O remédio é este:
Li há dias, anteontem, que a assembléia provincial da Bahia
foi adiada por falta de subsídio. Assim temos que na Bahia há deputados sem
subsídio, e em Sergipe subsídio sem deputados. O remédio é transferir o
subsídio de Sergipe para os deputados da Bahia, e os deputados do referido
Sergipe para quando se anunciar. No atual estado, nem Sergipe nem Bahia têm
leis, por falta de uma ou de outra coisa; mas, com o meio que lembro, uma das
duas províncias ganha a legislatura. Dir-me-ão que Sergipe não ganha nada.
Perdão, e a experiência?
[l0 maio]
AMANHÃ é um grande dia! exclamou o meu amigo, faiscando-lhe
os olhos de contentamento.
Não posso dizer o nome dele; suponhamo-lo Calisto. Amanhã é
um grande dia para ele, porque é o da apresentação do ministério às câmaras,
fato que na vida do meu amigo equivale a um batizado de criança na vida de
todos os pais. Vão entendê-lo em poucas linhas.
Calisto só adora uma coisa, mais do que as crises
ministeriais, é a apresentação dos ministérios novos às câmaras. Moção
anunciada pode contar com ele. E gosta das crises compridas, atrapalhadas,
arrastadas, cheias de esperanças longas e boatos infinitos. Mas tão depressa se
organiza o ministério, como lhe cai a alma aos pés. O que o consola então, e
muito, é a ideia da apresentação; nem mais nem menos o que lhe acontece desde o
dia 4.
Amanhã vai ele muito cedo para a porta da Câmara dos
Deputados, com biscoitos no bolso e paciência no coração. A paciência, com
perdão da palavra, é um biscoito moral, dado pelo céu a muito poucos. Calisto é
dos poucos. É capaz de aguentar um temporal, uma soalheira, uma carga de
cavalaria, sem arredar pé da porta da Câmara, até que lha abram. Abrem-lha, ele
entra, sobe, arranja um bom lugar.
Não atribuam ao Calisto nenhuma preocupação política,
pequena ou grande, nenhum amor ao Dantas ou ao Saraiva, ao projeto de um ou de
outro, nem à grande questão que se debate agoira mesmo em todos os espíritos.
Não, senhor; este Calisto é um distintíssimo curioso, na política e no piano.
Importa-lhe pouco saber de um problema ou da sua solução. Contanto que haja
barulho, dá o resto de graça.
Justamente o dia de amanhã cheira a chamusco, debate grosso,
veemência, chuva de apartes, impropérios, tímpanos, confusão. Pode ser que não
haja nada; mas ele cuida que há, e lambe-se todo de contente só com a idéia de
um pandemônio.
Na imaginação dele, a coisa há de se passar assim. Os
primeiro minutos de ânsia e curiosidade, - votações distraídas, arengas curtas
Pela uma hora da tarde, anuncia-se o ministério, que aparece rompendo a custo a
multidão de curiosos. Grande burburinho, crescente une. Sentam-se os ministros,
explica-se a crise, e o Saraiva tem a palavra para expor o programa. O profundo
silêncio com que ele há de ser ouvido é um dos regalos do Calisto, que ouve
através do silêncio o tumulto das almas.
Depois rompe um deputado. (Qual deputado?) Não sabe qual
seja, mas há de ser um, provavelmente o José Mariano, ou algum com quem se não
conte, e está acesa a guerra - brotam os apartes, agitam-se os ânimos; vem
outro orador, mais outro - cruzam-se os retoques, surgem os punhos cerrados,
bufam as cóleras, retinem os entusiasmos. E o meu Calisto, de cima, olhará para
baixo, e gozará um bom dia, um dia raro, igual àquele 18 de julho de 1868,
quando o Itaboraí penetrou na Câmara liberal, com os conservadores. O Calisto
ainda se lembra que não jantou nesse dia.
Agora, que a questão ainda é mais grave, a sessão há de
render mais, - ou dar sorte, que é a locução do meu amigo. Calisto espera sair
amanhã dali, abarrotado de comoção para seis meses. Jura a quem quer ouvir, que
não tem preferências nem antipatias. Também não quer saber se do debate lhe
sairá alguma restrição pessoal ou pecuniária. Contanto que haja tumulto, está
ganho o dia, e o dia seguinte pertence a Deus.
