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quarta-feira, 27 de novembro de 2013

O Crime do Padre Amaro - Eça de Queirós [parte 16]

- É para o fogo, é para o fogo! gritava a Gansoso excitada.
A sala vibrava agora com a gralhada das senhoras, arrebatadas num furor santo. D. Josefa Dias, D. Maria da Assunção falavam com gozo do fogo, enchendo a boca com a palavra, numa delícia inquisitorial de exterminação devota. Amélia e a Gansoso, no quarto, rebuscavam pelas gavetas, por entre a roupa branca, as fitas e as calcinhas, à caça dos "objetos excomungados". E a S. Joaneira assistia, atônita e assustada, àquele alarido de auto-de-fé que atravessava bruscamente a sua pacata, refugiada ao pé do cônego, que depois de ter rosnado algumas palavras sobre "a Inquisição em casas particulares", se enterrara comodamente na poltrona.
- É para lhes fazer sentir que se não perde impunemente o respeito à batina, dizia Natário baixo a Amaro.
O pároco assentiu, com um gesto mudo de cabeça, contente daquelas cóleras beatas que eram como a afirmação ruidosa do amor que lhe tinham as senhoras.
Mas D. Josefa impacientava-se. Agarrara já o Panorama com as pontas do xale, para evitar o contágio, e gritava para dentro, para o quarto, onde continuava pelos gavetões uma rebusca furiosa:
- Então apareceu?
- Cá está, cá está!
Era a Gansoso que entrava triunfante com a cigarreira, a velha luva e o lenço de algodão.
E as senhoras, com alarido, arremeteram para a cozinha. A mesmas S. Joaneira as seguiu, como boa dona de casa, para fiscalizar a fogueira.
- Os três padres então, sós, olharam-se - e riram.
- As mulheres têm o diabo no corpo, disse o cônego filosoficamente.
- Não senhor, padre-mestre, não senhor, acudiu logo Natário fazendo-se sério. Eu rio, porque a coisa, assim vista, parece patusca. Mas o sentimento é bom. Para a verdadeira devoção ao sacerdócio, horror à impiedade... enfim o sentimento é excelente.

- O sentimento é excelente, confirmou Amaro, também sério.
O cônego ergueu-se:
- E é que se pilhassem o homem eram capazes de o queimar... Não lho digo a brincar, que a mana tem fígados para isso... É um Torquemada de saias...
- Está na verdade, está na verdade, afirmou Natário.
- Eu não resisto a ir ver a execução! exclamou o cônego. Eu quero ver com os meus olhos!
E os três padres então foram até à porta da cozinha. As senhoras lá estavam, em pé diante da lareira, batidas da luz violenta da fogueira que fazia destacar estranhamente as mantas de agasalho de que já se tinham coberto. A Ruça, de joelhos, soprava esfalfada. Tinham cortado com o facão a encadernação do Panorama; e as folhas retorcidas e negras, com um faiscar de fagulhas, voavam pela chaminé nas línguas de fogo claro. Só a luva de pelica não se consumia. Debalde com as tenazes a punham no vivo da chama: tisnava, reduzida a um caroço engorolado; mas não ardia. E z sua resistência aterrava as senhoras.
- É que é da mão direita com que cometeu o desacato! dizia furiosa D. Maria da Assunção.
- Bufa-lhe, rapariga, bufa-lhe, aconselhava da porta o cônego muito divertido.
- O mano faz favor de não troçar com coisas sérias! gritou D. Josefa.
- Oh, mana! A senhora quer saber melhor que um sacerdote como é que se queima um ímpio? A pretensão não está má! É bufar-lhe, é bufar-lhe!
Então, confiadas na ciência do senhor cônego, a Gansoso e D. Maria da Assunção, acocoradas, bufaram também. As outras olhavam, num sorriso mudo, o olho brilhante e cruel, no gozo daquela exterminação grata a Nosso Senhor. O fogo estalava, pulando com uma força galharda, na glória da sua antiga função de purificador dos pecados. - E por fim sobre as achas em brasa, nada restou do Panorama, do lenço e da luva do ímpio.
A essa hora João Eduardo, o ímpio, no seu quarto, sentado aos pés da cama, soluçava, com a face banhada em lágrimas, pensando em Amélia, nos bons serões da Rua da Misericórdia, na cidade para onde iria, na roupa que empenharia e perguntando em vão a si mesmo por que o tratavam assim, ele que era tão trabalhador, que não queria mal a ninguém, e que a adorava tanto, a ela.

XV

No domingo seguinte havia missa cantada na Sé, e a S. Joaneira e Amélia atravessaram a Praça para ir buscar D. Maria da Assunção, que em dias de mercado e de "populacho" nunca saia só, receosa que lhe roubassem as joias ou lhe insultassem a castidade.
