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quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Morte e vida Severina - João Cabral de Mello Neto

— Desenrolam todo o barbante
e chegam aqui na jante.
— E que então, ao chegar,
não tem mais o que esperar.
— Não podem continuar
pois têm pela frente o mar.
— Não têm onde trabalhar
e muito menos onde morar.
— E da maneira em que está
não vão ter onde se enterrar.
— Eu também, antigamente,
fui do subúrbio dos indigentes,
e uma coisa notei
que jamais entenderei:
essa gente do Sertão
que desce para o litoral, sem razão,
fica vivendo no meio da lama,
comendo os siris que apanha;
pois bem: quando sua morte chega,
temos que enterrá-los em terra seca.
— Na verdade, seria mais rápido
e também muito mais barato
que os sacudissem de qualquer ponte
dentro do rio e da morte.

— O rio daria a mortalha e até um macio
caixão de água;
e também o acompanhamento
que levaria com passo lento
o defunto ao enterro final
a ser feito no mar de sal.
— E não precisava dinheiro,
e não precisava coveiro,
e não precisava oração
e não precisava inscrição.
— Mas o que se vê não é isso:
é sempre nosso serviço
crescendo mais cada dia;
morre gente que nem vivia.
— E esse povo de lá de riba
de Pernambuco, da Paraíba,
que vem buscar no Recife
poder morrer de velhice,
encontra só, aqui chegando,
cemitério esperando.
— Não é viagem o que fazem
vindo por essas caatingas, vargens;
aí está o seu erro:
vêm é seguindo seu próprio enterro


O RETIRANTE APROXIMA-SE DE UM DOS
CAIS DO CAPIBARIBE



— Nunca esperei muita coisa,
é preciso que eu repita.
Sabia que no rosário
de cidade e de vilas,
e mesmo aqui no Recife
ao acabar minha descida,
não seria diferente
a vida de cada dia:
que sempre pás e enxadas
foices de corte e capina,
ferros de cova, estrovengas
o meu braço esperariam.
Mas que se este não mudasse
seu uso de toda vida,
esperei, devo dizer,
que ao menos aumentaria
na quartinha, a água pouca,
dentro da cuia, a farinha,
o algodãozinho da camisa,
ao meu aluguel com a vida.
E chegando, aprendo que,
nessa viagem que eu fazia,
sem saber desde o Sertão,
meu próprio enterro eu seguia.
Só que devo ter chegado
adiantado de uns dias;
o enterro espera na porta:
o morto ainda está com vida.
A solução é apressar
a morte a que se decida
e pedir a este rio,
que vem também lá de cima,
que me faça aquele enterro
que o coveiro descrevia:
caixão macio de lama,
mortalha macia e líquida,
coroas de baronesa
junto com flores de anhinga,
e aquele acompanhamento
de água que sempre desfila
(que o rio, aqui no Recife,
não seca, vai toda a vida).

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