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quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Balas de Estalo - Machado de Assis [parte 5]

Nisto aparece um respeitável ancião que declara possuir um segredo para salvar tudo, o Estado e a vida do ministro. Este manda-o embora, abre a janela e contempla a forca.
- Daqui a dez minutos serei cadáver, murmura ele.
-Não! brada uma voz.
Era uma fada, a fada Argentina,-que, enamorada da beleza do ministro. vem oferecer-lhe um talismã, ensinando-lhe que, sempre que bater com ele no ombro de Triptolemo, as algibeiras deste regurgitarão de ouro. O ministro recusa crer; mas a fada pede-lhe que vá verificá-lo e desaparece.
Nove horas e onze minutos. Entra Triptolemo: fora ouvem-se os berros dos credores, o paço está prestes a ser assaltado. Então o ministro pede licença a Triptolemo. bate-lhe no ombro, e as algibeiras régias começam a entornar moedas de ouro. Estupefação do rei e do ministro. Outro toque, outra emissão, e as moedas correm, descem, amontoam-se. São ducados, libras, florins, liras, duros, rublos, thalers é tudo, são milhões, vinte milhões, duzentos milhões, quinhentos milhões. Triptolemo paga aos credores juros e capital, casa a filha e o talismã é guardado nas arcas do Estado como um recurso para os lances difíceis.
No fim, aparece outra vez o ancião respeitável e confessa em público e raso que o seu meio, posto que eficaz, era muito mais lento.

- Consistia, concluiu ele, na aplicação desta regra de Franklin: "Se te disserem que podes enriquecer por outro modo, que não seja o trabalho e a economia, não acredites". Eu aplicava a regra ao pagamento das dívidas, que é um modo de enriquecer. Paga o que deves, vê o que te fica. Mas, reconheço que era levar muito tempo, e...
Já se compreende que a circular me lembrasse o drama. O único ponto obscuro para mim é se o remédio da circular é o talismã ou a regra de Franklin.

1885

[26 janeiro]
HÁ PESSOAS que não sabem, ou não se lembram de raspar a casca do riso para ver o que há dentro. Daí a acusação que me fazia ultimamente um amigo, a propósito de alguns destes artigos, em que a frase sai assim um pouco mais alegre. Você ri de tudo, dizia-me ele. E eu respondi que sim, que ria de tudo, como o famoso barbeiro da comédia, de peur d'être obligé d'en pleurer. Mas tão depressa lhe dei essa resposta como recebi das mãos do destino um acontecimento deplorável, que me obriga a ser sério? na casca e no miolo.
Nem há outro modo de apreciar o ato praticado pela polícia, ontem? pouco antes das dez horas da manhã, nas duas casas em que estão expostos alguns ossos de defunto.
Apareceu em ambas um agente policial, acompanhado de dois urbanos, e polidamente pediu aos donos que retirassem os ossos da vitrina Responderam-lhe naturalmente que não podiam fazê-lo, desde que ali foram levados por outras pessoas, mas que iam entender-se com elas. O agente, porém, que levava o plano feito, declarou que não trazia ordem de esperar e insistiu em que os ossos fossem retirados imediatamente.
Antes de obedecer? perguntaram-lhe. em ambas as casas, se havia lei que proibisse a exposição dos ossos de gente morta. Na primeira, apanhado de supetão, deu uma resposta que Lhe servia também para a outra, disse que, efetivamente, não havia lei especial, mas que a lei era feita para as hipóteses possíveis, não para absurdos. Reconhecia as intenções puras de todos e não entrava nem podia entrar na controvérsia dos números; mas, como agente da autoridade, não podia consentir em tal profanação.
Em uma das casas, um rapazinho, freguês adventício, como tinha algumas lambujens da química dos ossos, lembrou-se de dizer que não havia tal profanação: tratava-se de um punhado disto e daquilo. Mas para a polícia não há química? não há nada. Resolvida a ir adiante, pediu segunda vez a retirada dos ossos. Em ambas as casas, ainda lhe disseram que, aparentando respeitar os mortos, a polícia diminuía-os, desde que punha os respectivos ossos abaixo de um estandarte de carnaval: pode expor-se um emblema de folia, uma vitela de duas cabeças, um ananás monstro, e não se há de expor dois ou três úmeros, quatro que sejam?
Mas estava escrito. A polícia trazia o plano de, sem lei nem nada exceto uma razão de conveniência e decoro, fazer retirar dali os ossos, e conseguiu-o. Meteu-os em duas urnas, trazidas pelos urbanos e remeteu-os para a Faculdade de Medicina. Em tudo isso, não há duvida que se portou com muito tacto e polidez; mas nem por isso os homens sérios deixaram de ficar acabrunhados, ao ver essa limitação da liberdade.
Eu, além desta razão última, fiquei aborrecido, porque tinha mandado dizer a umas primas de Itaboraí que viessem ver os ossos do Malta e os do outro que pelo nome não perca: elas chegam amanhã e não acham nada; e, pobres como são, terão de fazer maior despesa o que contavam. Costumam, efetivamente, todos os anos, vir à corte pelo carnaval, mas desta vez adiantaram a viagem para ver as duas coisas os úmeros e os máscaras-e só lhe ficaram os máscaras. Não é pouco, mas não é tudo
Enfim, está acabado. Concluo dizendo à autoridade que é um erro abusar do poder; as liberdades vingam-se, e a liberdade de expor não e a menos vivaz e rancorosa. Hoje tiram-nos o direito de expor um par de canelas; amanhã arrancam-nos o de expor as nossas queixas.
25 de Set
Não vejam nisso um trocadilho: premissa traz consequência. Liberdade morta, liberdade moribunda.