Nessa manhã, com efeito, a afluência das freguesias enchia a Praça: os homens em grupo, atravancando a rua, muito sérios, muito barbeados, de jaqueta ao ombro; as mulheres aos pares, com uma fortuna de grilhões e de corações de ouro sobre peitos pejados; nas lojas, os caixeiros azafamavam-se por trás dos balcões alastrados de lençaria e de chitas; nas tabernas apinhadas gralhava-se alto; pelo mercado, entre os sacos de farinha, os montões de louça, os cestos de broa, ia um regatear sem fim; havia multidão ao pé das tendas onde reluzem os espelhinhos redondos e trasbordam os molhos de rosários; velhas faziam pregão por trás dos seus tabuleiros de cavacas; e os pobres, afreguesados à cidade, choramigavam Padre-Nossos pelas esquinas.
Já senhoras passavam para a missa, todas em sedas, de rostinho sisudo; e a Arcada estava cheia de cavalheiros, tesos nos seus fatos de casimira nova, fumando caro, gozando o domingo.
Amélia foi muito olhada: o filho do recebedor, um atrevido, disse mesmo alto dum grupo: Ai, que me leva o coração! E as duas senhoras, apressando-se, dobravam para a Rua do Correio, quando lhes apareceu o Libaninho de luvas pretas e cravo ao peito. Não as tinha visto desde "o desacato do Largo da Sé", e rompeu logo em exclamações. Ai, filhas, que desgosto aquele! O malvado do escrevente! Ele tinha tido tanto que fazer, que só nessa manhã é que pudera ir ao senhor pároco dar-lhe os sentimentos; o santinho recebera-o muito bem, estava-se a vestir; ele quis ver-lhe o braço e felizmente, louvores a Deus, nem uma pisadura... E se elas vissem, que carnadura tão delicada, que pele tão branca... Uma pelinha de arcanjo !
- Mas querem vocês saber, filhas? Encontrei-o numa grande aflição!
As duas senhoras assustaram-se. Por quê, Libaninho?
A criada, a Vicência, que havia dias se queixava, tinha ido nessa madrugada para o hospital com um febrão...
- E ali está o pobre santo sem criada, sem nada! Vejam vocês! Para hoje bem, que vai jantar com o nosso cônego (também lá estive, ai, que santo!), mas amanhã, mas depois? Que ele já tem em casa a irmã da Vicência, a Dionísia... Mas, oh, filhas, a Dionísia! Foi o que eu lhe disse: a Dionísia pode ser uma santa, mas que reputação!... É que não há pior em Leiria... Uma perdida que não põe os pés na igreja... Tenho a certeza que o senhor chantre até havia de reprovar!
As duas senhoras concordaram logo que a Dionísia (mulher que não cumpria os preceitos, que representara em teatros de curiosos) não convinha ao senhor pároco...
- Olha, S. Joaneira, disse Libaninho, sabes o que lhe convinha? Eu là lho disse, lá lhe fiz a proposta. É ferrar-se outra vez em sua casa. Que é onde está bem, com gente que o acarinha, que lhe trata da roupa, que lhe sabe os gostos, e onde tudo é virtude! Ele não disse que não, nem que sim. Mas olha que se lhe podia ler na cara que está a morrer por isso... Tu é que lhe devias falar S. Joaneirinha!
Amélia fizera-se tão escarlate como a sua gravata de seda da Índia. E a S. Joaneira disse ambiguamente:
- Falar-lhe, não... Eu nessas coisas sou muito delicada... Bem compreendes...
- Era como teres um santo de portas adentro, filha! disse com calor o Libaninho. Lembra-te disso! E era um gosto para todos... Tenho a certeza que até Nosso Senhor se havia de alegrar... E agora adeus, pequenas, que vou de fugida. Não vos demoreis, que está a missinha a cair.

As duas senhoras continuaram caladas até casa de D. Maria da Assunção. Nenhuma queria arriscar primeiro uma palavra sobre aquela possibilidade tão inesperada, tão grave, do senhor pároco voltar para a Rua da Misericórdia! Foi só quando pararam que a S. Joaneira disse, ao puxar a campainha:
- Ai, o senhor pároco realmente não pode ter a Dionísia de portas adentro..,
- Credo, até causa horror!
Foi também a expressão da Sra. D. Maria da Assunção quando lhe contaram, em cima, a doença da Vicência e a instalação da Dionísia: causava horror!
- Que eu não a conheço, disse a excelente senhora. E tenho até vontade de a conhecer. Que me dizem que é dos pés à cabeça uma crosta de pecado!
