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quarta-feira, 27 de novembro de 2013

O Crime do Padre Amaro - Eça de Queirós [parte 15]


E João Eduardo ia seguir para os lados da alameda - quando apareceram no terraço da igreja, da banda da sacristia, o padre Silvério e o padre Amaro, conversando, devagar.
Batia então um quarto na torre, e o padre Silvério parou a acertar o seu cebolão. Depois os dois padres observaram maliciosamente a janela da administração de vidraças abertas, onde se via, no escuro, o vulto do senhor administrador de binóculo cravado para a casa do Teles alfaiate. E desceram enfim a escadaria da Sé, rindo de ombro a ombro, divertidos com aquela paixão que escandalizava Leiria.
Foi então que o pároco viu João Eduardo que estacara no meio do largo. Parou para voltar à Sé decerto, evitar o encontro; mas viu o portão fechado, e ia seguir de olhos baixos, ao lado do bom Silvério que tirava tranquilamente a sua caixa de rapé, - quando João Eduardo, arremessando-se, sem uma palavra, atirou a toda a força um murro no ombro de Amaro.
O pároco, aturdido, ergueu frouxamente o guarda-chuva.
- Acudam! berrou logo o padre Silvério, recuando de braços no ar. Acudam!
Da porta da administração um homem correu, agarrou furiosamente o escrevente pela gola:
- Está preso! rugia. Está preso!
- Acudam, acudam! berrava Silvério a distância.
Janelas no largo abriam-se à pressa. A Amparo da botica, em saia branca, apareceu à varanda, espavorida; o Carlos precipitara-se do laboratório em chinelas; e o senhor administrador, debruçado na sacada, bracejava, com o binóculo na mão.
Enfim o escrivão da administração, o Domingos, compareceu, muito grave, de mangas de lustrina enfiadas; e com o cabo de polícia levou logo para a administração o escrevente, que não resistia, todo pálido...
O Carlos, esse, apressou-se a conduzir o senhor pároco para a botica; fez preparar, com estrépito, flor de laranja e éter; gritou pela esposa, para arranjar uma cama... Queria examinar o ombro de sua senhoria: haveria intumescência?

- Obrigado, não é nada, dizia o pároco muito branco. Não é nada. Foi um raspão. Basta-me uma gota de água...
Mas a Amparo achava melhor um cálice de vinho do Porto; e correu acima a buscar-lho, tropeçando nos pequenos que se lhe despenduravam das saias, dando ais, explicando pela escada à criada que tinham querido matar o senhor pároco!
À porta da botica juntara-se gente, que embasbacava para dentro; um dos carpinteiros que trabalhavam nas obras afirmava que "fora uma facada"; e uma velha por trás debatia-se, de pescoço esticado, para ver o sangue. Enfim, a pedido do pároco, que receava escândalo, o Carlos veio majestosamente declarar que não queria motim à porta! O senhor pároco estava melhor. Fora apenas um soco, um raspão de mão... Ele respondia por sua senhoria.
E como o burro ao lado começara a ornear, o farmacêutico voltando- se indignado para o rapazito que o segurava pela arreata:
- E tu não tens vergonha, no meio dum desgosto destes, um desgosto para toda a cidade, de ficar aqui com esse animal, que não faz senão zurrar? Para longe, insolente, para longe!
Aconselhou então os dois sacerdotes a que subissem para a sala, para evitar a "curiosidade da populaça". E a boa Amparo apareceu logo com dois cálices do Porto, um para o senhor pároco, outro para o Sr. padre Silvério que se deixara cair a um canto do canapé apavorado ainda, extenuado de emoção.
- Tenho cinquenta e cinco anos, disse ele depois de ter chupado a última gota de Porto, e é a primeira vez que me vejo num barulho!
O padre Amaro, mais sossegado agora, afetando bravura, chasqueou o padre Silvério:
- Você tomou o caso muito ao trágico, colega... E lá ser a primeira, vamos lá... Todos sabem que o colega esteve pegado com o Natário...
- Ah, sim, exclamou o Silvério, mas isso era entre sacerdotes, amigo!
Mas a Amparo, ainda muito trêmula, enchendo outro cálice ao senhor pároco, quis saber "os particulares, todos os particulares..."