[30 janeiro]
SABE O LEITOR o que Lhe trago aqui? Uma pérola. Não acredita Já esperava por isso; mas a minha vingança é que você tão depressa lhe puser o olho, põe-lhe a mão, e manda engastá-la em um botão de camisa, se não for casado, porque ela e tamanha, que está pedindo um colo de senhora.
Pesquei-a agora mesmo na costa da Câmara Municipal. Gosto daqueles mares, às vezes tempestuosos, às vezes banzeiros, mas sempre fecundos. Dizem que há um plano de fazer desaguar ali os rios Maranhão e Caiapó, contra todas as induções de geografia, e a despeito das leis da hidráulica. Contanto que me não tirem as pérolas.
Vamos a que acabo de colher. Todos os anos, em se aproximando o entrudo, a Câmara manda correr um edital que o proíbe, citando a postura e apontando as penas. Até aqui a ostra; agora a pérola. Este ano a Câmara fez saber duas coisas: primeiro, que a postura está em seu inteiro vigor; segundo, que deve ser cumprida literalmente. Sim meu senhor, literalmente: deve ser cumprida literalmente.
Je suis déjà charmé de ce petit morceau
Isto em trocos miúdos, quer dizer: Meus filhos, olhem que agora é serio. Estou cansada de publicar editais que nem mesmo os ingleses veem. ao, não pode ser. Canso-me em dizer que atirar água é um delito, encrespo as sobrancelhas, pego na vara de marmeleiro, e é o mesmo que se caísse um carro. Nada, agora é sério. Hão de cumprir I literalmente a postura, ou vai tudo raso.
Entretanto, a coisa é menos fácil do que parece. A postura impõe multa aos que jogam entrudo, e, não podendo o infrator pagar a ' multa, sofrerá "dois a oito dias de prisão"; sendo escravo, porem, i sofrerá "dois a oito dias de cadeia". Como encaminhar literalmente esses dois infratores, um para a prisão, outro para a cadeia. Se não fosse a condição da literalidade, eu, no caso dos urbanos, mandava-os ' ambos para o xilindró, que é um meio-termo; mas devendo ser literal, não saberia que fazer.
Um grande romano recomendava, para os casos de dúvida, abstenção Há de ser provavelmente a prática dos urbanos. Não sabendo distinguir entre as duas penas, mandarão os infratores para suas casas.
Mas também pode ser que eles prefiram as máximas cristas aos preceitos pagãos, e, em tal caso, lembrados de que a letra mata e o espírito vivifica, traduzirão o literalmente do edital por esta frase: trabalho o refle. Se a letra mata, não há nada mais literal que o refle.
Mas o que o leitor não suspeita é que não Lhe dou esta pérola, e assim castigo a incredulidade com que me recebeu. Vou restituí-la a matrona municipal. Ela a porá ao colo, nos três dias de entrudo, pare assistir ao baile dos limões de cheiro, que promete ser esplêndido, tão esplêndido que ela acabará por dançar com os outros.
Se assim acontecer, que fará a Câmara nos anos seguintes. Terá de recorrer a outros advérbios, ferrenhamente, implacavelmente! terrivelmente, e sempre inutilmente, porque nestas coisas, amiga minha, -ou se trata de um recreio popular, e é preciso fazer como aquele chefe de polícia, que o trocou por outro;-ou se trata de eleições, e então, antes de dar um advérbio à execução das leis, é melhor dar-nos o sentimento da legalidade, que está muito por baixo.
E depois, pode ser que o povo imagine que o direito de fazer entrudo, como o de expor ossos de defunto nas vitrinas. e constitucional. Se assim for, creia a Câmara que ele há de defendê-lo, a todo custo, considerando que, se hoje lhe tirasse o de jogar água, amanhã pode tirar-lhe o de profanar ossos nas vitrinas da Rua do Ouvidor. Premissa traz conseqüência; liberdade morta, liberdade moribunda. Ou mais derramadamente: as liberdades dependem tanto umas as outras, que o dia da morte de uma é a véspera da morte de outra. a lá em vinte palavras o que estava em duas.