A S. Joaneira então falou da "proposta do Libaninho". D. Maria da Assunção declarou logo com ardor que era uma inspiração de Nosso Senhor. Que nunca o senhor pároco devia ter saído da Rua da Misericórdia! Até parece que mal ele se fora embora, Deus retirara a sua graça da casa... Não houvera senão desgostos - o Comunicado, a dor de estômago do cônego, a morte da entrevadinha, aquele desgraçado casamento (que estivera por um triz, que horror!), o escândalo do Largo da Sé... A casa tinha parecido enguiçada!... E era até pecado deixar viver o santinho naquele desarranjo, com a suja da Vicência, que nem lhe sabia dar uma passagem nas meias!
- Em parte nenhuma pode estar melhor que em tua casa... Tem tudo o que necessita, de portas adentro... E para ti é uma honra, é estar em graça. Olha, filha, se eu não fosse só, sempre o digo, quem o hospedava era eu! Que aqui é que ele estava bem... Que salinha para ele, hem?
Riam-se-lhe os olhos, contemplando em redor as suas preciosidades.
A sala com efeito era toda ela uma imensa armazenagem de santaria e de bric-à-brac devoto; sobre as duas cômodas de pau-preto com fechaduras de cobre apinhavam-se, sobre redomas, em peanhas, as Nossas Senhoras vestidas de seda azul, os Meninos Jesus frisados com o ventrezinho gordo e a mão abençoadora, os Santos Antônios no seu burel, os S. Sebastiões bem frechados, os S. Josés barbudos. Havia santos exóticos, que eram o seu orgulho, que lhe fabricavam em Alcobaça - S. Pascoal Bailão, S. Didàcio, S. Crisolo, S. Gorislano... Depois eram os bentinhos, os rosários de metal e de caroços de azeitonas, contas de cores, rendas amarelas de antigas alvas, corações de vidro escarlate, almofadinhas com J. M, entrelaçados a miçanga, ramos bentos, palmas de mártires, cartuchinhos de incenso. As paredes desapareciam forradas de estampas de Virgens de todas as devoções, - equilibradas sobre o orbe, enrodilhadas aos pés da cruz, traspassadas de espadas. Corações de onde gotejava sangue, corações de onde saia uma fogueira, corações de onde dardejavam raios; orações encaixilhadas para as festas particularmente amadas - o Casamento de Nossa Senhora, a Invenção da Santa Cruz, os Estigmas de S. Francisco, sobretudo o Parto da Santa Virgem, a mais devota, que vem pelas quatro têmporas. Sobre as mesas lamparinas acesas, para serem colocadas sem demora aos santos especiais, quando a boa senhora tivesse a sua ciática, ou que o catarro se assanhasse, ou lhe viessem as cãibras. Ela mesma, só ela, arrumava, espanejava, lustrava toda aquela santa população celeste, aquele arsenal beato, que era apenas suficiente para a salvação da sua alma e o alívio dos seus achaques. O seu grande cuidado era a colocação dos santos; alterava-a constantemente, porque às vezes, por exemplo, sentia que Santo Eleutério não gostava de estar ao pé de S. Justino, e ia então pendurá-lo a distância, numa companhia mais simpática ao santo. E distinguia-os (segundo os preceitos do ritual que o confessor lhe explicava), dando-lhes uma devoção graduada, e não tendo por S. José de segunda classe o respeito que sentia por S. José de primeira classe. Aquela riqueza era a inveja das amigas, a edificação dos curiosos, e fazia sempre dizer ao Libaninho quando a vinha visitar, abrangendo a sala num olhar langoroso: - Ai, filha, é o reininho dos Céus!
- Não é verdade, continuava a excelente senhora radiante, que ele aqui é que estava bem, o santinho do pároco? É como ter o Céu debaixo da mão!
As duas senhoras concordaram. Ela podia ter a sua casa arranjada com devoção, ela que era rica...
- Não o nego, tenho aqui empregadinhos alguns centos de mil-réis. Sem contar o que está no relicário...
Ah, o famoso relicário de sândalo forrado de cetim! Tinha lá uma lascazinha da verdadeira Cruz, um bocado quebrado do espinho da Coroa, um farrapinho do cueiro do Menino Jesus. E murmurava-se com azedume, entre as devotas, que coisas tão preciosas, de origem divina, deviam estar no sacrário da Sé. D. Maria da Assunção temendo que o senhor chantre soubesse daquele tesouro seráfico, só o mostrava às íntimas, misteriosamente. E o santo sacerdote, Que lho obtivera, fizera-a jurar sobre o Evangelho de não revelar a procedência "para evitar falatórios".
A S. Joaneira, como sempre, admirou sobretudo o farrapinho do cueiro.