- Não há particulares, minha senhora, eu vinha aqui com o colega... Vínhamos cavaqueando... O homem chegou-se a mim, e, como eu estava desprevenido, deu-me um raspão no ombro.
- Mas por quê, por quê? exclamou a boa senhora, apertando as mãos, num assombro.
O Carlos então deu a sua opinião. Ainda havia dias, ele dissera, diante da Amparozinho e de D. Josefa, a irmã do respeitável cônego Dias, que estas ideias de materialismo e ateísmo estavam levando a mocidade aos mais perniciosos excessos... E mal sabia ele então que estava profetizando!
- Vejam vossas senhorias este rapaz! Começa por esquecer todos os deveres de cristão (assim no-lo afirmou D. Josefa), associa-se com bandidos, achincalha os dogmas nos botequins... Depois (sigam vossas senhorias a progressão), não contente com estes extravios, publica nos periódicos ataques abjetos contra a religião... E enfim, possuído duma vertigem de ateísmo, atira-se, diante mesmo da catedral, sobre um sacerdote exemplar (não é por vossa senhoria estar presente) e tenta assassiná-lo! Ora, pergunto eu, o que há no fundo de tudo isto? Ódio, puro ódio à religião de nossos pais!
- Infelizmente assim é, suspirou o padre Silvério.
Mas a Amparo, indiferente às causas filosóficas do delito, ardia na curiosidade de saber o que se passaria na administração, o que diria o escrevente, se o teriam posto a ferros... O Carlos prontificou-se logo a ir averiguar.
De resto, disse ele, era o seu dever, como homem de ciência, esclarecer a justiça sobre as consequências que podia ter trazido um murro, à força de braço, na região delicada da clavícula... (ainda que, louvado Deus, não havia fratura, nem inchaço), e sobretudo queria revelar à autoridade, para que ela tomasse as suas providências, que aquela tentativa de espancamento não provinha de vingança pessoal. Que podia ter feito o senhor pároco da Sé ao escrevente do Nunes? Provinha duma vasta conspiração de ateus e republicanos contra o sacerdócio de Cristo!
- Apoiado, apoiado! disseram os dois sacerdotes gravemente.
- E é o que eu vou provar cabalmente ao senhor administrador do conselho!
Na sua precipitação zelosa de conservador indignado, ia mesmo de chinelas e quinzena de laboratório: mas Amparo alcançou-os no corredor:
- Oh filho, a sobrecasaca, põe a sobrecasaca ao menos, que o administrador é de cerimônias!
Ela mesmo lha ajudou a enfiar, enquanto o Carlos, com a imaginação trabalhando viva (aquela desgraçada imaginação que, como ele dizia, até às vezes lhe dava dores de cabeça), ia preparando o seu depoimento, que faria ruído na cidade. Falaria de pé. Na saleta da administração seria um aparato judicial; à sua mesa, o senhor administrador, grave como a personificação da Ordem; em redor os amanuenses, ativos sobre o seu papel selado; e o réu, defronte, na atitude tradicional dos criminosos políticos, os braços cruzados sobre o peito, a fronte alta desafiando a morte. Ele, Carlos, então, entraria e diria: "Senhor administrador, aqui venho espontaneamente pôr-me ao serviço da vindita social!"
- Hei de lhes mostrar, com uma lógica de ferro, que é tudo resultado duma conspiração do racionalismo. Podes estar certa, Amparozinho, é uma conspiração do racionalismo! disse, puxando, com um gemido de esforço, as presilhas dos botins de cano.
- E repara se ele fala da pequena, da S. Joaneira...
- Hei-de tomar notas. Mas não se trata da S. Joaneira. Isto é um processo político!
Atravessou o largo majestosamente, certo que os vizinhos, pelas portas, murmuravam: Lá vai o Carlos depor... Ia depor, sim, mas não sobre o murro no ombro de sua senhoria. Que importava o murro? O grave era o que estava por trás do murro - uma conspiração contra a Ordem, a Igreja, a Carta e a Propriedade! É o que ele provaria de alto ao senhor administrador. Este murro, ilustríssimo senhor, é o primeiro excesso duma grande revolução social!