[17 fevereiro]
NÃO ACABO de entender por que motivo as folhas de hoje, unanimemente noticiam que o entrudo este ano foi menor que nos anteriores, quando a verdade é que não houve entrudo nenhum, nem muito, nem pouco. Não se chamará entrudo ao único limão que se atirou na cidade, e foi obra de um homem que chegou na véspera e não tinha lido as ordens proibitivas da polícia e da Câmara Municipal. Assim o disse ele ao subdelegado, pagando a multa em dobro, e declarando (por um nobre sentimento de filantropia) que o excesso da multa legal fosse aplicado ao fundo de emancipação O subdelegado apertou-lhe as mãos com efusão e dignidade. Eu teria feito a mesma coisa.
E essa foi a contravenção única, aqui vai agora um admirável exemplo da estrita obediência às ordens policiais .
Sabe-se que nestes três dias, das quatro horas da tarde em diante, não passa carro sem pessoa mascarada, nas ruas da Quitanda, Ourives, Gonçalves Dias e Uruguaiana, na parte compreendida entre as do Rosário e Sete de Setembro. Mora na primeira daquelas ruas um compadre meu, negociante de massames e aparelhos náuticos (Ship-Chandler), com armazém na Rua da Saúde. Em outubro último, foi acometido de uma frouxidão de nervos, que o não permite andar a pé. Comprou um carro, em que sai de casa para o armazém, às oito horas da manhã, e que o traz do armazém para casa _ às 5 da tarde.
26 de Set
Diante da ordem policial, achou-se o meu compadre um tanto perplexo, por lhe parecer que as qualidades e disposições do carro não ficavam alteradas pelo fato de trazer a pessoa que vai dentro um pedaço de papelão na cara ou no bolso. Releu a ordem a ver se ficavam executados os moradores daquelas ruas, mas não achou nada. Nesse conflito entre o dever e as circunstâncias, não quis recorrer à minha casa, onde ele sabe que terá sempre cama e um lugar à mesa. Não senhor; mandou comprar uma máscara. Às cinco horas sai da Rua da Saúde sem máscara; chega à esquina da Rua do Rosário, manda parar o carro, põe a máscara, o carro continua a andar, e chega à porta da casa sem inconveniente.
Chamem-me o que quiserem; declaro que acho isto bonito procedimento. Com pequena despesa (pois não há necessidade de máscara rica para andar algumas braças de rua), submete-se um homem à regra comum, sem grave alteração dos hábitos. Note-se que a máscara, apesar de barata, não é feia. Quem quiser vê-la ainda hoje vá postar-se na Rua da Quitanda, esquina da do Rosário. Às cinco horas e dez ou cinco minutos, verá parar um carro, e observará o resto. Nestes dois dias tem sido o recreio da vizinhança.

