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sexta-feira, 13 de setembro de 2013

POR QUE PENSAR? - Boaventura de Sousa Santos (Universidade de Coimbra)

Ensaio Completo
Revista LUA NOVA Nº 54 — 2001 1

É um prazer enorme estar aqui, voltar aqui e fazê-lo nestas circunstâncias da celebração dos

25 anos do CEDEC, instituição que me habituei a respeitar há muitos anos, a admirar, a seguir e a
colaborar na medida do possível, nos seus trabalhos e na sua revista, uma revista de resistência, de
criatividade, de pensamento crítico sobre o Brasil. Por todas estas razões eu não poderia faltar à
chamada que a Amélia fez e aqui estou, com todo gosto, pois.

Evidente que eu tenho aquele mínimo de decoro que se espera que um professor

universitário tenha, de não pensar o Brasil no meio de colegas tão insignes, tão ilustres, que eu tanto
admiro . Mas é evidente que a questão que me foi posta para esta ação é uma questão mais ampla
sobre as razões para pensar sobre as sociedades contemporâneas. É uma questão realmente
importante porque é desarmantemente simples. É fácil formular a pergunta, ainda que não seja fácil
respondê-la. Costumo dizer que paradoxalmente é nos períodos de transição paradigmática que as
perguntas simples fazem mais sentido. A complexidade destes períodos reside precisamente na
nossa dificuldade em nomeá-los. E porque não sabemos nomeá-los falamos de períodos de
transição. O curioso é que a complexidade, para ser desvelada, tem de ser interpelada de maneira
simples. Acho que as questões simples são aquelas que, por serem desarmantemente transparentes,
permitem ver melhor qual é a problemática dominante do nosso tempo.




O meu exemplo é sempre o de Rousseau, que em meados do século XVIII pôs aquela

questão muito simples, muito importante na altura em que a ciência começava a ser o grande motor
do desenvolvimento econômico, político e cultural: a questão de saber se a ciência e a virtude
tinham alguma coisa em comum, se o desenvolvimento da ciência contribuiria para o bem da
sociedade e para a melhoria dos costumes. Uma pergunta simples à qual ele respondeu com um
redondo não, como sabem, depois de fazer, naturalmente, um discurso que aliás lhe granjeou um
prêmio, nessa altura.

SEIS RAZÕES PARA PENSAR

SITUAÇÃO COMPLEXA, PERGUNTAS SIMPLES

Eu penso, realmente, que as perguntas que nós hoje precisamos são perguntas simples e esta

é uma delas. Congratulo-me, portanto, com o fato de poder tentar dar-lhe a resposta. Naturalmente
que não tenho a felicidade de ter a lucidez de Rousseau e poder responder com um redondo sim, ou não, ou com uma razão qualquer, que seja evidente e inequívoca para todos. Tenho que ir por
aproximações sucessivas, ou seja, por respostas diferentes à mesma questão.
A primeira coisa que me intriga nessa pergunta é que ela parece estranha. Por que pensar?
Afinal os cientistas sociais dos últimos dez anos têm vindo a dizer que nós estamos num período de
auto-reflexividade, em que indivíduos autônomos refletem sobre os processos de transformação em
que participam e usam essa reflexão para intervir nesses processos. O indivíduo auto-reflexivo é um
indivíduo que não se mobiliza sem razões, a sua própria vida é um objeto de meditação, de reflexão, de auto-análise, de reversão de percursos etc.

Se nós estamos numa fase da auto-reflexividade, todos pensamos, e, se todos pensamos, por

que fazer essa pergunta? A verdade é que, em minha opinião nós não estamos numa fase da autoreflexividade.

Ao contrário do que pensam Ulrich Beck, Scott Lash e Anthony Giddens, eu penso

que nós não estamos numa época da auto-reflexividade, penso sim que estamos numa época em que a auto-reflexividade é própria daqueles que têm o privilégio de a atribuir aos outros. Ela não é, de modo nenhum, generalizada, e não é generalizada exatamente porque estamos num processo de
transição, um processo de grande criação e de grande destruição. Não é a criação destrutiva ou a
destruição criativa de que falava Schumpeter; são processos de criação, concomitantes com
processos de destruição, sem que se saiba muito bem a coerência entre eles, muitas vezes. E nesse
processo, penso eu, a vertigem das transformações faz com que a sociedade se divida em dois
grupos que vivem em condições nada propícias a pensar. Por um lado, aqueles que comandam esse
processo de criação e de destruição, aqueles que estão por detrás da globalização hegemônica de
que hoje tanto se fala, aqueles que comandam todo esse processo, não têm tempo para pensar.