E empurrando o batente de baeta que dava acesso para a administração do concelho de Leiria, ficou um momento com a mão no ferrolho, enchendo o vão da porta da pompa da sua pessoa. Não, não havia o aparato judicial que ele concebera. O réu lá estava, sim, o pobre João Eduardo, mas sentado à beira do banco, com as orelhas em brasa, olhando estupidamente o soalho. Artur Couceiro, embaraçado com a presença daquele íntimo dos serões da S. Joaneira, ali no assento dos presos, para o não olhar fixara o nariz sobre o imenso copiador de ofícios, onde desdobrara o Popular da véspera. O amanuense Pires, de sobrancelhas muito erguidas e muito sérias, embebia-se na ponta da pena de pato que aparava sobre a unha. O escrivão Domingos, esse sim, vibrava de atividade! O seu lápis rascunhava com furor; o processo estava-se decerto apressando; era tempo de trazer a sua ideia... E o Carlos então adiantando-se:
- Meus senhores! O senhor administrador?
Justamente, a voz de sua excelência chamou de dentro do seu gabinete:
- Ó Sr. Domingos?
O escrivão perfilou-se, puxando os óculos para a testa.
- Senhor administrador!
- O senhor tem fósforos?
O Domingos procurou ansiosamente pela algibeira, na gaveta, entre os papéis...
- Algum dos senhores tem fósforos?
Houve um rebuscar de mãos sobre a mesa... Não, não havia fósforos.
- Ó Sr. Carlos, o senhor tem fósforos?
- Não tenho, Sr. Domingos. Sinto.
O senhor administrador apareceu então, ajeitando as suas lunetas de tartaruga:
- Ninguém tem fósforos, hem? É extraordinário que não haja aqui nunca fósforos! Uma repartição destas sem um fósforo... Que fazem os senhores aos fósforos? Mande buscar por uma vez meia dúzia de caixas!
Os empregados olhavam-se consternados dessa falta flagrante no material do serviço administrativo. E o Carlos, apoderando-se logo da presença e da atenção de sua excelência:
- Senhor administrador, eu aqui venho... Aqui venho solicito e espontâneo, por assim dizer...
- Diga-me uma coisa, Sr. Carlos, interrompeu a autoridade. O pároco e o outro ainda estão lá na botica?
- O senhor pároco e o Sr. padre Silvério ficaram com minha esposa a repousar da comoção que...
- Tem a bondade de lhes dizer que são cá precisos...
- Eu estou à disposição da lei.
- Que venham quanto antes... São cinco horas e meia, queremo-nos ir embora! Vejam que maçada tem sido esta aqui, todo o dia! A repartição fecha-se às três!
E sua excelência, rodando, sobre os tacões, foi debruçar-se à sacada do seu gabinete - àquela sacada de onde ele diariamente, das onze às três, retorcendo o bigode louro e entesando o plastrão azul, depravava a mulher do Teles.
O Carlos abria já o batente verde, quanto um pst do Domingos o deteve.
- Ó amigo Carlos .- e o sorrisinho do escrivão tinha uma suplicação tocante - desculpe, hem? Mas... Traz-me de lá uma caixita de fósforos?
Neste momento à porta aparecia o padre Amaro; e por trás a massa enorme do Silvério.
- Eu desejava falar ao senhor administrador em particular, disse Amaro.
Todos os empregados se ergueram; João Eduardo também, branco como a cal do muro. O pároco, com as sua passadas sutis de eclesiástico, atravessou a repartição, seguido do bom Silvério que ao passar diante do escrevente descreveu de esguelha um semicírculo cauteloso, com terror ao réu; o senhor administrador acudira a receber suas senhorias; e a porta do gabinete fechou-se discretamente.
- Temos composição, rosnou o experiente Domingos, piscando o olho aos colegas.
O Carlos sentara-se descontente. Viera ali para esclarecer a autoridade sobre os perigos sociais que ameaçavam Leiria, o Distrito e a Sociedade, para ter o seu papel naquele processo, que, segundo ele, era um processo político - e ali estava calado, esquecido, no mesmo banco ao lado do réu! Nem lhe tinham oferecido uma cadeira! Seria realmente intolerável que as coisas se arranjassem entre o pároco e o administrador sem o consultarem a ele! Ele, o único que percebera naquele murro dado no ombro do padre - não o punho do escrevente, mas a mão do Racionalismo! Aquele desdém pelas suas luzes parecia-lhe um erro funesto da administração do Estado. Positivamente o administrador não tinha a capacidade necessária para salvar Leiria dos perigos da revolução! Bem se dizia na Arcada - era uma bambocha!
