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quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Balas de Estalo - Machado de Assis [parte 1]

1883

[2 julho]
SABE-SE que a Sociedade Portuguesa de Beneficência acaba de abrir uma enfermaria à medicina dosimétrica. Este é o nome, creio eu; e não há por onde trocar os nomes às coisas, que já os trazem de nascença.
Mas não basta abrir enfermarias; é útil explicá-las. Se a dosimetria quer dizer que os remédios dados em doses exatas e puras curam melhor ou mais radicalmente, ou mais depressa, é, na verdade, grande crueza privar os restantes enfermos de tão excelso benefício. Uns ficarão meio curados, ou mal curados, outros sairão dali lestos e pimpões; e isto não parece justo.
Note-se bem que eu não ignoro que os doentes, por estarem doentes, não perdem o direito à liberdade; mas, entendamo-nos: é a liberdade do voto, a liberdade de consciência, a liberdade de testar, a liberdade do ventre (teoria Lulu Sênior); por um sentimento de compaixão, a liberdade de descompor. Mas, no que toca aos medicamentos, não! Concedo que o doente possa escolher entre a alopatia e a homeopatia, porque são dois sistemas, - ou duas escolas, - a escola cadavérica (versão Maximiano) e a escola aquática. Mas não tratando a dosimetria senão da perfeita composição dos remédios, não há, para o doente, a liberdade de medicar-se mal. Ao contrário, este era o caso de aplicar o velho grito muçulmano: - crê ou morre.
Se, ao menos, a própria dosimetria permitisse o uso de ambos os modos, as doses bem medidas, e as doses mal medidas, tinha a enfermaria uma explicação. E não seria absurdo. Conheci um médico, que dava alopatia aos adultos, e homeopatia às crianças, e explicava esta aparente contradição com uma resposta épica de ingenuidade: - para que hei de martirizar uma pobre criança? A própria homeopatia, quando estreou no Brasil, teve seus ecléticos; entre eles, o Dr. R. Torres e o Dr. Tloesquelec, segundo afirmou em tempo (há quarenta anos) o Dr. João V. Martins, que era dos puros. Os ecléticos tratavam os doentes, "como a eles aprouvesse". É o que imprimia então o chefe dos propagandistas.

Mas a dosimetria é contrária a esses tristes recursos. Parece mesmo que esta nova religião ainda não passou do vers. 18, cap. IV, de São Mateus, que é o lugar em que Jesus chama os primeiros apóstolos, Pedro e André: "Vinde após mim, e farei que sejais pescadores de homens". Não há ainda tempo de ter hereges nem cismáticos: está nas primeiras pescas de doentes.
O único ponto em que a escola dosimétrica se parece com a homeopática é na facilidade que dá ao doente de tratar-se a si mesmo; mas isto não quer dizer que tenha de cair no mesmo abuso do ecletismo. Quer dizer que a ciência, como todas as moedas, tem seus trocos miúdos. Dois amigos meus andam munidos de caixas dosimétricas; ingerem isto ou aquilo, conforme um papelinho impresso, que trazem consigo. Levam a saúde nas algibeiras, chegam mesmo a distribuí-la aos amigos.
Lá que isto seja novo, é o que nego redondamente. O autor destas vulgarizações parece ser um certo Asclepíades, contemporâneo de Pompeu. Esse cavalheiro era mestre de eloquência, mas sentindo em si outros talentos, estudou a medicina, criou uma arte nova, e anunciou cinco modos de cura aplicáveis a todas as enfermidades. Estão ouvindo? Cinco, nem mais uma pílula para remédio. Essas drogas eram: dieta, abstinência de vinho, fricções, exercício a pé e passeios de liteira. Cada um sentia que podia medicar-se a si próprio, escreve Plínio, - e o entusiasmo foi geral. Tal qual a homeopatia e a dosimetria. Nem uma nem outra tocou ao sublime daquele Asclepíades, que, segundo o mesmo autor, encontrando o saimento de um desconhecido, fez com que o inculcado morto não fosse deitado à fogueira levou-o consigo e curou-o; mas, em suma, aguardemos o primeiro freguês que a escola cadavérica remeter para a Jurujuba.
Voltando ao ponto, espero que a direção da Beneficência atenda aos meus conselhos. Não negue a cem doentes o que tão liberalmente distribui a sete ou quinze. Que o semelhante cure ao semelhante, ou o contrário ao contrário, são afirmações que se excluem; mas, contrário ou semelhante, é de rigor que as doses sejam as mesmas.

