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segunda-feira, 8 de abril de 2013

Microfísica do Poder - Michel Foucault - parte 4


III - A terceira direção da medicina social pode ser sucintamente analisada através do exemplo
inglês.

A medicina dos pobres, da força de trabalho, do operário não foi o primeiro alvo da medicina social,
mas o último. Em primeiro lugar o Estado, em seguida a cidade e finalmente os pobres e
trabalhadores foram objetos da medicalização.

O que é característico da medicina urbana francesa é a habitação privada não ser tocada e o
pobre, a plebe, o povo não ser claramente considerado um elemento perigoso para a saúde da
população. O pobre, o operário, não é analisado como os cemitérios, os ossuários, os matadouros,
etc.

Por que os pobres não foram problematizados como fonte de perigo médico, no século XVIII?
Existem várias razões para isso: uma é de ordem quantitativa: o amontoamento não era ainda tão
grande para que a pobreza aparecesse como perigo. Mas existe uma razão mais importante: é que

o pobre funcionava no interior da cidade como uma condição da existência urbana. Os pobres da
cidade eram pessoas que realizavam incumbências, levavam cartas, se encarregavam de despejar
o lixo, apanhar móveis velhos, trapos, panos velhos e retirá-los da cidade, redistribui-los,
vendê-los, etc. Eles faziam parte da instrumentalização dá vida urbana. Na época, as casas não
eram numeradas, não havia serviço postal e quem conhecia a cidade, quem detinha o saber
urbano em sua meticulosidade, quem assegurava várias funções fundamentais da cidade, como o
transporte de água e a eliminação de dejetos, era o pobre. Na medida em que faziam parte da
paisagem urbana, como os esgotos e a canalização, os pobres não podiam ser postos em questão,
não podiam ser vistos como um perigo. No nível em que se colocavam, eles eram bastante úteis.
Foi somente no segundo terço do século XIX, que o pobre apareceu como perigo. As razões são
várias:


1º) Razão política. Durante a Revolução Francesa e, na Inglaterra, durante as grandes agitações
sociais do. começo do século XIX, a população pobre tornou-se uma força política capaz de se


revoltar ou pelo menos, de participar de revoltas.

2º) No século XIX encontrou-se um meio de dispensar, em parte, os serviços prestados pela
população, com o estabelecimento, por exemplo, de um sistema postal e um sistema de
carregadores, o que produziu uma série de revoltas populares contra esses sistemas que retiravam
dos mais pobres o pão e a possibilidade de viver.

3º) A cólera de 1832, que começou em Paris e se propagou por toda a Europa, cristalizou em torno
da população proletária ou plebéia uma série de medos políticos e sanitários. A partir dessa época,
se decidiu dividir o espaço urbano em espaços pobres e ricos. A coabitação em um mesmo tecido
urbano de pobres e ricos foi considerada um perigo sanitário e político para a cidade, o que
ocasionou a organização de bairros pobres e ricos, de habitações ricas e pobres. O poder político
começou então a atingir o direito da propriedade e da habitação privadas. Foi este o momento da
grande redistribuição, no II Império Francês, do espaço urbano parisiense.

Estas são as razões pelas quais, durante muito tempo a plebe urbana não foi considerada um
perigo médico e, a partir do século XIX isso acontece.

É na Inglaterra, país em que o desenvolvimento industrial, e por conseguinte o desenvolvimento do
proletariado, foi o mais rápido e importante, que aparece uma nova forma de medicina social. Isso
não significa que não se encontrem na Inglaterra projetos de medicina de Estado, de estilo alemão,
Chadwick, por exemplo, se inspirou bastante nos métodos alemães para a elaboração de seus
projetos, em torno de 1840. Além disso, Ramsay escreveu em 1846 um livro chamado Health and
sickness of town populations que retoma o conteúdo da medicina urbana francesa.

E essencialmente na Lei dos pobres que a medicina inglesa começa a tornar-se social, na medida
em que o conjunto dessa legislação comportava um controle médico do pobre. A partir do momento
em que o pobre se beneficia do sistema de assistência, deve, por isso mesmo, se submeter a
vários controles médicos. Com a Lei dos pobres aparece, de maneira ambígua, algo importante na
história da medicina social: a idéia de uma assistência controlada, de uma intervenção médica que
é tanto uma maneira de ajudar os mais pobres a satisfazer suas necessidades de saúde, sua
pobreza não permitindo que o façam por si mesmos, quanto um controle pelo qual as classes ricas
ou seus representantes no governo asseguram a saúde das classes pobres e, por conseguinte, a
proteção das classes ricas. Um cordão sanitário autoritário é estendido no interior das cidades
entre ricos e pobres: os pobres encontrando a possibilidade de se tratarem gratuitamente ou sem
grande despesa e os ricos garantindo não serem vítimas de fenômenos epidêmicos originários da
classe pobre.