A porta do gabinete entreabriu-se, e as lunetas do administrador reluziram.
- Ó Sr. Domingos, faz favor, vem-nos falar? disse sua excelência.
O escrivão apressou-se com importância; e a porta cerrou-se de novo, confidencialmente. Ah! aquela porta, fechada diante dele, deixando-o de fora, indignava o Carlos. Ali ficava, com o Pires, com o Artur, entre as inteligências subalternas, ele que prometera à Amparozinho falar de alto ao administrador! E quem era ouvido, e quem era chamado? O Domingos, um animal notório, que começava satisfação com c cedilhado! Que se podia de resto esperar duma autoridade que passava as manhãs de binóculo a desonrar uma família? Pobre Teles, seu vizinho, seu amigo!... Não, realmente devia falar ao Teles!
Mas a sua indignação cresceu, quando viu o Artur Couceiro, um empregado da repartição, na ausência do seu chefe, erguer-se da sua escrivaninha, vir familiarmente junto do réu, dizer-lhe com melancolia:
- Ah, João, que rapaziada, que rapaziada!... Mas a coisa arranja- se, verás!
João tinha encolhido tristemente os ombros. Havia meia hora que ali estava, sentado à beira daquele banco, sem se mexer, sem despregar os olhos do soalho, sentindo-se interiormente tão vazio de ideias, como se lhe tivessem tirado os miolos. Todo o vinho, que na taberna do Osório e no Largo da Sé lhe acendia na alma fogachos de cólera, lhe retesava os pulsos num desejo de desordem, parecia subitamente eliminado do seu organismo. Sentia-se agora tão inofensivo como quando no cartório aparava cautelosamente a sua pena de pato. Um grande cansaço entorpecia-o; e ali esperava, sobre o banco, numa inércia de todo o seu ser, pensando estupidamente que ia viver para uma enxovia em S. Francisco, dormir numa palhoça, comer da Misericórdia... Não tornaria a passear na alameda, não veria mais Amélia... A casita em que vivia seria alugada a outro... Quem tomaria conta do seu canário? Pobre animalzinho, ia morrer de fome, decerto... A não ser que a Eugênia, a vizinha, o recolhesse...
O Domingos de repente saiu do gabinete de sua excelência, e fechando vivamente a porta sobre si, em triunfo:
- Que lhes dizia eu? Composição! Arranjou-se tudo!
E para João Eduardo:
- Seu felizão! Parabéns! parabéns!
O Carlos pensou que aquele era o maior escândalo administrativo desde o tempo dos Cabrais! E ia retirar-se enojado (como no quadro clássico o Estoico que se afasta duma orgia Patrícia) quando o senhor administrador abriu a porta do seu gabinete. Todos se ergueram.
Sua excelência deu dois passos na repartição, e revestido de gravidade, destilando as palavras, com as lunetas cravadas no réu:
- O Sr, padre Amaro, que é um sacerdote todo caridade e bondade, veio-me expor... Enfim, veio-me suplicar que não desse mais andamento a este negócio... Sua senhoria com razão não quer ver o seu nome arrastado nos tribunais. Além disso, como sua senhoria disse muito bem, a religião, de que ele é... de que ele é, posso dizê-lo, a honra e o modelo, impõe- lhe o perdão da ofensa... Sua excelência reconhece que o ataque foi brutal, mas frustrado... Além disso parece que o senhor estava bêbedo...
Todos os olhos se fixaram em João Eduardo, que se fez escarlate. Aquilo pareceu-lhe nesse momento pior que a prisão.

- Enfim, continuou o administrador, por altas considerações que eu pesei devidamente, tomo a responsabilidade de o soltar. Veja agora como se porta. A autoridade não o perde de olho... Bem, pode ir com Deus!
E sua excelência recolheu-se ao gabinete. João Eduardo ficou imóvel, como parvo.
- Posso ir, hem? balbuciou.