- Que relíquia, que relíquia! murmurava.
E D. Maria da Assunção muito baixo:
- Não há melhor. Trinta mil-réis me custou... Mas dava sessenta, mas dava cem! mas dava tudo! - E babando-se toda, diante do trapinho precioso: - O cueirinho! dizia Quase a chorar. Meu rico Menino, o seu cueirinho...
Deu-lhe um beijo muito repenicado, e foi fechar o relicário no gavetão.
Mas o meio-dia ia bater - e as três senhoras apressaram-se para a Sé, para pilhar lugar no altar-mor.
Já no largo encontraram D. Josefa Dias, que se precipitava para a igreja, sôfrega da missa, com o mantelete descaído sobre o ombro e uma pluma do chapéu a despregar-se. Tinha estado toda a manhã num frenesi com a criada! Fora necessário fazer ela todos os preparos para o jantar... Ai, tinha medo que nem a missinha lhe desse virtude, de nervosa que estava...
- Que temos lá o senhor pároco hoje... Vocês sabem que adoeceu a criada... Ah, já me esquecia, o mano quer que tu lá vás jantar também, Amélia. Diz Que é para haverem duas damas e dois cavalheiros...
Amélia riu de alegria.
- E tu vai depois buscá-la, S. Joaneira, à noitinha... Credo, vesti- me tanto à pressa, que até parece que me está a cair o saiote!
Quando as Quatro senhoras entraram, a igreja estava já cheia. Era uma missa cantada ao Santíssimo. E apesar de contrário ao rigor do ritual, por um costume diocesano (Que o bom Silvério, muito estrito na liturgia, nunca cessava de reprovar) havia, estando presente a Eucaristia, música de rabeca, violoncelo e flauta. O altar, muito ornado, com as relíquias expostas, destacava numa alvura festiva; dossel, frontal, paramentos dos missas eram brancos, com relevos de ouro desmaiado; nos vasos erguiam- se ramos piramidais de flores e folhagens brancas; os veludilhos decorativos, dispostos como velários, punham dos dois lados do tabernáculo a brancura de duas vastas asas desdobradas, lembrando a Pomba Espiritual; e os vinte castiçais erguiam a suas chamas amarelas em trono até ao sacrário aberto, que mostrava de alto, engastada num rebrilhar de ouros vivos, a hóstia redonda e baça. Por toda a igreja apinhada corria uma sussurração lenta; aqui e além um catarro expectorava, uma criança choramingava; o ar adensava-se já dos hálitos juntos e de um cheiro de incenso; e do coro, onde as figuras dos músicos se moviam por trás dos braços dos rabecões e das estantes, vinha a cada momento um afinar gemido de rabeca, ou um pio de flautim. As quatro amigas tinham-se apenas acomodado junto ao altar-mor, quando os dois acólitos, um teso como um pinheiro, o outro gordalhufo e enxovalhado, entraram do lado da sacristia, sustentando alto e direito nas mãos os dois castiçais consagrados; atrás o Pimenta vesgo, com uma sobrepeliz muito vasta para ele, lançando os seus sapatões em passadas pomposas, trazia o incensador de prata; depois sucessivamente, durante o rumor do ajoelhar pela nave e do folhear dós livrinhos, apareceram os dois diáconos; e enfim, paramentado de branco, de olhos baixos e mãos postas, com aquele recolhimento humilde que pede o ritual e que exprime a mansidão de Jesus marchando ao Calvário, entrou o padre Amaro - ainda vermelho da questão furiosa que tivera na sacristia, antes de se revestir, por causa da lavagem das alvas.
E o coro imediatamente atacou o Intróito.
···
Amélia passou a sua missa embevecida, pasmada para o pároco - que era, como dizia o cônego, "um grande artista para missas cantadas"; todo o cabido, todas as senhoras o reconheciam. Que dignidade, que cavalheirismo nas saudações cerimoniosas aos diáconos! Como se prostrava bem diante do altar, aniquilado e escravizado, sentindo-se cinza, sentindo-se pó diante de Deus, que assiste de perto, cercado da sua corte e da sua família celeste! Mas era sobretudo admirável nas bênçãos; passava devagar as mãos sobre o altar como para apanhar, recolher a graça que ali caía do Cristo presente, e atirava-a depois com um gesto largo de caridade por toda a nave, por sobre o estendal de lenços brancos de cabeça, até ao fundo onde os homens do campo muito apertados, de varapau na mão, pasmavam para a cintilação do sacrário! Era então que Amélia o amava mais, pensando que aquelas mãos abençoadoras lhas apertava ela core paixão por baixo da mesa do quino: aquela voz, com que ele lhe chamava filhinha, recitava agora as orações inefáveis, e parecia-lhe melhor que o gemer das rabecas, revolvia-a mais que os graves do órgão! Imaginava com orgulho que todas as senhoras decerto o admiravam também; mas só tinha ciúmes, um ciúme de devota que sente os encantos do Céu, quando ele ficava diante do altar, na posição estática que manda o ritual, tão imóvel como se a sua alma se tivesse remontado longe, para as alturas, para o Eterno e para o Insensível. Preferia-o, por o sentir mais humano e mais acessível, quando, durante o Kyrie ou a leitura da Epistola, ele se sentava com os diáconos no banco de damasco vermelho; ela queria então atrair-lhe um olhar; mas o senhor pároco permanecia de olhos baixos, numa compostura modesta.