[4 julho]
OCORREU-ME compor umas certas regras para uso dos que freqüentam bonds. O desenvolvimento que tem sido entre nós esse meio de locomoção, essencialmente democrático, exige que ele não seja deixado ao puro capricho dos passageiros. Não posso dar aqui mais do que alguns extratos do meu trabalho; basta saber que tem nada menos de setenta artigos. Vão apenas dez.
ART. I - Dos encatarroados
Os encatarroados podem entrar nos bonds com a condição de não tossirem mais de três vezes dentro de uma hora, e no caso de pigarro, quatro.
Quando a tosse for tão teimosa, que não permita esta limitação, os encatarroados têm dois alvitres: - ou irem a pé, que é bom exercício, ou meterem-se na cama. Também podem ir tossir para o diabo que os carregue.
13 de Set
Os encatarroados que estiverem nas extremidades dos bancos, devem escarrar para o lado da rua, em vez de o fazerem no próprio bond, salvo caso de aposta, preceito religioso ou maçônico, vocação, etc., etc.
ART .II - Da posição das pernas
As pernas devem trazer-se de modo que não constranjam os passageiros do mesmo banco. Não se proíbem formalmente as pernas abertas, mas com a condição de pagar os outros lugares, e fazê-los ocupar por meninas pobres ou viúvas desvalidas, mediante uma pequena gratificação.
ART. III - Da leitura dos jornais
Cada vez que um passageiro abrir a folha que estiver lendo, terá o cuidado de não roçar as ventas dos vizinhos, nem levar-lhes os chapéus. Também não é bonito encostá-los no passageiro da frente.
ART. IV - Dos quebra-queixos
É permitido o uso dos quebra-queixos em duas circunstâncias: - a primeira quando não for ninguém no bond, e a segunda ao descer.
ART. V - Dos amoladores
Toda a pessoa que sentir necessidade de contar os seus negócios íntimos, sem interesse para ninguém, deve primeiro indagar do passageiro escolhido para uma tal confidência, se ele é assaz cristão e resignado. No caso afirmativo, perguntar-se-lhe-á se prefere a narração ou uma descarga de pontapés. Sendo provável que ele prefira os pontapés, a pessoa deve imediatamente pespegá-los. No caso aliás extraordinário e quase absurdo, de que o passageiro prefira a narração, o proponente deve fazê-lo minuciosamente, carregando muito nas circunstancias mais triviais, repetindo os ditos, pisando e repisando as coisas, de modo que o paciente jure aos seus deuses não cair em outra.
ART. VI - Dos perdigotos
Reserva-se o banco da frente para a emissão dos perdigotos, salvo nas ocasiões em que a chuva obriga a mudar a posição do banco. Também podem emitir-se na plataforma de trás, indo o passageiro ao pé do condutor, e a cara para a rua.
ART. VII - Das conversas
Quando duas pessoas, sentadas a distância, quiserem dizer alguma coisa em voz alta, terão cuidado de não gastar mais de quinze ou vinte palavras, e, em todo caso, sem alusões maliciosas, principalmente se houver senhoras.
ART. VIII - Das pessoas com morrinha
As pessoas que tiverem morrinha, podem participar dos bonds indiretamente: ficando na calçada, e vendo-os passar de um lado para outro. Será melhor que morem em rua por onde eles passem, porque então podem vê-los mesmo da janela.
ART. IX - Da passagem às senhoras
Quando alguma senhora entrar o passageiro da ponta deve levantar-se e dar passagem, não só porque é incômodo para ele ficar sentado, apertando as pernas, como porque é uma grande má-criação.
ART.X - Do pagamento
Quando o passageiro estiver ao pé de um conhecido, e, ao vir o condutor receber as passagens, notar que o conhecido procura o dinheiro com certa vagareza ou dificuldade, deve imediatamente pagar por ele: é evidente que, se ele quisesse pagar, teria tirado o dinheiro mais depressa.