Ide vê-lo, à saída da Câmara, olhando embasbacado; estará
ainda alegre. Mas no dia seguinte, que o diabo diz que também é dele, vereis o
meu pobre Calisto arrimado a alguma porta ou esquina, à espreita de algum
sucesso que passe, desconsolado como na ópera do nosso Antônio José:
Tão alegres que fomos, Tão tristes que viemos.
[16 maio]
ONTEM, ao voltar uma esquina, dei cem os impostos inconstitucionais
de Pernambuco. Conheceram-me logo; eu é que, ou por falta de vista, ou porque
realmente eles estejam mais gordos, não os conheci imediatamente. Conheci-os
pela voz, vox clamantis in deserto. Disseram-me que tinham chegado no último
paquete. O mais velho acrescentou até que, já agora, hão de repetir com
regularidade estas viagens à corte.
- A gente. por mais inconstitucional que seja, concluiu ele,
não há de morrer de aborrecimento na cela das probabilidades. Uma chegadinha à
corte, de quando em quando, não faz mal a ninguém, exceto . . .
- Exceto . . . ?
- Isso agora é querer perscrutar os nossos pensamentos
íntimos. Exceto o diabo que o carregue, está satisfeito? Não há coisa nenhuma
que não possa fazer mal a alguém, seja quem for. Falei de um modo geral e
abstrato. Você costuma dizer tudo o que pensa?
- Tudo, tudo. não; nem eu, nem o meu vizinho boticário, e
mais é um falador das dúzias.
4 de Out
- Pois então!
- Em todo caso, demoram-se?
- Temos essa intenção. O pior é o calor, mas felizmente começa
a chover, e se a chuva pega, junho aí vem com o inverno, e ficamos
perfeitamente. Está admirado? É para ver que já conhecemos o Rio de Janeiro.
Contamos estar aqui uns três meses, não pode ser que vamos a quatro ou cinco.
Já fomos à Câmara dos Deputados.
- Assistiram à recepção do Saraiva, naturalmente?
- Não, fomos depois, no dia 13, uma sessão dos diabos. Ainda
assim, o pior para nós não foi propriamente a sessão, mas o demônio do José
Mariano, que, apenas nos viu na tribuna dos diplomatas, logo nos denunciou à
Câmara e ao Governo. Não pode calcular o medo com que ficamos. Eu, felizmente,
estava ao pé de duas senhoras que falavam de chapéus, voltei-me para elas, como
quem dizia alguma t coisa, e dissimulei sem afetação; mas os meus pobres irmãos
é que não sabiam onde pôr a cara. Hoje de manhã, queriam voltar para :0
Pernambuco; mas eu disse-lhes que era tolice.
- São todos inconstitucionais?
- Todos.
- Vamos aqui para a calçada. E agora, que tencionam fazer?
- Agora temos de ir ao imperador, mas confesso-lhe, meu
amigo receamos perder o tempo. Você conhece a velha máxima que diz que a
história não se repete?
- Creio que sim.
- Ora bem, é o nosso caso. Receamos que o imperador, não dar
conosco, fique aborrecido de ver as mesmas caras, e, por outro lado, como a
história não se repete. . . Você, se fosse imperador, o que é que faria?
- Eu, se fosse imperador? Isso agora é mais complicado. Eu,
se fosse imperador, a primeira coisa que faria era ser o primeiro céptico do
meu tempo. Quanto ao caso de que se trata, faria uma coisa singular, mas útil:
suprimiria os adjetivos.
- Os adjetivos?
- Vocês não calculam como os adjetivos corrompem tudo, ou
quase tudo; e quando não corrompem, aborrecem a gente, pela repetição que
fazemos da mais ínfima galanteria. Adjetivo que nos agrada está na boca do
mundo.
- Mas que temos nós outros com isso?
- Tudo. Vocês como simples impostos são excelentes,
gorduchos e corados, cheios de vida e futuro. O que os corrompe e faz definhar
é o epíteto de inconstitucionais. Eu, abolindo por um decreto todos; GS
adjetivos do Estado, resolvia de golpe essa velha questão, e cum- pria esta
máxima, que é tudo o que tenho colhido da história e da política, e que aí dou
por dois vinténs a todos os que governam este mundo: Os adjetivos passam, e os
substantivos ficam.