Amélia, sentada sobre os calcanhares, com a face banhada num sorriso, admirava-lhe o perfil, a cabeça bem-feita, os paramentos dourados - e lembrava-se quando o vira a primeira vez descendo a escada da Rua da Misericórdia, com o seu cigarro na mão. Que romance se passara desde essa noite! Recordava o Morenal, o salto do valado, a cena da morte da titi, aquele beijo ao pé da lareira... Ai, como acabaria tudo aquilo? Queria então rezar; folheava o livro, mas vinha-lhe à ideia o que o Libaninho nessa manhã dissera: "O senhor pároco tinha uma pelezinha tão branca como um arcanjo..." Devia-a ter decerto muito delicada, muito tenra... Um desejo intenso queimava-a: imaginava que era uma tentadora visitação do demônio, - e para a repelir arregalava os olhos para o sacrário e para o trono que o padre Amaro, cercado dos diáconos, incensava em semicírculos significando a Eternidade dos Louvores, enquanto o coro berrava o Ofertório... Depois ele mesmo, de pé, no segundo degrau do altar, de mãos postas, foi incensado; o Pimenta vesgo fazia ranger galhardamente as correntes de prata do turíbulo; um perfume de incenso derramava-se, como uma anunciação celeste; enevoava-se o sacrário sob os rolos alvos de fumo; e o pároco aparecia a Amélia transfigurado, quase divinizado!... Oh, adorava-o então!

A igreja tremia ao clamor do órgão em pleno; de bocas abertas, os coristas solfejavam a toda a força; em cima, alçando-se entre os braços dos rabecões, o mestre da capela, no fogo da execução, brandia desesperadamente a sua batuta feita dum rolo de cantochão.
···
Amélia saiu da igreja muito fatigada, muito pálida.
Ao jantar, em casa do cônego, a Sra. D. Josefa censurou-a repetidamente de "não dar palavra".
Não falava, mas debaixo da mesa o seu pezinho não cessava de roçar, pisar o do padre Amaro. Como escurecera cedo tinham acendido as velas; o cônego abrira uma garrafa, não do seu famoso duque de 1815, mas do "1847", para acompanhar a travessa de aletria que enchia o centro da mesa, com as iniciais do pároco desenhadas a canela; era, como explicara o cônego, "uma galantaria da mana ao convidado". Amaro fizera logo uma saúde com o 1847 "à digna dona da casa". Ela resplandecia, medonha no seu vestido de barege verde. O que sentia é que o jantar fosse tão mau... Que aquela Gertrudes estava-se a fazer uma desleixada... Ia-lhe deixando esturrar o pato com macarrão!
- Oh, minha senhora, estava delicioso! protestou o pároco.
- São favores do senhor pároco. É porque eu lhe acudi a tempo... Mais uma colherzinha de aletria, senhor pároco.
- Nada mais, minha senhora, tenho a minha conta.
- Então para desgastar, vá mais esse copito do 47, disse o cônego.
Ele mesmo bebeu pausadamente um bom gole, deu um ah de satisfação, e repoltreando-se:
- Boa gota! assim pode-se viver!
Estava já rubro, e parecia mais obeso, com o seu grosso jaquetão de flanela e o guardanapo atado ao pescoço.
- Boa gota, repetiu, deste não provou hoje você nas galhetas.
- Credo, mano! exclamou D. Josefa com a boca cheia de fios de aletria, muito escandalizada da irreverência.
O cônego encolheu os ombros com desprezo.
- O credo é para a missa! Esta pretensão de se meter sempre em questões que não percebe! Pois fique sabendo que é duma grande importância a questão da qualidade do vinho, na missa. É que é necessário que o vinho seja bom...
- Concorre para a dignidade do santo sacrifício, disse o pároco muito sério, fazendo uma carícia de joelho a Amélia.