Vê-se, claramente, a transposição, na legislação médica, do grande problema político da
burguesia nesta época: a que preço, em que condições e como assegurar sua segurança política.
A legislação médica contida na Lei dos pobres corresponde a esse processo. Mas esta lei e a
assistência-proteção, assistência-controle que ela implica, foi somente o primeiro elemento de um
complexo sistema cujos outros elementos só aparecem mais tarde, em torno de 1870, com os
grandes fundadores da medicina social inglesa, principalmente John Simon, que completaram a
legislação médica da Lei dos pobres com a organização de um serviço autoritário, não de cuidados
médicos, mas de controle médico da população.

Trata-se dos sistemas de health service, de health officers que começaram na Inglaterra em 1875
e eram, mais ou menos, mil no final do século XIX. Tinham por função: 1º) Controle da vacinação,
obrigando os diferentes elementos da população a se vacinarem. 2º) Organização do registro das
epidemias e doenças capazes de se tornarem epidêmicas, obrigando as pessoas à declaração de
doenças perigosas. 3º) Localização de lugares insalubres e eventual destruição desses focos de
insalubridade. O health service é o segundo elemento que prolonga a Lei dos pobres. Enquanto a
Lei dos pobres comportava um serviço médico destinado ao pobre enquanto tal, o health service
tem como características não só atingir igualmente toda a população, como também, ser
constituído por médicos que dispensam cuidados médicos que não são individuais, mas têm por
objeto a população em geral, as medidas preventivas a serem tomadas e, como na medicina
urbana francesa, as coisas, os locais, o espaço social, etc.


Ora, quando se observa como efetivamente funcionou o health service vê-se que era um modo de
completar, ao nível coletivo, os mesmos controles garantidos pela Lei dos pobres. A intervenção
nos locais insalubres, as verificações de vacina, os registros de doenças tinham de fato por objetivo

o controle das classes mais pobres.
E esta a razão pela qual o controle médico inglês, garantido pelos health officers suscitou, desde
sua criação, uma série de reações violentas da população, de resistência popular, de pequenas
insurreições anti-médicas na Inglaterra da 2º metade do século XIX.

Essas resistências médicas foram indicadas por Mckeown em uma série de artigos na revista
Public Law, em 1967. Creio que seria interessante analisar, não somente na Inglaterra, mas em
diversos países do mundo, como essa medicina, organizada em forma de controle da população
pobre, suscitou resistências. E, por exemplo, curioso constatar que os grupos de dissidência
religiosa, tão numerosos nos países anglo-saxões, de religião protestante, tinham essencialmente
por objetivo, nos séculos XVII e XVIII, lutar contra a religião de Estado e a intervenção do Estado
em matéria religiosa. Ora, o que reaparece, no século XIX, são grupos de dissidência religiosa, de
diferentes formas, em diversos países, que têm agora por objetivo lutar contra a medicalização,
reivindicar o direito das pessoas não passarem pela medicina oficial, o direito sobre seu próprio
corpo, o direito de viver, de estar doente, de se curar e morrer como quiserem. Esse desejo de
escapar da medicalização autoritária é um dos temas que marcaram vários grupos aparentemente
religiosos, com vida intensa no final do século XIX e ainda hoje.

Nos países católicos a coisa foi diferente. Que significado tem a peregrinação de Lourdes, desde o
final do século XIX até hoje, para os milhões de peregrinos pobres que ai vão todos os anos, senão
uma espécie de resistência difusa à medicalização autoritária de seus corpos e doenças? Em lugar
de ver nessas práticas religiosas um fenômeno residual de crenças arcaicas ainda não
desaparecidas, não serão elas uma forma atual de luta política contra a medicalização autoritária, a
socialização da medicina, o controle médico que se abate essencialmente sobre a população
pobre; não serão essas lutas que reaparecem nessas formas aparentemente arcaicas, mesmo se
seus instrumentos são antigos, tradicionais e supõem um sistema de crenças mais ou menos
abandonadas? O vigor dessas práticas, ainda atuais, é ser uma reação contra essa social
medicine, medicina dos pobres, medicina a serviço de uma classe, de que a medicina social
inglesa é um exemplo.

De maneira geral, pode-se dizer que, diferentemente da medicina urbana francesa e da medicina
de Estado da Alemanha do século XVIII, aparece, no século XIX e sobretudo na Inglaterra, uma
medicina que é essencialmente um controle da saúde e do corpo das classes mais pobres para
torná-las mais aptas ao trabalho e menos perigosas às classes mais ricas.