[21 maio]
DEUSA ETERNA das ilusões, Maia, divina Maia, entorna sobre
mim a tua ânfora e conta-me o que se não passará hoje, nem amanhã, nem depois,
nem segunda-feira.
Hoje, reunida a Câmara dos Deputados, elege logo a mesa e a
comissão de resposta à fala do trono. A comissão reúne-se imediatamente, e,
considerando que já no ano passado encerrou-se o parlamento sem responder nada
à coroa; que este ano, durante a sessão; extraordinária, nem se pôde nomear a
comissão; e finalmente que esta lacuna, posto se trate de uma formalidade e não
de um princípio, pode ser interpretada por alguns, não como um descuido, mas
como um sintoma da podridão da própria Câmara, resolve formular o projeto para
ser apresentado amanhã.
Amanhã, sexta-feira, é lido o projeto perante a Câmara, que
aplaude a solicitude da comissão, e pede urgência para o debate. O presidente
dá o projeto para a ordem do dia de sábado.
No sábado, a cidade, estupefata, vê reunir-se a Câmara, que
até aqui cumpria fielmente aquela regra do Pentateuco que todo o israelita traz
de cor, a saber: "no sábado, entrarás na tua tenda, e não sairás
dela". Reúne-se a Câmara para o fim de resgatar pela brevidade a omissão
das duas últimas sessões.
Logo no princípio do debate pede a palavra um deputado cujo
nome me não ocorre, e começa uma dissertação acerca das origens do sistema
representativo e do uso do voto de graças; mas a Câmara brada-lhe energicamente
que passe ao dilúvio.
Não tem diversa sorte outro orador, que deseja saber por que
motivo estão vagas algumas comarcas do Norte e se o carcereiro Reginaldo foi ou
não metido cm processo. Reginaldo? A Câmara levanta os ombros, diz-lhe que não
se trata de questiúnculas locais e o deputado senta-se.
Varridos assim esses últimos elementos de um passado
igualmente maçador e pueril, começa o debate, que não dura mais de três horas,
falando em primeiro lugar o Sr. Andrade Figueira, em nome do Partido
Conservador, e seguindo-se-lhe os Srs. Lourenço de Albuquerque, José Mariano e
o presidente do Conselho. Este faz algumas declarações importantes, diz
redondamente à Câmara que, na questão de saber se o orçamento deve preceder à
reforma servil, ou esta àquele, a opinião do governo é que devem ser tratados
ambos ao mesmo tempo.
Antes das cinco horas estará votado o projeto; o Senado,
para não ficar atrás da Câmara, terá discutido e votado o seu, e as respectivas
mesas oficiarão ao Governo comunicando que as respostas estão prontas. O
imperador marca o dia de segunda-feira, à uma hora da tarde, no paço da cidade.
Cerimonial do costume.
Assim, após longos anos de desvio nesta matéria, e de omissão
nos últimos tempos o parlamento fará da discussão da resposta à fala do trono o
que ela deve ser: uma expressão sumária e substancial dos sentimentos dos
partidos, em vez de um concerto sinfônico, em que todos os tenores e todos os
trombones desejam aparecer.
5 de Out
Maia, divina Maia, deusa eterna das ilusões...
[28 maio]
Rien n'est sacré pour un sapeur! Leio nas folhas públicas,
que a morte de Vítor Hugo tem produzido tanta sensação como os preços baixos da
grande alfaiataria Estrela do Brasil. Rien n'est sacré pour un tailleur!
Eu, em criança, ouvi contar a anedota de uma casa que ardia
na estradas Passa um homem, vê perto da casa uma pobre velhinha chorando, e
pergunta-lhe se a casa era dela. Responde-lhe a velha que sim - Então
permita-me que acenda ali o meu charuto.
Imitemos este homem polido e econômico. Vamos acender os
charutos no castelo de Hugo, enquanto ele arde. Vamos todos, havanas e
quebra-queixos, finos ou grossos, e os mesmos cigarros, e até as pontas de
cigarro. Nune est fumandum. Incêndios duram pouco, e os fósforos são vulgares.
Completemos as estrofes com coletes, façamos de uma ode uma
sobrecasaca. Está chorando, meu amigo? Enxugue os olhos no cós destas calças.