- Para a China, para onde quiser! Liberus, libera, liberum! exclamou o Domingos que, interiormente detestando padres, jubilava com aquele final.
João Eduardo olhou um momento em redor os empregados, o carrancudo Carlos; duas lágrimas bailavam-lhe nas pálpebras; de repente agarrou o chapéu e abalou.
- Poupa-se um rico trabalhinho! resumiu o Domingos, esfregando vivamente as mãos.
Imediatamente a papelada foi arrumada, aqui e além, à pressa. É que era tarde! O Pires recolhia as suas mangas de lustrina e a sua almofadinha de vento. O Artur enrolou os seus papéis de música. E no vão da janela, amuado, esperando ainda, o Carlos olhava sombriamente o largo.
Enfim os dois padres saíram acompanhados até à porta pelo senhor administrador, que, terminados os deveres públicos, reaparecia homem de sociedade. - Então por que não tinha o amigo Silvério vindo a casa da baronesa de Via-Clara? Houvera um voltarete furibundo. O Peixoto levara dois codilhos. Tinha dito blasfêmias medonhas!... Criado de suas excelências. Estimava bem que tudo se tivesse harmonizado. Cuidado com o degrau... Às ordens de suas excelências...
Ao voltar porém ao seu gabinete dignou-se parar diante da mesa do Domingos, e retomando alguma solenidade:
- A coisa passou-se bem. É um bocado irregular, mas sensata! Bem basta já os ataques que há contra o clero nos jornais... A coisa podia fazer barulho. O rapaz era capaz de dizer que tinham sido ciúmes do padre, que queria desinquietar a rapariga, etc. É mais prudente abafar a coisa. Quanto mais que, segundo o pároco me provou, toda a influência que ele tem exercido. na Rua da Misericórdia ou onde diabo é, tem tido por fim livrar a rapariga de casar com aquele amigo, que, como se vê, é um bêbedo e uma fera!
O Carlos roia-se. Todas aquelas explicações eram dadas ao Domingos! A ele, nada! Ali ficava, esquecido no vão da janela!
Mas não! Sua excelência, de dentro do seu gabinete, chamou-o misteriosamente com o dedo.
Enfim! Precipitou-se, radiante, subitamente reconciliado com a autoridade.
- Eu estava para passar pela botica - disse-lhe o administrador baixo e sem transição, dando-lhe um papel dobrado - para que me mandasse isto a casa, hoje. É uma receita do doutor Gouveia... Mas já que o amigo aqui está...
- Eu tinha vindo para me pôr à disposição da vindita...
- Isso está acabado! Interrompeu vivamente sua excelência. Não se esqueça, mande-me isso antes das seis. É para tomar ainda esta noite. Adeus. Não se esqueça!
- Não faltarei, disse secamente o Carlos.
Ao entrar na botica, a sua cólera flamejava. Ou ele não se chamava Carlos, ou havia de mandar uma correspondência tremenda ao Popular!... Mas a Amparo, que lhe espreitara a volta da varanda, correu, atirando-lhe as perguntas:
- Então? Que se passou? O rapaz foi para a rua? Que disse ele? Como foi?
O Carlos fixava-a, com as pupilas chamejantes.
- Não foi culpa minha, mas triunfou o materialismo. Eles o pagarão!
- Mas tu que disseste?
Então, vendo os olhos da Amparo e os do praticante abertos para devorar a citação do seu depoimento - o Carlos, tendo de ressalvar a dignidade de esposo e a superioridade de patrão, disse laconicamente:
- Dei a minha opinião, com firmeza!
- E ele que disse, o administrador?
Foi então que o Carlos, recordando-se, leu a receita que amarrotara na mão. A indignação emudeceu-o - vendo que era aquele todo o resultado da sua grande entrevista com a autoridade!
- Que é? perguntou sofregamente a Amparo.
O que era? e no seu furor, desdenhando o segredo profissional e o bom renome da autoridade, o Carlos exclamou:
- É um frasco de xarope de Gibert para o senhor administrador! Aí tem a receita, Sr. Augusto.
Amparo, que, com alguma prática de farmácia, conhecia os benefícios do mercúrio, fez-se tão escarlate como as fitas flamejantes que lhe enfeitavam a cuia.
