundo da sua alma, rompeu, inundou-a: murmurou repetidamente, com paixão, torcendo as mãos, o nome de Amaro: desejou avidamente os seus beijos - oh! adorava-o! E tudo tinha acabado, tudo tinha acabado! E devia casar, pobre dela!... Então à janela, com a face contra a escuridão da noite, choramingou baixinho.
Ao chá a S. Joaneira disse-lhe, de repente:
- Pois a coisa, a fazer-se, filha, deve ser já... Era começar o enxoval, e se fosse possível casar-te para o fim do mês.
Ela não respondeu - mas a sua imaginação alvoroçou-se àquelas palavras. Casada daí a um mês, ela! Apesar de João Eduardo lhe ser indiferente, a idéia daquele rapaz, novo e apaixonado, que ia viver com ela, dormir com ela, deu uma perturbação a todo o seu ser.
E quando a mãe ia descer ao quarto, disse-lhe:
- Que lhe parece, minha mãe? Eu está-me a custar entrar em explicações com o João Eduardo, dizer-lhe que sim. O melhor era escrever-lhe...
- Também acho, filha, escreve-lhe... A Ruça leva a carta pela manhã... Uma carta bonita, e que agrade ao rapaz.
Amélia ficou na sala de jantar até tarde fazendo o rascunho da carta. Dizia:
"SR. JOÃO EDUARDO.
A mamã cá me pôs ao fato da conversação que teve consigo. E se a sua afeição é verdadeira, como creio e me tem dado muitas provas, eu estou pelo que se decidiu com muito boa vontade, pois conhece os meus sentimentos. E a respeito de enxoval e papéis, amanhã se falará, pois que o esperamos para o chá. A mamã está muito contente e eu desejo que tudo seja para nossa felicidade, como espero há-de ser, com a ajuda de Deus. A mamã recomenda-se e eu sou
a que muito lhe quer,
Amélia Caminha".


Nenhum comentário: