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quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 36]

- Mas se não ignora Deus, porque lhes não fala d'Ele? - inquiriu o Selvagem, indignado. - Porque lhes
não dá esses livros acerca de Deus?
- Por uma razão semelhante à que nos leva a não lhes dar
Othello: são velhos, tratam de Deus tal como era há centenas de anos, não de Deus tal como é
presentemente.
- Mas Deus não muda.
- Mas mudam os homens.
- E que diferença faz isso?
Um mundo inteiro de diferença - disse Mustafá Mond. Voltou a levantar-se para ir ao cofre-forte. -
Houve um homem, que se chamou cardeal Newman(1). Um cardeal - exclamou como num parêntesis -
era uma espécie de arquichantre.
(1) Newman (john Henry), cardeal e teólogo inglês, nascido em Londres. Criador de uma nova
apologética e autor de Apologia pro Vita Sua (1801-1890).
- Eu, Pandolfo, da bela Milão cardeal. - Li coisas acerca'@ dele em Shakespeare.
- Certamente. Pois bem! Como ia dizendo, havia um homem que se chamava cardeal Newman. Ah, cá
está o livro.
- Tirou-o do cofre. - E, já que estou aqui, vou tirar este também.
É de um homem que se chamava Maine de Biran(2). Era um filósofo. Creio que sabe o que isso
significa.

- O Céu e a Terra encerram mais mistérios que os que a filosofia pode imaginar!- respondeu
prontamente o Selvagem.
(2) Maine de Biran (Grançois-Pierre) filósofo francês, nascido em Bergerac, de
tendências espiritualistas (1766-1824).
- Perfeitamente. Daqui a pouco ler-lhe-ei uma das coisas que ele sonhou efetivamente. Enquanto
espera, ouça o que disse esse velho arquichantre. - Abriu o livro num ponto marcado com um sinal e
começou a ler: «Nós não pertencemos a nós próprios mais do que nos pertence aquilo que possuímos.
Não fomos nós que nos fizemos, não podemos ter a jurisdição suprema sobre nós mesmos. Não somos
senhores de nós. Pertencemos a Deus. Não é para nós uma felicidade encararmos as coisas desta
maneira? Será, por qualquer razão, uma felicidade, um conforto, considerarmos que pertencemos a nós
mesmos? Aqueles que são jovens e os que estão em estado de prosperidade podem acreditá-lo. Esses
podem acreditar que é uma grande coisa poder realizar tudo de acordo com os seus desejos, como eles
supõem, não depender de ninguém, não ter de pensar em nada fora do alcance da vista, não ter de se
preocupar com a gratidão contínua, com a oração contínua, com a obrigação contínua de atribuir à
vontade de outrem o que fazem. Mas à medida que o tempo se escoa apercebem-se, como todos os
homens, de que a independência não foi feita para o homem, que ela é um estado antinatural, que pode
satisfazer por um momento, mas que não nos leva em segurança até ao fim ... »
Mustafá Mond deteve-se, pousou o primeiro livro e, pegando no outro, folheou-o. - Veja isto, por
exemplo - disse. E com a sua voz profunda, começou de novo a ler: «Envelhecemos, temos o
sentímento radical da fraqueza, da atonia, do mal-estar devido ao peso dos anos, e dizemo-nos doentes,
embalamo-nos na ideia de que este estado penoso é devido a uma causa particular, de que esperamos
curar-nos como nos curamos de uma doença. Vãs cogitações! A moléstia é a velhice, e ela é miserável.
Precisamos de nos resignar... Diz-se que se os homens se tornam religiosos ou devotos com o avançar
dos anos é porque têm medo da morte e do que a deve seguir na outra vida. Mas tenho, quanto a mim, a
consciência de que, sem nenhum terror semelhante, sem nenhum efeito de imaginação, o sentimento
religioso se pode desenvolver à medida que avançamos em idade, porque, tendo-se acalmado as
paixões, a imaginação e a sensibilidade menos excitadas ou excitáveis, a razão é menos perturbada no
seu exercício, menos ofuscada pelas imagens ou afeições que a absorviam. Então Deus, Supremo Bem,
sai como das nuvens, e a nossa alma sente-O, vê-O, voltando-se para Ele, fonte de toda a luz, porque,
tudo desaparecendo no mundo sensível, a existência fenomenológica deixando de ser sustentada pelas
impressões externas e internas, sentimos a necessidade de nos apoiarmos em qualquer coisa que
permanece e não engane, numa realidade, numa verdade absoluta, eterna. Porque, enfim,
este sentimento religioso, tão puro, tão doce de sentir, pode compensar todas as outras perdas...»
Mustafá Mond fechou o livro e recostou-se na sua poltrona. - Uma das numerosas coisas do Céu e da
Terra com que os filósofos não sonharam é isto - e brandiu a mão -, somos nós, é o mundo moderno.
"Não se pode prescindir de Deus, a não ser durante a juventude e a prosperidade. "Pois bem, eis que
temos juventude e prosperidade até ao último dia de vida. Que resulta daí? É manifesto que não
podemos ser independentes de Deus. «O sentimento religioso compensará todas as nossas perdas.»
Mas não há, para nós, perdas a ser compensadas; o sentimento religioso é supérfluo. E., porque iríamos
nós atrás de um sucedâneo dos desejos juvenis, quando os desejos juvenis nunca nos faltaram? De um
sucedâneo de distrações, quando continuamos a gozar todas as velhas' tolices até ao fim? Que
necessidade temos nós de repouso, quando o nosso corpo e o nosso espírito continuam a deleitar-se na
atividade? De consolação, quando temos a soma? De qualquer coisa imutável, quando há a ordem
social?
- Então acredita que não há Deus?
- Não. Acredito que há, muito provavelmente, um.
- Então, porque ... ? Mustafá Mond interrompeu-o.
- Mas ele manifesta-se de maneira diferente aos diferentes homens. Nos tempos pré-modernos,
manifestava-se como o ser descrito nestes livros. Agora ...
Como se manifesta Ele agora? - perguntou o Selvagem. Pois bem,' manifesta- se como ausência, como
se em absoluto não existisse.
- Isso é por culpa sua.
- Diga que é culpa da civilização. Deus não é compatível com as máquinas, a medicina científica e a
felicidade universal. É preciso escolher. A nossa civilização escolheu as máquinas, a medicina e a
felicidade. Por isso se torna necessário que eu conserve estes livros fechados no cofre-forte. São
indecentes. O povo ficaria escandalizado se...
O Selvagem interrompeu-o. - Mas não é uma coisa natural sentir que há um Deus?
- Você poderia perguntar da mesma forma se é natural fechar as calças com um fecho éclair - disse o
Administrador, sarcasticamente. Você faz-me lembrar um outro desses antigos, um tal Bradley. Ele
definia a filosofia como a arte de encontrar uma má razão para aquilo em que se acredita
instintivamente. Como se se acreditasse, seja no que for, instintivamente! Acredita-se nas coisas porque
se foi condicionado para acreditar nelas. A arte de encontrar más razões para aquilo em que se crê, em
virtude de outras más razões, isso é filosofia. Crê-se em Deus porque se foi condicionado para crer em
Deus.
- No entanto, apesar de tudo - insistiu o Selvagem -, é natural acreditar-se em Deus quando se está só,
sozinho, à noite, quando se pensa na morte ...
- Mas agora nunca se está só - volveu Mustafá Mond. - Procedemos de forma que as pessoas detestem
a solidão e dispomos a vida de tal maneira que seja mais ou menos impossível nunca a conhecer.
O Selvagem aquiesceu tristemente com a cabeça. Em Mal país ele sofrera porque o tinham excluído das
atividades comuns do pueblo; na Londres civilizada, sofria porque não podia eximir-se a essas
atividades comuns, porque nunca podia estar tranquilo e só.
- Lembra-se desta passagem do Rei Lear? - perguntou por fim o Selvagem: - "Os deuses são justos e
dos nossos vícios amáveis fazem instrumentos para nos atormentarem; o lugar sombrio e corrupto em
que ele te concebeu custou-lhe os olhos." E Edmund responde - o senhor lembra-se, ele está ferido e
agonizante: "Tu disseste a verdade; é a verdade. A roda completou o seu giro; e aqui estou." Que diz
agora o senhor? Não lhe parece que há um Deus dirigindo as coisas, punindo, recompensando?
- Ah! A si, parece-lhe? interrogou por sua vez o Administrador. - Você pode entregar-se como uma
neutra a todos os vícios amáveis que quiser, sem se arriscar a ter os olhos vazados pela amante do seu
filho: "A roda completou o seu giro; e aqui estou." Mas onde estaria Edmund nos nossos dias? Sentado
numa poltrona pneumática, rodeando com o braço a cintura de uma mulher, mastigando a sua goma de
mascar de hormona sexual, assistindo a um filme perceptível. Os deuses são justos. Sem dúvida. Mas o
seu código de leis é ditado, em última instância, pelas pessoas que organizam a sociedade. A
Providência
recebe a palavra de ordem dos homens.


- Está certo disso? - perguntou o Selvagem. - Está bem certo de que Edmund, nessa poltrona
pneumática, não seria tão severamente punido como o Edmund ferido e esvaindo-se em sangue? Os
deuses são justos. Não utilizaram eles esses vícios amáveis para o degradar?