···
Toda essa tarde se falou com excitação pela cidade da "tentativa de assassinato de que estivera para ser vitima o senhor pároco". Algumas pessoas censuravam o administrador por não ter procedido: os cavalheiros da oposição sobretudo, que viram na debilidade daquele funcionário uma prova incontestável de que o governo ia, com os seus desperdícios e as suas corrupções, levando o país a um abismo!
Mas o padre Amaro, esse, era admirado como um santo. Que piedade! que mansidão! O senhor chantre mandou-o chamar à noitinha, recebeu-o paternalmente com um "viva o meu cordeiro pascal!". E depois de escutar a história do insulto, a generosa intervenção...
- Filho, exclamou, isso é aliar a mocidade de Telêmaco à prudência de Mentor! Padre Amaro, você era digno de ser sacerdote de Minerva na cidade de Salento!
Quando Amaro entrou à noite em casa da S. Joaneira - foi como a aparição dum santo escapo às feras do Circo ou à plebe de Diocleciano! Amélia, sem disfarçar a sua exaltação, apertou-lhe ambas as mãos, muito tempo, toda trêmula, com os olhos úmidos. Deram-lhe, como nos grandes dias, a poltrona verde do cônego. A Sra. D. Maria da Assunção quis mesmo que se lhe pusesse uma almofada para ele apoiar o ombro dorido. Depois, teve de contar miudamente toda a cena, desde o momento em que, conversando com o colega Silvério (que se portara muito bem), avistara o escrevente no meio do largo, de bengalão alçado e ar de mata-mouros...
Aqueles detalhes indignavam as senhoras. O escrevente aparecia-lhes pior que Longuinhos e que Pilatos. Que malvado! O senhor pároco devia-o ter calcado aos pés! Ah! era dum santo, ter perdoado!
- Fiz o que me inspirou o coração, disse ele baixando os olhos. Lembrei-me das palavras de Nosso Senhor Jesus Cristo: ele manda oferecer a face esquerda depois de ter sido esbofeteado na face direita...
O cônego, a isto, escarrou grosso e observou:
- Eu lhe digo. Eu, se me atirarem um bofetão à face direita... Enfim, são ordens de Nosso Senhor Jesus Cristo, ofereço a face esquerda. São ordens de cima!... Mas depois de ter cumprido esse dever de sacerdotes, oh, senhoras, desanco o patife!
- E doeu-lhe muito, senhor pároco? perguntou do canto uma vozinha expirante e desconhecida.
Acontecimento extraordinário! Era a Sra. D. Ana Gansoso que falara depois de dez longos anos de taciturnidade sonolenta! Aquele torpor que nada sacudira, nem festas, nem lutos, tinha enfim, sob um impulso de simpatia pelo senhor pároco, uma vibração humana! - Todas as senhoras lhe sorriram, agradecidas: e Amaro, lisonjeado, respondeu com bondade:
- Quase nada, Sra. D. Ana, quase nada, minha senhora... Que ele deu de rijo! Mas eu sou de boa carnadura.
- Ai, que monstro! exclamou D. Josefa Dias, furiosa à ideia do punho do escrevente descarregado sobre aquele ombro santo. Que monstro! Eu queria-o ver com uma grilheta a trabalhar na estrada ! Que eu é que o conhecia! A mim nunca ele me enganou... Sempre lhe achei cara de assassino!
- Estava embriagado, homens com vinho... arriscou timidamente a S. Joaneira.
Foi um clamor. Ai, que o não desculpasse! Parecia até sacrilégio! Era uma fera, era uma fera!
E a exultação foi grande quando Artur Couceiro, aparecendo, deu logo da porta a novidade, a última: o Nunes mandara chamar o João Eduardo e dissera-lhe (palavras textuais): "Eu, bandidos e malfeitores não os quero no meu cartório. Rua!"
A S. Joaneira então comoveu-se:
- Pobre rapaz, fica sem ter que comer... ,
- Que beba! que beba! gritou a Sra. D. Maria da Assunção.


Todos riram. Só Amélia, curvada sobre a sua costura, se fizera muito pálida, aterrada àquela ideia que João Eduardo teria talvez fome...