Imaginemos que vamos perguntar a um stockbroker, a um corretor da bolsa, por que é que ele está a fazer o que está a fazer naquele momento. É evidente que fazer-lhe uma pergunta desse tipo é

extremamente perturbador, porque obviamente o automatismo da sua ação não exige, não permite
de maneira nenhuma esse pensamento. Por outro lado, enquanto ouviu a nossa pergunta e teve que
lhe responder, perdeu certamente alguns investimentos chorudos, já que na bolsa não há tempo a
perder. Por outro lado, aqueles que sofrem este processo de criação, a esmagadora maioria da
população mundial, que neste momento sofre a exclusão, a desigualdade, a polarização entre ricos e
pobres, tão pouco pode pensar, porque está tão ocupada em sobreviver que não tem, realmente,
capacidade, nem tem disposição para pensar.

Portanto, eu penso que no momento em que nós fazemos um apelo à auto-reflexividade, a

sociedade vai destruindo as condições que a tornam possível de uma maneira generalizada. Isto,
portanto, faz com que seja importante nós pensarmos, e pensarmos exatamente que a primeira
resposta é exatamente essa: porque estamos numa fase de transição paradigmática, numa fase em
que nós temos que pensar, realmente, qual é o tipo de conhecimento que nos pode levar a atravessar da melhor maneira esse processo de transição, porque as transições são processos em que há descontinuidades, há turbulências de escalas, há agitação, explosão mesmo de escalas, como eu costumo dizer, e o pensamento estabilizado em outras eras, em outros períodos, tem dificuldade em se adaptar a essa turbulência.

UM OUTRO PENSAMENTO


Portanto, nós precisamos de um outro pensamento, provavelmente de um outro

conhecimento que nos conduza nesse processo, e esse conhecimento é um conhecimento que tem
que ser produzido por outra forma. A própria universidade vai ser interpelada nas próximas
décadas, ela que é a instituição da modernidade ocidental mais antiga, pelo menos a que mantém há
mais tempo basicamente a mesma forma que tem hoje. É muito provável que ela tenha que sofrer
modificações radicais nas próximas décadas, porque o processo de conhecimento a que hoje nós
aspiramos não se compagina com muitas das formas institucionais em que é hoje praticado. E esse
conhecimento, esse pensamento, tem que ter uma característica que me parece realmente complexa.

É que ele tem que ser suficientemente igual ao seu tempo para poder imergir nele, para se poder

afundar nele, para poder ser parte dele.

Sabemos que nomeadamente o pensamento crítico moderno teve muitas vezes dificuldade

nessa imersão, ressentiu sempre de alguma maneira a sua igualdade com o seu tempo, quis manter
sempre uma diferença. É necessário que o nosso pensamento seja simultaneamente igual a este
tempo que é realmente complexo. Portanto ele tem que ter alguma turbulência, e algum caos, que é
próprio do próprio tempo que ele quer pensar.

Mas, ao mesmo tempo, tem que ser suficientemente diferente para poder pensar, para poder

emergir, para poder ver com alguma distância crítica o que se está a passar. Portanto, o fato de
estarmos num período de transição é, em meu entender, a primeira resposta a esta pergunta.

A LUCIDEZ INDISPENSÁVEL


A segunda resposta à pergunta por que pensar?pode formular-se da seguinte forma: porque

a ação e a mobilização não dispensam a lucidez da ação e da mobilização. A ponta de verdade que a ideia da auto-reflexividade tem hoje não é detectável ao nível da auto-reflexidade individual, mas
antes ao nível da auto-reflexividade coletiva, dos movimentos sociais, das organizações não governamentais, onde, ao contrário de outros tempos em que mobilização, nomeadamente aquela
que caracterizou o movimento operário, tomou a certa altura uma precedência total sobre a lucidez
– como se a mobilização tivesse razões que a razão teria mesmo que desconhecer – a reflexão sobre as razões da mobilização faz parte integrante da própria mobilização.

Estamos numa fase nova, onde a mobilização não dispensa a lucidez e onde, realmente, para

as pessoas se mobilizarem para as lutas sociais têm que ter razões próprias. Portanto, eu penso que
neste momento é fundamental que se tome nota de que neste período nós precisamos de um
pensamento que permita essa mesma lucidez para ação e mobilização. E aqui, nesta resposta, a
elaboração que vos faço e vos proponho é a seguinte: é que para isso ser feito é preciso que se criem constelações de sentido onde as tarefas intelectuais, as tarefas políticas e as tarefas morais de
alguma maneira convirjam. E isto é, naturalmente, uma ruptura com o pensamento da modernidade.