Vinte e dois mil-réis, serve-lhe? Vá lá, vinte e um. E olhe que é por ser para
si. A gramática não é boa, mas o sentimento é sincero. Ce siècle avaSt deux
ans... Pano fino, veja aqui que está mais claro. Gastibelza, I'homme à la
carabine. . . Vai pelos vinte e um? é de graça. Vinte? Vinte é pouco, dê vinte
e quinhentos. Não? Está bom; vá lá... Poète, ta fenêtre était ouverte au
vent...
É claro que isto pode aplicar-se a outras coisas, não só aos
coletes. Em geral inventamos pouco, e a idéia que um emprega fica logo rafada.
Haja vista o Café Papagaio, que lá deu de si o Café Arara e o Café Piriquito, e
dará muitos outros, se Deus quiser, porque primeiro acabará o uso do café no
mundo, do que as nossas belas aves no mato.
Que não venha o bando precatório, é só o que peço, e não
peço pouco, porque, em vindo um, vêm duzentos. Se fosse um só, com outras
festas diferentes, sim, senhor, era comigo; mas não pode ser um só? há de ser
como o Café Papagaio e os carneiros de Panúrgio. Tudo Irá pelo mesmo caminho.
Os carros das idéias, a vara e a bolsa a guarda de honra, tudo como no ritual.
Eu, quando eles aqui andaram, estive quase a organizar um bando, não
precatório, mas precatório. Cometa um trocadilho detestável (vai em grifo para
que não escape a ninguém) mas ao menos salvava a minh'alma, que não sei onde
anda desde esse tempo.
Sei que resta a polca, que não há de querer perder um
petisco tão raro, como a morte de um grande poeta. Há a dificuldade dos
títulos, que, segundo a estética deste gênero de dança, devem ser como os da
última ou penúltima publicada: Seu Filipe, não me embrulhe! Não se pode dizer:
- Seu Vítor, não me embrulhe! A morte, ainda que seja de um grande espírito,
não se compadece com este gênero de capadoçagem .
O modo de combinar as coisas seria dar às polcas
comemorativas um título que, com o pretexto de aludir a escritos do poeta,
trouxesse o pico do escândalo. Freira no serralho, por exemplo é excelente com
esta epígrafe do poeta: De nonne, elle devient sultane. E pontinhos. Ou então
este outro: A filha do papa! Eia, polquistas, não desesperemos da basbacaria humana.
[3 junho]
ANDO TÃO atordoado, que não sei se chegarei ao fim do papel.
Só escorregar, segure-me.
A primeira causa do atordoamento são muitas) é a revelação
que nos fez o Sr. Dr. Prado Pimentel no artigo que escreveu contra o
vice-presidente de Sergipe, por intervir na eleição. S. Ex.a recorda ao Sr.
Faro (é o nome dele) alguns serviços que lhe prestou. Entre estes figura a
nomeação de tenente-coronel da guarda nacional, feita a instancias de S. Ex.a;
cita mais o pedido que o governo não pôde satisfazer, de um título de barão, -
Barão de Japaratuba.
Perdoe-me S. Ex.a. Cuido que esta revelação, desvendando o
segredo profissional, vai lançar a mais cruel desilusão no animo de todos os
agraciados deste país. Eu mesmo, que não tenho nada na casaca, nem no nome,
estou que não posso comigo, pela razão natural de que posso vir a ter alguma
coisa. Em verdade, pelo que se passou na consciência e na imaginação do Sr.
Faro, pode-se calcular o que acontece nas de todos que recebem uma graça.
Na consciência:
- Faro, estás tenente-coronel. Podes crer que não há graça
mais bem merecida. Se há alguma coisa que notar no ato do governo, não demora.
Estás vendo, Faro? é o prêmio da modéstia, do zelo, do humor
aos princípios, e principalmente, é o reconhecimento de que possuis o ar
marcial. Não negues, Faro; tu tens o ar marcial. Vai ali ao espelho. Não és
Napoleão, mas ninguém que te veja pode deixar de exclamar: Ou eu me engano, ou
este homem acaba tenente-coronel. E estas tenente-coronel, Faro. Não duvides;
relê a carta imperial. Olha o chapéu que o Graciliano te mandou da corte. Não
me digas que não tens batalhão que comandar; o teu ar marcial fará crer que
tens um exército. Incessu patuit Dea. Dea ou Faro são sinônimos.
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