- Pois olhem, não acho caso para rir! disse a S. Joaneira. É até coisa que me vai tirar o sono.., Pensar que o rapaz há de querer um bocado de pão e não o há de ter... Credo! Não, isso não! E o Sr. padre Amaro desculpe...
Mas Amaro também não desejava que o rapaz caísse em miséria! Não era homem de rancor, ele! E se o escrevente viesse à sua porta, com necessidade, duas ou três placas (não era rico, não podia mais), mas três ou quatro placas dava-lhas... Dava-lhas de coração.
Tanta santidade fanatizou as velhas. Que anjo! Olhavam-no, babosas, com as mãos vagamente postas. A sua presença, como a dum S. Vicente de Paula, exalando caridade, dava à sala uma suavidade de capela: e a Sra. D, Maria da Assunção suspirou de gozo devoto.
Mas Natário apareceu, radiante. Deu grandes apertos de mãos em redor, rompeu em triunfo:
- Então já sabem? O patife, o assassino, escorraçado de toda a parte como um cão! O Nunes expulsou-o do cartório. O doutor Godinho disse-me agora que no governo civil não punha ele os pés. Enterrado, demolido! É um alívio para a gente de bem!
- E ao Sr. padre Natário se deve! exclamou D. Josefa Dias.
Todos o reconheciam. Fora ele, com a sua habilidade, a sua lábia, que descobrira a perfídia de João Eduardo, salvara a Ameliazinha, Leiria, a Sociedade.
- E em tudo o que pretender, o maroto, há de encontrar-me pela frente. Enquanto ele estiver em Leiria não o largo! Que lhes disse eu, minha senhoras?.,, "Eu é que o esmago!" Pois aí o têm esmagado!
A sua face biliosa resplandecia. Estirou-se na poltrona, regaladamente, no repouso merecido de uma vitória difíci1. E voltando-se para Amélia;
- E agora, o que lá vai, lá vai! Livrou-se de uma fera, é o que lhe posso dizer!
Então os louvores - que já lhe tinham repetido prolixamente desde que ela rompera com a fera - recomeçaram, mais vivos:
- Foi a coisa de mais virtude que tens feito em toda a tua, vida!
- É a graça de Deus que te tocou!
- Estás em graça, filha!
- Enfim é Santa Amélia, disse o cônego erguendo-se, enfastiado daquelas glorificações. Pois parece-me que temos falado bastante do patife... Mande agora a senhora vir o chá, hem?
Amélia permanecia calada, cosendo à pressa; erguia às vezes rapidamente para Amaro um olhar desassossegado; pensava em João Eduardo, nas ameaças de Natário; e imaginava o escrevente com as faces encovadas de fome, foragido, dormindo pelas portas dos casais... E enquanto as senhoras se acomodavam, palrando, à mesa do chá, ela pôde dizer baixo a Amaro:
- Não posso sossegar com a ideia que o rapaz sofra necessidades... Eu bem sei que é um malvado, mas... É como um espinho cá por dentro. Tira-me toda a alegria.
O padre Amaro disse-lhe então, com muita bondade, mostrando-se superior à injúria, num alto espírito de caridade cristã:
- Minha rica filha, são tolices... O homem não morre de fome. Ninguém morre de fome em Portugal. É novo, tem saúde, não é tolo, há de  se arranjar... Não pense nisso... Aquilo é palavreado do padre Natário... O rapaz naturalmente sai de Leiria, não tomamos a ouvir falar dele... E em toda a parte há de ganhar a vida... Eu por mim perdoei-lhe, e Deus há de tomar isso em conta...
Estas palavras tão generosas, ditas baixo, com um olhar amante, tranquilizaram-na inteiramente. A clemência, a caridade do senhor pároco pareceram-lhe melhores que tudo o que ouvira ou lera de santos e de monges piedosos.
Depois do chá, ao quino, ficou junto dele. Uma alegria plena e suave penetrava-a deliciosamente. Tudo o que até aí a importunara e a assustara, João Eduardo, o casamento, os deveres, desaparecera enfim da sua vida: o rapaz iria para longe, empregar-se - e o senhor pároco ali estava, todo dela, todo apaixonado! Por vezes, por baixo da mesa, os seus joelhos tocavam-se, a tremer; num momento em que todos faziam um alarido indignado contra Artur Couceiro que pela terceira vez quinara e brandia o cartão triunfante, foram as mãos que se encontraram, se acariciaram; um pequeno suspiro simultâneo, perdido na gralhada das velhas, ergueu o peito de ambos; e até ao fim da noite foram marcando os seus cartões, muitos calados, com as faces acesas, sob a pressão brutal do mesmo desejo.