A ruptura entre a busca da verdade e a busca do bem foi talvez o que de mais fatídico

aconteceu à ciência moderna, porque a busca da verdade, separada da busca do bem, levou,
efetivamente, ao reducionismo: o reducionismo como desconhecimento ativo da complexidade em
nome do rigor da verdade. Esse desconhecimento ativo de complexidade transformou-se numa
verdade em si mesma: o rigor da verdade transformou-se na verdade do rigor, e a verdade do rigor
acabou por boicotar o rigor da verdade.

Essa separação nem foi boa para a moral e a ética e nem foi boa para a ciência. Portanto, não

é que nós não precisemos de rigor, o que não precisamos é da monocultura do rigor científico
moderno. Precisamos de uma visão mais ampla de rigor. Por que? Precisamente porque nesta fase
de transição é perigosíssimo dividir a busca da verdade da busca do bem. Entre parêntesis, notemos
que a separação entre a busca da verdade e a busca do bem teve historicamente uma vantagem que é bom analisar e debater. Foi com base nela que os intelectuais, no fim do Ancien Regime,
reivindicaram para si a tolerância dos poderes seculares e religiosos: como eram neutros podiam ser
tolerados. Mas talvez por isso nós sejamos ainda semelhantes ao intelectual da Renascença, tal
como o caracterizou um grande crítico literário cubano, Retamar: um misto de servo e de
mercenário, lúcido para olhar a realidade, mas totalmente cooptado ou manietado nas possibilidades
de a transformar.

Temos que reivindicar a tolerância, mas temos que a reivindicar por outra via. Porque são

três as questões que se nos põem e elas têm que ser respondidas de modo articulado. Primeiro, onde estamos e para onde vamos é uma questão fundamentalmente intelectual, que podemos analisar com elementos cognitivos que temos, que a ciência e outros conhecimentos têm à nossa disposição. A segunda questão pode ser assim formulada: ante alternativas incertas, que é o que caracteriza um processo de transição, quais escolher? No fundo: de que lado estamos? Esta é uma questão moral, uma questão tão importante quanto a anterior. E finalmente há uma terceira questão: uma vez definidas as prioridades ou as alternativas pelas quais nós nos queremos pautar a nossa existência, como chegar lá? É a questão política.
Portanto, há questões intelectuais, morais e políticas que se misturam.

POR UMA NOVA CIÊNCIA SOCIAL


Para que possamos criar novas constelações de sentido que nos permitam responder

articuladamente as três questões nós precisamos, realmente, de outras ciências sociais e de um outro tipo de cientista social.

Em primeiro lugar eu penso que é fundamental, como tenho defendido, que distingamos

entre objetividade e neutralidade. A objetividade é fundamental, a neutralidade deve ser superada.

A idéia da objetividade, normalmente, conota três idéias distintas: a imparcialidade, que tem muito a

ver com o fundamento das teorias; a neutralidade que é indiferença às conseqüências da teoria; e a
autonomia, que diz respeito à independência das práticas e das instituições científicas. Da
imparcialidade não me ocupo neste momento. A autonomia é hoje um dos grandes problemas da
ciência. A neutralidade ou indiferença às conseqüências é que eu penso que tem que ser superada,
isto é, nós temos realmente de ser capazes de sermos objetivos sem sermos neutros.

Sermos objetivos significa analisarmos a realidade com as técnicas e os métodos que estão à

nossa disposição, sem sectarismos nem dogmatismos.

Perguntarão: mas como é que podemos evitar o sectarismo ou o dogmatismo se não formos

neutros? Respondo: através de um procedimento muito importante, extremamente exigente mas
também simples que consiste em estarmos sempre preparados para nos deixarmos surpreender pela
realidade.

Enquanto a gente se deixar surpreender pela realidade, no sentido de que aquilo que nós

observamos não está totalmente contido nas nossas teorias, ou nos nossos preconceitos, aí estará
prevenido o perigo do sectarismo.

Portanto, o importante é que saibamos que o compromisso com a objetividade existe para

fundar a objetividade do compromisso, isto é, para termos razões pelas quais nós temos uma
posição ou outra. O cientista social, sendo objetivo, tem que saber de que lado está e tem que saber
com razões, razões pensadas, e é por isso que é preciso e é fundamental pensar. Não há objetividade sem objetivos.