- E não é só isso, disse o cônego tomando logo o tom de pedagogo. É que o vinho, quando não é bom ou tem ingredientes, deixa um depósito nas galhetas; e, se o sacristão não é cuidadoso e não as limpa, as galhetas ganham um cheiro péssimo. E sabe a senhora o que acontece? Acontece que o sacerdote, quando vai a beber o sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, não está prevenido e faz-lhe uma careta. Ora aí tem a senhora!
E deu um forte chupão ao cálice. Mas estava falador nessa noite, e depois de arrotar devagar, interpelou de novo D. Josefa, assombrada de tanta ciência.
- E diga-me lá então a senhora, já que é tão doutora. O vinho, no divino sacrifício, deve ser branco ou tinto?
D. Josefa parecia-lhe que devia ser tinto, para se parecer mais com o sangue de Nosso Senhor.
- Emende a menina, mugiu o cônego de dedo em riste para Amélia.
Ela recusou-se, com um risinho. Como não era sacristão, não sabia...
- Emende o senhor pároco!
Amaro galhofou. Se era erro ser tinto, então devia ser branco...
- E por quê?
Amaro ouvira dizer que era o costume em Roma.
- E por quê? continuava o cônego, pedante e roncão. Não sabia.
- Porque Nosso Senhor Jesus Cristo, quando pela primeira vez consagrou, fê-lo com vinho branco. E a razão é muito simples: é porque na Judéia nesse tempo, como é notório, não se fabricava vinho tinto... Repita- me a senhora a aletria, faça favor.
Então, a propósito do vinho e da limpeza das galhetas, o padre Amaro queixou-se do Bento sacristão. Nessa manhã antes de se paramentar - justamente quando entrara o senhor cônego na sacristia - acabava de lhe dar uma desanda a respeito das alvas. Em primeiro lugar dava-as a lavar a uma Antônia que vivia amancebada com um carpinteiro, em grande escândalo, e que era indigna de tocar os paramentos santos. Esta era a primeira. Depois, a mulher trazia-as tão enxovalhadas que era um desacato usá-las no divino sacrifício...
- Ai, mande-me a mim, senhor pároco, mande-me a mim, acudiu D. Josefa. Dou-as à minha lavadeira, que é pessoa de muita virtude e traz a roupa escarolada. Ai, até era uma honra para mim! Eu mesmo as passava a ferro, e até se podia benzer o ferro...
Mas o cônego (que positivamente estava naquela noite duma loquacidade copiosa) interrompeu-a, e voltando-se para o padre Amaro, fixando-o profundamente:
- Ora a propósito de eu entrar na sacristia, sempre lhe quero dizer, amigo e colega, que cometeu hoje um erro de palmatória.
Amaro pareceu inquieto.
- Que erro, padre-mestre?
- Depois de se revestir, continuou o cônego pausadamente, já com os diáconos ao lado, quando fez a cortesia à imagem da sacristia, em lugar de fazer a cortesia profunda, fez só a meia cortesia.
- Alto lá, padre-mestre! exclamou o padre Amaro. É o texto da rubrica. Facta reverentia cruci, feita a reverência à cruz; isto é, a reverência simples, abaixar ligeiramente a cabeça...
E, para exemplificar, fez uma cortesia a D. Josefa que lhe sorriu toda, torcendo-se.
- Nego! exclamou formidavelmente o cônego que em sua casa, à sua mesa, punha de alto as suas opiniões. E nego com os meus autores. Eles aí vão! - e deixou-lhe cair em cima, como penedos de autoridade, os nomes venerados de Laboranti, Baldeschi, Merati, Turrino e Pavônio.
Amaro afastara a cadeira, pusera-se em atitude de controvérsia, contente de poder, diante de Amélia, "enterrar" o cônego, mestre de teologia moral e um colosso de liturgia prática.
- Sustento, exclamou, sustento com Castaldus...
- Alto, ladrão, bramiu o cônego. Castaldus é meu!
- Castaldus é meu, padre-mestre!
E encarniçaram-se, puxando cada um para si o venerável Castaldus e a autoridade da sua facúndia. D. Josefa pulava de gozo na cadeira, murmurando para Amélia com a cara franzida de riso:
- Ai, que gostinho vê-los! Ai, que santos!
Amaro continuava, com gesto alto:
- E além disso, tenho por mim o bom senso, padre-mestre. Primo, a rubrica, como expus. Segundo, o sacerdote, tendo na sacristia o barrete na cabeça, não deve fazer cortesia inteira, porque lhe pode cair o barrete e temos desacato maior. Tertio, seguir-se-ia um absurdo, porque então a cortesia antes da missa à cruz da sacristia seria maior que a que se faz depois da missa à cruz do altar!
- Mas a cortesia à cruz do altar... bradou o cônego.