[8 março]
Há UM FALAR e dois entenderes, costume dizer o povo, e não diz tudo, porque a verdade é que há um fa1ar e dois, cinco ou mais entenderes, segundo os casos. Contemplamos, por exemplo, a companhia de Carris Urbanos.
A última assembleia geral dos acionistas desta companhia adotou duas propostas: uma para construir o capital por meio de medidas que se vão descobrir e estudar, e outra para distribuir provisoriamente os dividendos de trimestre em trimestre. Na vida comum, estas duas propostas pareceriam excluir-se. Eu, quando tenho que reconstruir a algibeira, não dou aos amigos mais que um aperto de mão. Nenhum me pilha charuto. Nas associações o caso é diferente.
Em primeiro lugar o dividendo trimestral é o mesmo que o semestral ou anual; dá-se em quatro partes em vez de se dar em duas. Só aumenta a escrituração e o trabalho.
Em segundo lugar, o sistema que consistisse em pegar dos dividendos e reconstruir com ele o capital, suspendendo a entrega aos acionistas por algum tempo, seria ridiculamente empírico e singularmente odioso, além de valer tanto como uma pinga d'água. Empírico, porque é assim que fazem os autores de quadrinhas, modinhas e outras obrinhas miudinhas: estando cansados de compor, vão primeiro refazer o intelecto, por quê? Eis que eles não sabem. Odioso, porque quando o acionista estava em casa, rumindo a morte da bezerra, as pessoas que o foram buscar, não lhe disseram que os capitais são sujeitos a emagrecer no verão; ao contrário, em geral os capitais, mormente os capitais em preparo, são de uma gordura que faz pena. 0 mesmo digo à companhia de S. Cristóvão, que anda discutindo na imprensa que hão de ser os seus diretores: e discutindo a soco, a pontapé, a bolacha, quando a coisa para mim está resolvida por si mesma: é a do personagem de Moliere.
Le véritable Amphytrion
c'est l Amphytrion où l'on dîne
Tudo isto é claro e claríssimo, para quem se dar o trabalho de ver se as coisas correspondem todas ao nome que tem. As questões devem ser examinadas. As ideias devem começar por ser entendidas. Não sou eu que o digo: di-lo um dos ornamentos do nosso clero, Monsenhor Calino, que ainda ontem me fazia esta reflexão:
- Você repare que cada coisa tem o seu nome; mas o mesmo nome pode não, corresponder a coisas ou pessoas semelhantes. Quiosque, por exemplo. Lá fora o quiosque é ocupado por uma mulher que vende jornais. Cá dentro é o lugar onde um cavalheiro vende coisas diversas, lei de aclimação.

[8 março]
A ARTE DE DIZER as coisas sem parecer dizê-las é tão preciosa e rara, que não resisto ao desejo de recomendar dois modelos recentes.
Um deles é até um decreto. Com o especioso pretexto de reformar o regulamento de 12 de maio de 1883, o Sr. Conselheiro De Lamare expediu uma verdadeira advertência à oposição da Câmara, para o caso de que esta queira dar batalha ao ministério. Não recusa a batalha (abalroação, na terminologia do documento), mas não quer ser apanhado de surpresa. Daí as multiplicadas recomendações aos barcos de boca aberta, ou embarcações de pescaria, tanto os que pescam de rede, como os de linha ou de arrastão, para que tragam luzes de duas ou mais cores, a fim de serem vistos de todos os pontos do horizonte. Horizonte é um sinônimo.
O segundo modelo desta arte de escrever é o programa da Associação Instrutiva e Beneficente.
Esta associação, que vai inaugurar os seus trabalhos no dia 25 do corrente, dá médico e botica aos sócios, cem mil-réis para o enterro e quinhentos mil-réis como legado aos substitutos instituídos pelo sócio morto. Conta seis médicos, quatro alopatas e dois homeopatas, e duas farmácias. Um dos farmacêuticos é membro do conselho. Quanto às obrigações, são, por enquanto, a entrada mensal de 4$180; em breve, porém, só se admitirão sócios que entrem com 100$000 de joia.
On ne parle ici que de ma mort-exclama certo personagem de comédia. Não se pode dizer outra coisa deste prospecto, em que a gente sai do médico para a botica, e da botica para o médico. E a parte instrutiva? A parte instrutiva cá está:
A associação, por sua administração, tendo tido imensos pedidos para que quanto antes dê começo aos seus trabalhos, mas sendo o seu intuito nunca prejudicar os associados, resolveu, por ora, suspender o benefício da instrução primária, contido em estatutos, para pô-lo em vigor em época mais favorável; bem como que irá contratando outros farmacêuticos...


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