Em segundo lugar, temos que substituir o conhecimento heróico pelo conhecimento

edificante, um conhecimento que não é estranho às conseqüências do conhecimento. O
conhecimento científico cometeu muitos epistemicídios, produziu muita morte de conhecimentos
alternativos.

Precisamos de denunciar esse epistemicídio e de recuperar na medida do possível os

conhecimentos alternativos. Ao contrário do que proclamam os arautos da globalização o mundo é
cada vez mais diverso e nessa diversidade emergem novas formas de conhecimento. Por outro lado, a ciência, ela própria é multicultural.

O novo cientista social tem que ser o contrário do ideólogo. Quem é o ideólogo? É aquele

que gera a ocultação das discrepâncias entre os objetivos generosos e as práticas egoístas e
corruptas. O intelectual, o cientista social, tem que ser o contrário disso, tem que ser duas coisas
neste momento: tem que ser, por um lado, tradutor e tem que ser, por outro lado, a voz. Tradutor no sentido que tem que contribuir para ampliar a inteligibilidade das práticas sociais e das
mobilizações sociais.

As práticas sociais hoje são simultaneamente globais e locais. É preciso amplificar a

inteligibilidade entre as diferentes práticas, entre o movimento indígena e o movimento das
mulheres, entre o movimento negro e o movimento pacifista, entre o movimento ambiental, entre
movimentos regionais, entre os movimentos de moradores e os movimentos homossexuais.

O cientista social tem um papel crucial de, através da sua prática e do seu treino, não criar

grandes teorias, mas permitir aumentar a inteligibilidade entre as diferenças: o que o movimento
indígena tem a ver com o movimento ambiental, o que o movimento ambiental tem a ver com o
movimento homossexual, ou com o movimento das mulheres. É esta inteligibilidade ampla que nós
precisamos, porque estamos exatamente num processo em que o fechamento disciplinar fecha a
inteligibilidade.

Por outro lado tem que ser a voz, a voz ante os silenciamentos, que o nosso sistema

social/político/econômico cria. Uma das grandes tarefas nossas é aquilo que eu chamo de
“Sociologia das ausências”, é procurar o que falta no presente, naquilo que existe. A negatividade
do presente não é o que lhe falta, é o que no presente bloqueia aquilo que nos faz falta e a que temos direito É essa falta, essa negatividade que é fundamental para a nova forma de pensamento que vos proponho. Aí há uma distância, digamos, há uma distância que se mede por uma certa negatividade.

Vivemos em sociedades ideologicamente afirmativas. A sociedade de consumo é por excelência

uma sociedade afirmativa: depois de sujeitar os gostos ao menu de escolhas que oferece,
naturalmente tem um menu para todos os gostos. No desarmar essa armadilha reside a negatividade
do pensamento crítico neste momento. Nisto consiste a segunda resposta à nossa pergunta.

PENSAR ALTERNATIVAS


A terceira resposta à pergunta por que pensar? é a seguinte: porque é preciso lutar contra o

des-pensamento que está por detrás da despolitização da transformação social, ou seja, a idéia de
que não há alternativas à globalização hegemônica. Precisamos de pensar para podermos
credibilizar as alternativas que estão a emergir no mundo. E para isso nós não precisamos apenas de
um pensamento de alternativas, precisamos de um pensamento alternativo de alternativas. O
pensamento alternativo caracteriza-se pela centralidade da hermenêutica da emergência: para
credibilizar as alternativas que estão a emergir no mundo precisamos de uma hermenêutica de
emergência, que amplie simbólica e politicamente essas iniciativas locais.
Há duas grandes idéias a ter em conta. A primeira é de Prigogine (e de Aristóteles), a idéia
de que o possível é mais rico que o real. A segunda é uma idéia de Ernst Bloch, um filósofo que não é hoje muito lido, mas que devia sê-lo muito mais: o conceito do “ainda não”, entre o ser e o nada, que funda o princípio da esperança! Nós vivemos em sociedades onde há espera mas onde não há esperança, e para reconstituir essa esperança, o princípio do “ainda não”, de algo que pode vir, que é possível, porque está nas possibilidades do real e do presente, cria um efeito de intensificação. O ainda não tem uma energia superior à sua matéria precisamente por não estar ainda realizado. É ele que nos evita, realmente, a aceitação do que existe só porque existe, nas suas três formas: o conformismo, que é a maneira chã, mais plana, de aceitar o que existe; o situacionismo, que é a celebração total do que existe; e o cinismo, que é o conformismo com má consciência.