[2julho]
O SR. DEPUTADO Penido censurou a Câmara por lhe ter rejeitado duas emendas: - uma que mandava fazer desconto aos deputados que não comparecessem às sessões; outra que reduzia a importância do subsídio.
Respeito as cãs do distinto mineiro, mas permita-me que lhe diga: a censura recai sobre S. Ex.ª não só uma, como duas censuras.
A primeira emenda é descabida.S. Ex.ª naturalmente ouviu dizer que aos deputados franceses são descontados os dias em que não comparecem; e, precipitadamente, pelo vezo de tudo copiarmos do estrangeiro, quis logo introduzir no regimento da nossa Câmara esta cláusula exótica. Não advertiu S. Ex.ª, que esse desconto é lógico e possível num país, onde os jantares para cinco pessoas contam cinco croquetes, cinco figos e cinco fatias de queijo. A França com todas as suas magnificências, é um país sórdido. A economia ali é mais do que sentimento ou um costume, mais que um vício, é uma espécie de pé torto, que as crianças trazem do útero de suas mães.
A livre, jovem e rica América não deve empregar tais processos, que estariam em desacordo com um certo sentimento estético e político Cá, quando há alguém para jantar, mata-se um porco; e se há intimidade, as pessoas da vizinhança, que não comparecerem, recebem no dia seguinte um pedaço de lombo, uma costeleta, etc. Ora, isso que se faz no dia seguinte, nas casas particulares, sem censura nem emenda, porque é que merecerá emenda e censura na Câmara onde aliás o lombo e as costeletas são remetidos só no fim do mês? Nem remetidos são: os próprios obsequiados é que hão de ir buscá-los.
Demais, subsídio não é vencimento no sentido ordinário: pro labore. É um modo de suprir às necessidades do representante, para que ele, durante o tempo em que trata dos negócios públicos, tenha a subsistência afiançada. O fato de não ir à Câmara não quer dizer que não trata dos negócios públicos; em casa pode fazer longos trabalhos e investigações. Será por andar algumas vezes na Rua do Ouvidor, ou algures? Mas quem ignora que o pensamento, obra secreta do cérebro, pode estar em ação em qualquer que seja o lugar do homem? A mais bela freguesa dos nossos armarinhos não pode impedir que eu, olhando para ela, resolva um problema de matemáticas. Arquimedes fez uma descoberta estando no banho.
Mas, concedamos tudo; concedamos que a mais bela freguesa dos nossos armarinhos me leva os olhos, as pernas e o coração. Ainda assim estou cumprindo os deveres do cargo. Em primeiro lugar, jurei manter as instituições do país, e o armarinho, por ser a mais recente, não é a menos sólida das nossas instituições. Em segundo lugar, defendo a bolsa do contribuinte, pois, enquanto a acompanho com os olhos, as pernas e o coração, impeço que o contribuinte o faça,é claro que este não o pode fazer, sem emprego de veículo, luvas, gravatas, molhaduras, cheiros, etc.
* * *
Não é menos curiosa a segunda emenda do Sr. Penido: a redução do subsídio.
Ninguém ignora que a Câmara só pode tratar dessa matéria no último ano de legislatura. Daí a rejeição da emenda. O Sr. Penido não nega a inconstitucionalidade desta, mas argumenta de um modo singularíssimo. O aumento de subsídio fez-se inconstitucionalmente; logo, a redução pode ser feita pela mesma forma inconstitucional.
Perdoe-me S. Ex.ª, este seu raciocínio não é sério; lembra o aforismo popular - mordedura de cão cura-se com o pêlo do mesmo cão.
O ato da Câmara, aumentando o subsídio, foi inconstitucional? Suponhamos que sim. Por isso mesmo que o foi, a Câmara obrigou-se a não repeti-lo, imitando assim de um modo moderno a palavra daquele general romano, que bradava aos soldados ao iniciar uma empresa difícil: - é preciso ir até ali, não é necessário voltar!