- É meia cortesia. Leia a rubrica: Caput inclinat. Leia Gavantus, leia Garriffaldi. E nem podia deixar de ser assim! Sabe por quê? Porque depois da missa o sacerdote está no auge da dignidade, uma vez que tem dentro em si o corpo e sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo. Logo, o ponto é meu!
E de pé, esfregou vivamente as mãos, triunfando.
O cônego abatera a papeira sobre as pregas do guardanapo, como um boi atordoado. E depois dum momento:
- Você não deixa de ter razão... Eu fui para o ouvir... Faz-me honra cá o discípulo, acrescentou piscando o olho a Amélia. Pois é beber, é beber! E depois salta o cafezinho bem quente, mana Josefa!
Mas um forte repique à campainha sobressaltou-os.
- É a S. Joaneira, disse D. Josefa.
A Gertrudes entrou com um xale e uma manta de lã:
- Aqui está isto que vem de casa da menina Amélia. A senhora manda muitos recados, que não pode vir, que se achou incomodada.
- Então com quem hei de eu ir? disse logo Amélia, inquieta.
O cônego estendeu o braço sobre a mesa, e dando-lhe uma palmadinha na mão:
- Em último caso com este seu criado. E essa virtudezinha podia ir sossegada...


- Tem coisas, mano! gritou a velha.
- Deixa lá, mana. O que passa pela boca dum santo, santo fica.
O pároco aprovou ruidosamente:
- Tem muita razão o senhor cônego Dias! O que passa pela boca de um santo, santo fica! Para que viva!
- À sua!
E tocaram os copos, com um olho gaiato, reconciliados da controvérsia.
Mas Amélia ficara assustada.
- Jesus, que terá a mamã? Que será?
- Ora que há de ser? preguiça! disse-lhe o pároco, rindo.
- Não te agonies, filha, disse D. Josefa. Vou-te eu levar, vamos todos levar-te...
- Vai a menina em charola, rosnou o cônego descascando a sua pêra.
Mas de repente pousou a faca, arregalou os olhos em redor, e passando a mão pelo estômago:
- Pois olhem, disse, não me estou também a sentir bem...
- Que é? que é?
- Um ameaçozito da dor. Passou, não vale nada.
D. Josefa, já assustada, não queria que ele comesse a pêra. Que a última vez que lhe dera fora por causa da fruta...
Mas ele, obstinado, cravou os dentes na pêra.
- Passou, passou, rosnava.
- Foi simpatia com a mamã, disse o pároco baixo a Amélia.
De repente o cônego afastou a cadeira, e torcendo-se de lado:
- Não estou bem, não estou bem! Jesus! Oh, diabo! Oh, caramba! Ai! ai! morro!
Alvoroçaram-se em volta dele. D. Josefa amparou-o pelo braço até o quarto, gritando à criada que fosse buscar o doutor. Amélia correu á cozinha a aquecer uma flanela para lhe pôr no estômago. Mas não aparecia flanela. Gertrudes topava contra as cadeiras, espavorida, à procura do seu xale para sair.
- Vá sem xale, sua estúpida! gritou-lhe Amaro.
A rapariga abalou. Dentro o cônego dava urros.
Amaro então, realmente assustado, entrou-lhe no quarto. D. Josefa de joelhos diante da cômoda gemia orações a uma grande litografia de Nossa Senhora das Dores; e o pobre padre-mestre, estirado de barriga sobre a cama, rilhava o travesseiro.
- Mas minha senhora, disse o pároco severamente, não se trata agora de rezar. É necessário fazer-lhe alguma coisa... Que se lhe costuma fazer?
- Ai, senhor pároco, não há nada, não há nada, choramigou a velha. É uma dor que vem e vai num momento. Não dá tempo pra nada! Um chá de tília alivia-o às vezes... Mas por desgraça hoje nem tília tenho! Ai, Jesus!
Amaro correu a casa a buscar tília. E dai a pouco voltava esbaforido com a Dionísia, que vinha oferecer a sua atividade e a sua experiência.
Mas o senhor cônego, felizmente, sentira-se de repente aliviado!
- Muito agradecida, senhor pároco, dizia D. Josefa. Rica tília! É de muita caridade. Ele agora naturalmente cai em sonolência. Vem-lhe sempre depois da dor... Eu vou para ao pé dele, desculpem-me... Esta foi pior que as outras... São estas frutas mald... - reteve a blasfêmia, aterrada. - São as frutas de Nosso Senhor. É a sua divina vontade... Desculpem- me, sim?
Amélia e o pároco ficaram sós na sala. Os seus olhares reluziram logo do desejo de se tocar, de se beijar, mas as portas estavam abertas; e sentiam no quarto ao lado, as chinelas da velha. O padre Amaro disse então alto:
- Pobre padre-mestre! É uma dor terrível.