Este “ainda não” exige um elemento subjetivo, e esse elemento subjetivo é a consciência

antecipatória, a idéia de que algo pode surgir, em que a ruptura entre o presente e o passado é
possível, a latência do futuro, a idéia de incompletude. E, de novo, a idéia da sociologia das
ausências é aqui muito importante, porque ela nos leva a mostrar que o que existe está aquém do
que pode existir, que há possibilidades irrealizadas e que são realizáveis, são as chamadas utopias
reais. Precisamos de surpresas que tenham condição para não ser, ou seja, surpresas realistas.

Esta hermenêutica da emergência obriga realmente a ciência a confrontar-se com

conhecimentos rivais, e é essa uma das deficiências da universidade e dos nossos próprios centros
de investigação: não sabemos trazer para dentro deles outros conhecimentos, a não ser em
momentos muito raros. Lembro-me de, em 1974, quando foi a revolução dos cravos em Portugal,
trazermos camponeses das cooperativas a darem aulas conosco sobre cooperativismo. Tão pouco
sabiam eles de cooperativismo quanto nós mas sabiam melhor que nós porque era importante criar
cooperativas. Era uma outra configuração de sentidos cognitivos, políticos e morais, uma outra
possibilidade de colaboração, que depois se desvaneceu à medida que nós voltamos a ser
universitários e intelectuais e eles, obviamente, camponeses como sempre tinham sido.

PENSAR NÃO É TUDO


Quarta resposta à pergunta por que pensar? Porque pensar não é tudo, porque além de agir

nós temos que sentir, nós temos que criar formas de pensamento que sejam mais acolhedoras às
emoções, ao corpo, aos afetos, ao sentimentos. Isso também é uma grande dificuldade para o
conhecimento em que fomos treinados. As ações coletivas de transformação social têm essa dupla
característica de resistência e de criatividade e quer uma quer outra exige envolvimento emocional,
entusiasmo e indignação. O próprio ódio é por vezes necessário, ao mesmo tempo que o amor, e a
solidariedade, ou seja, elementos de sensibilidade com os quais a modernidade ocidental sempre se
achou muito mal.

Proponho para reflexão, que nós somos feitos de duas correntes, a corrente fria e a corrente

quente. A corrente fria é a corrente do conhecimento dos obstáculos, das condições da
transformação. A corrente quente são as possibilidades da vontade, de agir, de transformar, de
vencer os obstáculos. A corrente fria impede-nos de sermos enganados; conhecendo as condições
nós não somos enganados. A corrente quente impede-nos de nos desiludirmos facilmente; a vontade do desafio sustenta o desafio da vontade.

Mas como tudo, o que é bom tem sempre a sua perversão. O medo exagerado a sermos

enganados tem um grande risco: transforma as condições em obstáculos incontornáveis e, ao fazê-lo, conduz ao quietismo e este, ao conformismo. O medo exagerado de não nos desiludirmos cria
uma aversão total a tudo o que não se apalpa, não se vê imediatamente. Por esta via conduz à
aversão à mudança e esta, igualmente, ao conformismo.

Neste contexto é preciso refletir sobre o papel da arte, porque a arte é a pré-aparição das

possibilidades utópicas, a arte é o laboratório e a festa dessas possibilidades. Curiosamente a
modernidade ocidental valorizou- a, pondo a um canto, o chamado horror pulcri dos modernos. A
arte exprime de maneira exemplar as possibilidades contidas no real.

Quinta resposta à pergunta por que pensar? Porque as lutas lúcidas não conduzem,

necessariamente, a resultados lúcidos. É muito importante ter sempre presente que as nossas lutas,
por mais lúcidas que sejam, podem ter resultados perversos. A ciência moderna é um bom exemplo
desse risco porque a ciência moderna desenvolveu uma enorme capacidade de ação mas uma
péssima capacidade de previsão das suas conseqüências. É por isso que as conseqüências de uma
ação científica são sempre menos científicas do que a ação em si mesma.