- Degradá-lo de que situação? Como cidadão feliz, assíduo ao trabalho, consumidor de riquezas, é
perfeito. É claro que, se escolher um modelo de existência diferente do nosso, então talvez possamos
dizer que foi degradado. Mas é preciso que cinjamos a uma série de postulados. Não se pode jogar golf
electromagnético seguindo as regras da bola centrífuga.
- Mas o valor não reside na vontade particular - retorquiu o Selvagem. - Ele provém da estima e da
dignidade, tão preciosas para aquele que sabe apreciá-las.
- Vamos, vamos - protestou Mustafá Mond -, isso é ir um pouco longe, não lhe parece?
- Se o senhor deixasse ir o seu pensamento até Deus, não se deixaria degradar por vícios amáveis.
Teria uma razão para suportar pacientemente as coisas, para fazer as coisas com coragem! Vi isso entre
os índios.
- Acredito - disse Mustafá Mond. - Mas também não somos índios. Um homem civilizado não tem
nenhuma necessidade de suportar seja o que for seriamente desagradável. E quanto a fazer as coisas,
Ford o guarde de ter jamais tal ideia na cabeça! Toda a ordem social seria desorganizada se os homens
começassem a fazer coisas por iniciativa própria.
É a renúncia, então? Se tivessem um Deus, teriam uma razão para a renuncia.
- Mas a civilização industrial só é possível quando não há renúncias. O gozo até aos limites extremos
impostos pela higiene e pelas leis econômicas. Sem isso, as rodas deixariam de girar.
- Teriam um motivo de castidade! - disse o Selvagem, corando ligeiramente ao pronunciar estas
palavras.
- Mas quem diz castidade diz paixão; quem diz castidade, diz neurastenia. E a paixão e a neurastenia
são a instabilidade. E a instabilidade é o fim da civilização. Não se pode ter uma civilização durável
sem uma boa quantidade de vícios amáveis. - Mas Deus é a razão de ser de tudo quanto é nobre, belo,
heroico. Se tivesse um Deus ...
- Meu caro amigo - disse Mustafá Mond -, a civilização não tem a menor necessidade de nobreza ou de
heroísmo. Essas coisas são sintomas de incapacidade política. Numa sociedade convenientemente
organizada como a nossa, ninguém tem oportunidade de ser nobre ou heroico. É necessário que as
coisas se tornem essencialmente instáveis para que semelhante ocasião se possa apresentar. Onde
houver guerras, onde houver juramentos de fidelidade múltiplos e divididos, onde houver tentações às
quais é necessário resistir, objetos de amor pelos quais é preciso lutar ou que é preciso defender, aí,
manifestamente, a nobreza e o heroísmo têm um sentido. Mas hoje já não há guerra. Toma-se o maior
cuidado para evitar amar exageradamente seja quem for. Não há nada que se assemelhe a um juramento
de fidelidade múltipla, está-se de tal modo condicionado, que ninguém pode deixar de fazer o que tem
a fazer. E se aquilo que há a fazer é, no conjunto, tão agradável, deixa-se uma tão grande margem a um
tão grande número de impulsos naturais que não há verdadeiramente tentações a que seja necessário
resistir. E se alguma vez, por qualquer infelicidade, acontece, por esta ou aquela razão, algo de
desagradável, pois bem, há sempre o soma para permitir uma fuga da realidade, há sempre o soma para
acalmar a cólera, para fazer a reconciliação com os inimigos, para dar paciência e para ajudar a
suportar os dissabores. Outrora não se podiam conseguir todas estas coisas senão com grande esforço e
depois de anos de penoso treino moral. Agora tomam-se dois ou três comprimidos de meio grama, e é
tudo. Pode-se trazer conosco, num frasco, pelo menos
metade da própria moralidade. O cristianismo sem lágrimas, eis o que é o soma.
- Mas as lágrimas são necessárias. Não se lembra do que disse Othello? "Se depois de qualquer
tempestade nascem tais calmarias, então que soprem os ventos até acordarem a morte!" Há uma
história que nos contava um velho índio a propósito da filha de Matsaki. Os jovens que desejavam
desposá-la deviam passar uma manhã a mondar com uma enxada. Isto parecia fácil; mas havia moscas
e mosquitos encantados. Na maioria, os jovens eram absolutamente incapazes de suportar as picadelas.
Mas aquele que fosse capaz obtinha a rapariga.
- Encantador! Mas nos países civilizados -,disse o Administrador - podemos ter as raparigas sem
mondar para elas com uma enxada, e não há moscas nem mosquitos que nos piquem. Há séculos que
nos livrámos completamente deles.
O Selvagem fez com a cabeça um sinal de aquiescência e franziu os sobrolhos.
