Dizer que o conhecimento faz sofrer tornou-se habitual. O sofrimento foi ligado
à filosofia e à literatura a ponto de que não podemos imaginar um filósofo, ou
alguém com cara de sábio em meio a livros, pulando carnaval ou curtindo uma
piscina. Isso é um mito. Os filósofos e os escritores são ainda hoje
constantemente vistos como pessoas que sofrem por conhecerem a alma humana em
sua profundidade inacessível aos demais. Não quer dizer que conheçam a alma,
nem que haja nela uma profundidade inacessível. Isto é apenas possível. É,
sobretudo, uma crença compartilhada e, como tal, organiza nossa visão de muitas
coisas. Nunca saberemos se os filósofos antigos eram todos sofredores, nem se
conheciam a alma humana. Sabemos apenas que deixaram seu testemunho, no qual
confiamos e com os quais devemos discutir hoje para entender o nosso tempo.
Muitos
dos pensadores contribuíram com esta imagem tratando o sofrimento como seu
objeto de estudos, como Schopenhauer no século XIX. Outros fizeram de seu
próprio sofrimento o objeto de suas filosofias, como Pascal no século XVII.
Todos tentaram entender a relação entre conhecimento e sofrimento. Dos antigos,
Aristóteles, por exemplo, usou um termo de Hipócrates, a melancolia, para
explicar a relação do saber com o sofrimento. Tanto para o filósofo, quanto
para o médico, a melancolia era um temperamento que explicava, inclusive, a
inclinação intelectual de uma pessoa. Além de elucidar o pêndulo entre a
loucura e genialidade que caracterizava alguns indivíduos.
Os mais
interessantes, porém, são alguns dos padres filósofos da Idade Média que
falavam de um certo “demônio do meio dia” que assolava os monges como um
fantasma obsedante. Antes dos filósofos perderem a crença em entidades
sobrenaturais devido ao longo processo de secularização que levou ao modo de se
viver no ocidente sempre a crer em ciência e tecnologia, o dito demônio era
considerado a causa da dispersão na leitura, da insatisfação no convívio dentro
do mosteiro, do rancor, do torpor, da vontade de morrer, das fantasias de
catástrofe, da preguiça, da indolência, e também da culpa por viver no mesmo
lugar sem capacidade de agir e ajudar os outros, ao mesmo tempo que responsável
por uma crítica geral a tudo a todos que o cercavam em sua experiência monacal.
Era o misto de maldade com desespero, de amor com ódio, de autocrítica com
crítica dos outros que caracterizava o quadro melancólico que tanto fazia com
que o monge se sentisse um inútil, quanto fazia com que ele se tornasse um
escritor, um artista envolvido em ilustrar os livros, um filósofo em busca das
verdades próximas ou distantes.
A doença é o que cura
Na
verdade, muitos acreditavam que a doença não era ruim. Hugo de São Vítor, por
exemplo, falava em uma tristitia utilis, uma tristeza útil. Ela era necessária
para a evolução espiritual. Esta idéia pode parecer estranha, mas nos ensina
algo para os nossos tempos sombrios. Os monges acreditavam que a doença a que
chamavam melancolia carregava em si o seu contrário, uma forma de saúde. Ela
era uma espécie de cura.
Neste
aspecto não somos diferentes dos monges medievais, só perdemos a capacidade de
olhar para o que chamamos sofrimento como se ele fosse apenas um modo de ser e
o preço pago quando da descoberta da vida. Mas se o valorizássemos melhor (e
não mais) talvez pudéssemos aprender que a condição humana sempre foi a mesma,
que não somos diferentes e, portanto, a nossa dor não é diferente. Desde
sempre, se nos pensamos como espécie, sofremos. Quem tenta saber mais ou melhor
sofre de um novo jeito. Em vez de afundar no lodo da dor emocional, podemos
descobrir o potencial de transformação do conhecimento. Que o sofrimento não é
o resultado do conhecimento, mas seu ponto de partida... saber pode ser mais a
cura e a libertação da dor do que a dor.
Conhecer para quê?
Que pensar nos faz sofrer pode até ser verdade. Tanto quanto pode ser verdade que pensar pode ser um prazer imenso. Quem se ocupa em conhecer a si mesmo e ao mundo sabe que fará a experiência de prazer e desprazer nesta viagem. Os gregos tinham a idéia do phármakon, remédio e veneno ao mesmo tempo, para explicar a dialética da vida. Ela se aplica ao conhecimento. Podemos sofrer com ele e, do mesmo modo, alegrarmo-nos.
A
melancolia antiga é ancestral direta da nossa depressão. O excesso de depressão
nos dias de hoje não deixa de ter relação com a sociedade do conhecimento e da
informação em que vivemos. Queremos resolver tudo pelo conhecimento, mas
esquecemos de pensar que o conhecimento é uma saída que deve servir a algo mais
do que o mero progresso da ciência.
O conhecimento como potencial de saída da infelicidade,
mesmo que tenha nascido dela. Se alguém busca conhecer a si é porque deve
pretender com isso ser feliz. Ser feliz é mais ético e mais bonito do que
apenas buscar a si mesmo como uma verdade absoluta. Sobre esta verdade de si
ninguém tem garantia. A verdade não deve ser uma ilusão da resposta, mas a
busca.
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