[15 agosto]
NOTA-SE há algum tempo certa tristeza nos generais da armada. Há em todos uma invencível melancolia, um abatimento misterioso. A expressão jovial do Sr. Silveira da Mota acabou. O Sr. De Lamare, conquanto tivesse sempre os mesmos modos pacatos, mostra na fisionomia alguma coisa nova e diferente, uma espécie de aflição concentrada. Não falo do Sr. Barão da Passagem, nem do Sr. Lomba; todos sabem que esses jazem no leito da dor com a mais impenetrável das moléstias humanas.
Não atinando com a causa do fenômeno, os médicos resolveram fazer uma conferência, e todos foram de opinião que a moléstia tinha uma origem puramente moral. Os generais sentem necessidade de alguma coisa. Não pode ser aumento dos vencimentos; eles contentam-se com o soldo. Nem honras, eles as têm bastantes, e não querem mais. Nisto interveio o Sr. Meira de Vasconcelos. S. Ex.ª conversou com os enfermos, e descobriu que eles padeciam de uma necessidade de denominação nova. Fácil era o remédio; eis a receita que S. Ex.ª lavrou ontem, no Senado, em forma de aditivo ao orçamento da Marinha:
Os postos de generais do corpo da Armada passarão a ter as seguintes denominações, sem alteração dos vencimentos nem das honras militares: - Almirante (passa a ser) almirante da armada; vice-almirante (idem) almirante; chefe da esquadra (idem) vice-almirante; chefe de divisão (idem) contra-almirante.
Não é de supor que o Senado rejeite uma coisa tão simples; podemos felicitar desde já os ilustres enfermos.
Não terá escapado ao leitor, que, por este artigo passamos a ter quatro categorias de almirantes, em vez de duas; e ninguém imagina corno isto faz crescer os pepinos. Outra coisa também não terá escapado ao leitor, é o dom prolífico deste aditivo, porquanto ele ainda pode dar de si ,quando a moléstia atacar os outros oficiais, uma boa dúzia de almirantes: - um quase-almirante, um almirante-adjunto, um almirante suplente, etc., até chegar ao atual aspirante de marinha, que será aspirante a almirante.
Não há que dizer nada contra a medicação. A Câmara Municipal aplica-a todos os dias às ruas. Quando alguma destas padece de falta de iluminação ou sobra de atoleiros, a Câmara muda-lhe o nome. Rua de D. Zeferina, Rua de D. Amália, Rua do Comendador Alves, Rua do Brigadeiro José Anastácio da Cunha Souto; c'est pas plus malin que çà. Foi assim que duas velhas ruas, a da Carioca e a do Rio Comprido, cansadas de trazer um nome que as prendia demasiadamente à história da cidade, pelo que padeciam de enxaquecas, foram crismadas pela ilustre corporação: - uma passou a chamar-se São Francisco de Assis, outra Malvino Reis.
*
Creio que o leitor sabe de um banquete que as sumidades inglesas deram agora ao célebre ator Irving. O presidente da festa foi o lord chief justice. Levantando o brinde à rainha, disse, entre outras, estas palavras:
Usarei de uma metáfora apropriada à ocasião; direi que Sua Majestade, durante muitos anos, tem desempenhado um grande papel no tablado dos negócios humanos, representando com graça, com dignidade, com honra e com uma nobre simpleza (Apoiados). Os seus súbditos sabem como ela amava o drama na mocidade... Agora, nos últimos tempos, sob a influência de uma grande tristeza, tem se retirado do teatro público.
Ah! Se o Sr. Lafayette caísse em usar cá uma tal metáfora! Se Sganarello lhe deu tantas amarguras, que diríamos desta comparação da rainha com uma atriz, e do governo com um tablado? Não sei se já disse que o discurso foi do lord chief justice.
Já o fato de ir este homem jantar com um ator é extraordinário; mas o que dirá o leitor de um bilhete com que Gladstone, que atualmente governa a Inglaterra, pede desculpa a Irving de não poder comparecer, acrescentando que há dois anos para cá, só tem ido aos jantares de lord mayor, que são jantares de rigor? E a ênfase com que o bispo de York escreve, dizendo que os que se interessam pela moralidade pública, devem simpatizar com as honras feitas a Irving, que tão nobremente tem levantado a arte dramática na Inglaterra?
Não quero citar mais nada; bastam-se estas palavras do lindo brinde do lord chief justice ao artista festejado:
Em conclusão: assim como a América nos mandou Booth, assim mandamos Irving à América, e assim como Irving e a Inglaterra receberam Booth de braços abertos, assim também, estou certo, aquele grande e generoso país receberá o nosso primeiro e admirável ator.


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