Livraram-se deles. Sim, é bem a vossa maneira de agir. Livrarem-se de tudo o que é desagradável, em
vez de procurarem acomodar-se. Saber que é mais nobre para a alma sofrer os golpes e as flechas da
fortuna adversa ou pegar em armas contra um oceano de desgraças e, fazendo-lhe frente, destruí-las ...
Mas não fazem uma coisa nem outra. Vocês não sofrem nem enfrentam. Suprimem apenas os golpes e
as flechas. É demasiado fácil.
Calou-se repentinamente, pensando em sua mãe. No seu quarto do trigésimo sétimo andar, Linda
flutuara num mar de luzes cantantes e de carícias perfumadas; partira flutuando fora do espaço, fora do
tempo, fora da prisão das suas recordações, dos seus hábitos, do seu corpo envelhecido e inchado. E
Tomakin, ex-Diretor da Incubação e do Condicionamento, Tomakin pusera-se em fuga, evadido da
humilhação e da dor, num mundo onde não podia ouvir aquelas palavras, aquele riso escarninho, onde
não podia ver aquele rosto hediondo, sentir aqueles braços úmidos e flácidos em volta do pescoço,
entrara num mundo de esplendor.
- O que lhes falta - continuou o Selvagem - é, pelo contrário, qualquer coisa que comporte lágrimas,
que sirva como compensação. Nada se compra bastante caro, aqui.
"Doze milhões e quinhentos mil dólares -protestara Henry Foster quando o Selvagem lhe dissera isto. -
Doze milhões e quinhentos mil, eis quanto custou o novo centro de condicionamento. Nem menos um
cêntimo." - Expor o que é mortal e incerto a tudo quanto podem arrostar a fortuna, a morte e o perigo,
até mesmo por uma bagatela. Não é isto alguma coisa? - perguntou, levantando os olhos para Mustafá
Mond. - Mesmo abstraindo-nos de Deus. E, no entanto, Deus constituiria, bem entendido, uma razão.
Não é alguma coisa viver perigosamente?
- Acredito bem que é alguma'coisa! - respondeu o Administrador. - Os homens e as mulheres precisam
de que se lhes estimulem de vez em quando as cápsulas suprarrenais.
Como? - perguntou o Selvagem, que não compreendera. É uma das condições da saúde perfeita. Foi
por isso que tornamos obrigatórios os tratamentos de S. P. V.
S. P. V. ? Sucedâneo de paixão violenta. Regularmente, uma vez por mês, irrigamos todo o organismo
com uma torrente de adrenalina. É o equivalente fisiológico completo do medo e da cólera. Todos os
efeitos tônicos provocados pelo assassínio de Desdémona e pelo fato de ser assassinada por Othello,
sem nenhum dos seus inconvenientes.
Mas os inconvenientes agradam-me. Mas não a nós - volveu o Administrador. - Nós preferimos fazer
as coisas com todo o conforto.
- Mas eu não quero conforto. Quero Deus, quero a poesia, quero o autêntico perigo, quero a liberdade,
quero a bondade, quero o pecado.
- Em suma - disse Mustafá Mond -, você reclama o direito de ser infeliz.
- Pois bem, seja assim! - respondeu o Selvagem em tom de desafio. - Reclamo o direito de ser infeliz.
- Sem falar no direito de envelhecer, de ficar feio e impotente, no direito de ter a sífilis e o cancro, no
direito de não ter de comer, no direito de ter piolhos, no direito de viver no temor constante do que
poderá acontecer amanhã, no direito de apanhar a febre tifoide, no direito de ser torturado por
indizíveis dores de todas as espécies.
Estabeleceu-se um longo silêncio.
- Reclamo-os a todos - disse, por fim, o Selvagem. Mustafá Mond encolheu os ombros.
- Oferecemos-lhos da melhor vontade - respondeu.

CAPÍTULO DÉCIMO OITAVO
A porta estava entreaberta. Eles entraram. - John! Do quarto de banho chegou um ruído desagradável
e característico.
- Então, que é que se passa? - gritou Helmholtz. Não houve resposta. O ruído desagradável repetiu-se
duas vezes; depois cessou. Com um tinido metálico, a porta do quarto de banho abriu-se e, muito
pálido, o Selvagem apareceu.
- Ora vejam! - exclamou Helmholtz, solícito. - Você tem realmente um aspecto de doente, john!
- Comeu alguma coisa que lhe fez mal? - perguntou Bernard.
O Selvagem fez um sinal afirmativo com a cabeça.
- Comi a civilização.
- Hem?
- E envenenou-me. Eu estava poluído. - E depois acrescentou em voz mais baixa: - Comi o meu próprio
pecado.
- Sim, mas que foi ao certo?... Quero dizer: neste momento você ...
- Agora estou purificado - respondeu o Selvagem. - Bebi mostarda com água morna.

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