- Dá-lhe todos os três meses, disse Amélia. A mamã já andava com o pressentimento. Ainda me tinha dito antes de ontem: é o tempo da dor do senhor cônego, estou com mais cuidado...
O pároco suspirou, e baixinho:
- Eu é que não tenho quem pense nas minhas dores...
Amélia pousou nele longamente os seus belos olhos umedecidos de ternura.
As suas mãos iam apertar-se ardentemente por sobre a mesa; mas D. Josefa apareceu, encolhida no seu xale. O mano tinha adormecido. E ela estava que não se podia ter nas pernas. Ai, aqueles abalos arrasavam-lhe a saúde! Acendera duas velas a S. Joaquim, e fizera uma promessa a Nossa Senhora da Saúde. Era a segunda aquele ano, por causa da dor do mano. E Nossa Senhora não lhe tinha faltado...
- Nunca falta a quem a implora com fé, minha senhora, disse com unção o padre Amaro.
O alto relógio de armário bateu então cavamente oito horas. Amélia falou outra vez no cuidado em que estava pela mamã... De mais a mais ia- se a fazer tão tarde...
- E é que quando eu sai estava a chuviscar, disse Amaro.
Amélia correu à janela, inquieta. O lajedo defronte, debaixo do candeeiro, reluzia muito molhado. O céu estava tenebroso.
- Jesus, vamos ter uma noite de água!
D. Josefa estava aflita com o contratempo; mas a Amélia bem via, ela agora não podia despegar de casa; a Gertrudes fora ao doutor; naturalmente não o encontrara; andava a procurá-lo de casa em casa, quem sabe quando viria...
O pároco então lembrou que a Dionísia (que viera com ele e esperava na cozinha) podia ir acompanhar a Sra. D. Amélia. Eram dois passos, não havia ninguém pelas ruas. Ele mesmo iria com elas até à esquina da Praça... Mas deviam apressar-se que ia cair água!
D. Josefa foi logo buscar um guarda-chuva para Amélia. Recomendou-lhe muito que contasse à mamã o que tinha sucedido. Mas que não se afligisse ela, que o mano estava melhor...
- E olha! gritou-lhe ainda de cima da escada. Diz-lhe que se fez tudo o que se pôde, mas que a dor não deu tempo para nada!
- Sim, lá direi. Boa noite.
Ao abrirem a porta a chuva caía grossa. Amélia então quis esperar. Mas o pároco, apressado, puxou-a pelo braço:
- Não vale nada, não vale nada!
Desceram a rua deserta, aconchegados debaixo do guarda-chuva, com a Dionísia ao lado, muito calada, de xale pela cabeça. Todas as janelas estavam apagadas; no silêncio as goteiras cantavam de enxurrão.
- Jesus, que noite! disse Amélia. Vai-se-me a perder o vestido.
Estavam então na Rua das Sousas.
- É que agora cai a cântaros, disse Amaro. Realmente parece-me que o melhor é entrar no pátio de minha casa e esperar um bocado...
- Não, não! acudiu Amélia.
- Tolices! exclamou ele impaciente. Vai-se-lhe estragar o vestido... É um instante, é um aguaceiro. Para aquele lado, vê, está a aliviar. Vai passar... É uma tolice... A mamã, se a visse aparecer debaixo duma carga de água, zangava-se, e com razão!
- Não, não!
Mas Amaro parou, abriu rapidamente a porta, empurrando Amélia de levei
- É um instante, vai passar, entre...
E ali ficaram, calados, no pátio escuro, olhando as cordas de água que reluziam à luz do candeeiro defronte. Amélia estava toda atarantada. A negrura do pátio e o silêncio assustavam-na; mas parecia-lhe delicioso estar assim naquela escuridão, ao pé dele, ignorada de todos... Insensivelmente atraída, roçava-se-lhe pelo ombro; e recuava logo, inquieta de ouvir a sua respiração tão agitada, de o sentir tão junto das saias. Percebia por trás, sem a ver, a escada que levava ao quarto dele; e tinha um desejo imenso de lhe ir ver, acima, os seus móveis, os seus arranjos... A presença da Dionísia, encolhida contra a porta e muito calada, embaraçava-a; todavia a cada momento voltava os olhos para ela, receando que desaparecesse, se sumisse na negrura do pátio ou da noite...
Amaro então começou a bater com os pés no chão, a esfregar as mãos, arrepiado.
- Estamos aqui a apanhar alguma, dizia. As lajes estão regeladas. Realmente era melhor esperar em cima na sala de jantar...
- Não, não! disse ela.
- Pieguices! Até a mamã se havia de zangar... Vá, Dionísia, acenda luz em cima.

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