Enquanto as senhoras se agasalhavam, Amélia aproximou-se do piano para correr uma escala, e Amaro pôde murmurar-lhe ao ouvido:
- Oh filhinha, que te quero tanto! E não podermos estar sós...
Ela ia responder - quando a voz de Natário, que se embrulhava no seu capote ao pé do aparador, exclamou, muito severa:
- Então as senhoras deixam andar por aqui semelhante livro?
Todos se voltaram, na surpresa que dava aquela indignação, a olhar o largo volume encadernado que Natário indicava com a ponta do guarda- chuva, como um objeto abominável. D. Maria da Assunção aproximou-se logo de olho reluzente, imaginando que seria alguma dessas novelas, tão famosas, em que se passam coisas imorais. E Amélia chegando-se também, disse, admirada de tal reprovação: .
- Mas é o Panorama... É um volume do Panorama...
- Que é o Panorama vejo eu, disse Natário, com secura. Mas também veio isto. - Abriu o volume na primeira página branca, e leu alto: - "Pertence-me este volume a mim, João Eduardo Barbosa, e serve-me de recreio nos meus ócios". Não compreende, hem? Pois é muito simples... Parece incrível que as senhoras não saibam que esse homem, desde que pôs as mãos num sacerdote, está ipso facto excomungado, e excomunga- dos todos os objetos que lhe pertencem!
Todas as senhoras, instintivamente, afastaram-se do aparador onde jazia aberto o Panorama fatal, arrebanhando-se, num arrepiamento de medo, àquela ideia da Excomunhão que se lhes representava com um desabamento de catástrofes, um aguaceiro de raios despedidos das mãos do Deus Vingador: e ali ficaram mudas, num semicírculo apavorado, em torno de Natário, que, de capotão pelos ombros e braços cruzados, gozava o efeito da sua revelação.
Então a S. Joaneira, no seu assombro, arriscou-se a perguntar:
- O Sr. padre Natário está a falar sério?
Natário indignou-se:
- Se estou a falar sério!? Essa é forte! Pois eu havia de gracejar sobre um caso de excomunhão, minha senhora? Pergunte aí ao senhor cônego se eu estou a gracejar!
Todos os olhos se voltaram para o cônego, essa inesgotável fonte de saber eclesiástico.
Ele então, tomando logo o ar pedagógico que lhe voltava dos seus antigos hábitos do seminário sempre que se tratava de doutrina, declarou que o colega Natário tinha razão. Quem espanca um sacerdote, sabendo que é um sacerdote, está ipso facto excomungado. É doutrina assente. É o que se chama a excomunhão latente; não necessita a declaração do pontífice ou do bispo, nem o cerimonial, para ser válida, e para que todos os fiéis considerem o ofensor como excomungado. Devem-no tratar portanto como tal... Evitá-lo a ele, e ao que lhe pertence... E este caso de pôr mãos sacrílegas num sacerdote era tão especial, continuava o cônego num tom profundo, que a bula do papa Martinho V, limitando os casos de excomunhão tácita, conserva-a todavia para o que maltrata um sacerdote... - Citou ainda mais bulas, as constituições de Inocêncio IX e de Alexandre VII, a Constituição Apostólica, outras legislações temerosas; rosnou latins, aterrou as senhoras.
- Esta é a doutrina, concluiu dizendo; mas a mim parece-me melhor não se fazer disso espalhafato...
D. Josefa Dias acudiu logo:
- Mas nós é que não podemos arriscar a nossa alma a encontrar aqui por cima das mesas coisas excomungadas.
- É destruir! exclamou D. Maria da Assunção. É queimar, é queimar!
D. Joaquina Gansoso arrastara Amélia para o vão da janela, perguntando-lhe se tinha outros objetos pertencentes ao homem. Amélia, atarantada, confessou que tinhas algures, não sabia onde, um lenço, uma luva desirmanada, e uma cigarreira de palhinha.

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