Ora bem, é muito importante que a gente saiba que as nossas lutas, os nossos movimentos

levam, por vezes, a resultados perversos. Neste momento de complexidade nós precisamos de
capacidade de ação, que por um lado tenha determinação sem fechamento, tenha intenção mas seja
capaz de progredir no caos, tenha horizontes mas não tenha metas, tenha critérios mas não tenha
programas, tenha direitos mas esteja aberta à ilegalidade. Aqui se funda a passagem da ação
conformista à ação rebelde de novo tipo: a ação rebelde que exige, tanto razões para ser
empreendida, como razões para os perigos da sua perversão.

Sexta resposta à pergunta por que pensar? Porque não podemos confiar em quem pensa por

nós, em quem se arroga a pensar por nós. Por que? Porque nos dizem uma série de coisas que é
perigoso tomar por verdadeiras.
Primeiro, já vimos que nos dizem que não há alternativas, que a globalização hegemônica é
esta e não há outra. Nós sabemos que há alternativas, como demonstrou eloquentemente o primeiro
Fórum Social Mundial de Porto Alegre: Davos de um lado e Porto Alegre do outro, e alegra-me
muito que o nome da alternativa, metaforicamente, seja agora um nome brasileiro.

Em segundo lugar, dizem-nos que a compatibilidade entre a democracia e capitalismo é a

grande conquista da globalização. A tensão entre democracia e capitalismo existiu sempre na
modernidade ocidental, e existiu por uma razão simples, é que o processo de inclusão deu-se
sempre por via da redistribuição social. A democracia foi o processo hegemônico de realizar
redistribuição através das sucessivas ampliações dos direitos de
cidadania. As transferências de rendimento exigidas pelo aprofundamento da cidadania
tinham de criar, por força, tensões com o capitalismo, sempre avesso à redistribuição. Se hoje as
tensões parecem ter desaparecido é porque a democracia está a deixar de ser redistributiva. As
crises na saúde, na educação, na seguridade social são as crises da redistribuição.

Em terceiro lugar, dizem-nos que são baixos os níveis de contestação social porque as

transformações são consensuais. É nossa obrigação distinguir entre consenso e resignação. Há hoje
muito menos consenso do que resignação. A distinção entre eles é fundamental. O consenso é a
afirmação do conflito resolvido, a resignação é a negação do conflito, e, por isso, sustentam duas
estratégias de dominação muito diferentes. A própria teoria crítica não está preparada para lutar
num mundo onde não é o consenso que domina, mas é resignação. A teoria crítica foi constituída
contra o consenso e não sabe como defrontar a resignação.

Em quarto lugar, dizem-nos que o princípio de igualdade é inatingível, porque a riqueza cria

a polarização e que, de qualquer maneira, o princípio da igualdade e o princípio da diferença são
incompatíveis. Dizem até que a luta pelo multiculturalismo e pela diversidade é o prêmio de
consolação para quem perdeu a luta pela igualdade. É preciso afirmar que nas novas lutas se
procura o equilíbrio forte, tenso, dinâmico, entre o princípio da igualdade, o princípio da liberdade e
o princípio da diferença, e que ape- sar de vivermos em sociedades muito desiguais, a igualdade não nos basta, queremos ser iguais e queremos ser diferentes.

Em quinto lugar, dizem-nos que o Estado é o contrário da sociedade e não é o espelho da

sociedade. Portanto, a sociedade, para ser forte, tem que ter um Estado fraco. Ao contrário, temos
que mostrar que uma sociedade civil forte exige um Estado social forte.

Dizem-nos finalmente que a descoincidência entre o indivíduo e a sociedade – que foi uma

conquista da modernidade ocidental, e que está formulada em três grandes pensadores desse
período, Marx, Nietzsche e Freud – não existe mais, porque o que há afinal são apenas os
indivíduos. É importante mostrar que não é o indivíduo que está a emergir, é o individualismo como ideologia dominante do coletivismo situacionista.

Termino. Penso que esta pergunta nos põe uma exigência internamente contraditória: temos

que pensar, mesmo que a experiência do pensamento não coincida com a experiência da vida.

Temos dois exemplos, no século XX que são notáveis a esse respeito, Kafka e Pessoa. Com vidas

tão monótonas, com vidas tão medíocres, como foi possível pensar tanto! Temos que nos preparar,
realmente, para que haja descoincidências entre o pensar e o agir. E pensar que é precisamente por
isso que é tão importante pensar o agir, como pensar o pensar. Pensar nestas condições desafiantes
implica uma transformação da subjetividade: é que só se pode produzir o mundo se nós o
pensarmos produtivamente e não consumisticamente. O que significa que a capacidade de fazermos
coisas diferentes pressupõe a nossa capacidade de sermos pessoas.

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