Essa fórmula da medicina social inglesa foi a que teve futuro, diferentemente da medicina urbana e
sobretudo da medicina de Estado. O sistema inglês de Simon e seus sucessores possibilitou, por
um lado, ligar três coisas: assistência médica ao pobre, controle de saúde da força de trabalho e
esquadrinhamento geral da saúde pública, permitindo às classes mais ricas se protegerem dos
perigos gerais. E, por outro lado, a medicina social inglesa, esta é sua originalidade, permitiu a
realização de três sistemas médicos superpostos e coexistentes; uma medicina assistencial
destinada aos mais pobres, uma medicina administrativa encarregada de problemas gerais como a
vacinação, as epidemias, etc., e uma medicina privada que beneficiava quem tinha meios para
pagá-la. Enquanto o sistema alemão da medicina de Estado era pouco flexível e a medicina
urbana francesa era um projeto geral de controle sem instrumento preciso de poder, o sistema
inglês possibilitava a organização de uma medicina com faces e formas de poder diferentes
segundo se tratasse da medicina assistencial, administrativa e privada, setores bem delimitados
que permitiram, durante o final do século XIX e primeira metade do século XX, a existência de um
esquadrinhamento médico bastante completo.

Com o plano Beveridge e os sistemas médicos dos países mais ricos e industrializados da
atualidade, trata-se sempre de fazer funcionar esses três setores da medicina, mesmo que sejam
articulados de maneiras diferentes.


O NASCIMENTO DO HOSPITAL


Esta conferência tratará do aparecimento do hospital na tecnologia médica. A partir de que
momento o hospital foi programado como um instrumento terapêutico, instrumento de intervenção
sobre a doença e o doente, instrumento suscetível, por si mesmo ou por alguns de seus efeitos, de
produzir cura?

O hospital como instrumento terapêutico é uma invenção relativamente nova, que data do final do
século XVIII. A consciência de que o hospital pode e deve ser um instrumento destinado a curar
aparece claramente em torno de 1780 e é assinalada por uma nova prática: a visita e a observação
sistemática e comparada dos hospitais. Houve na Europa uma série de viagens, entre as quais
podemos destacar a de Howard, inglês que percorreu hospitais, prisões e lazaretos da Europa,
entre 1775/1780 e a do francês Tenon, a pedido da Academia de Ciências, no momento em que se
colocava o problema da reconstrução do Hotel-Dieu de Paris.

Essas viagens-inquérito têm várias características:

1º) Sua finalidade é definir, depois do inquérito, um programa de reforma e reconstrução dos
hospitais. Quando, na França, a Academia de Ciências decidiu enviar Tenon a diversos países da
Europa para inquirir sobre a situação dos hospitais, formulou a importante frase: "São os hospitais
existentes que devem se pronunciar sobre os méritos ou defeitos do novo hospital". Considera-se
que nenhuma teoria médica por si mesma é suficiente para definir um programa hospitalar. Além
disso, nenhum plano arquitetônico abstrato pode dar a fórmula do bom hospital. Este é um objeto
complexo de que se conhece mal os efeitos e as conseqüências, que age sobre as doenças e é
capaz de agravá-las, multiplicá-las ou atenuá-las. Somente um inquérito empírico sobre esse
novo objeto ou esse objeto interrogado e isolado de maneira nova - o hospital - será capaz de dar
idéia de um novo programa de construção dos hospitais. O hospital deixa de ser uma simples
figura arquitetônica. Ele agora faz parte de um fato médico-hospitalar que se deve estudar como
são estudados os climas, as doenças, etc.

2º) Esses inquéritos dão poucos detalhes sobre o exterior do hospital ou sobre a estrutura geral do
edifício. Não são mais descrições de monumentos, como as dos viajantes clássicos, nos séculos
XVII e XVIII, mas descrições funcionais. Howard e Tenon dão a cifra de doentes por hospital, a
relação entre o número de doentes, o número de leitos e a área útil do hospital, a extensão e altura
das salas, a cubagem de ar de que cada doente dispõe e a taxa de mortalidade e de cura.

Encontra-se, também, uma pesquisa das relações entre fenômenos patológicos e espaciais.
Tenon, por exemplo, investiga em que condições espaciais os doentes hospitalizados por
ferimentos são melhor curados e quais as vizinhanças mais perigosas para eles. Estabelece,
então, uma correlação entre a taxa de mortalidade crescente dos feridos e a vizinhança de doentes
atingidos por febre maligna, como se chamava na época. A correlação espacial ferida-febre é
nociva para os feridos. Explica também que, se parturientes são colocadas em uma sala acima de
onde estão os feridos, a taxa de mortalidade das parturientes aumenta. Não deve haver, portanto,
feridos embaixo de mulheres grávidas.


Tenon estuda o percurso, o deslocamento, o movimento no interior do hospital, particularmente as
trajetórias espaciais seguidas pela roupa branca, lençol, roupa velha, pano utilizado para tratar
ferimentos, etc. Investiga quem os transporta e onde são transportados, lavados e distribuídos.
Essa trajetória, segundo ele, deve explicar vários fatos patológicos próprios do hospital.

Analisa, também, porque a operação do trépano, uma das operações praticadas freqüentemente
nessa época, é regularmente melhor sucedida no hospital inglês Bethleem do que no hospital
francês Hôtel-Dieu. Existirão, no interior da estrutura hospitalar e na repartição dos doentes,
razões explicativas para esse fato? A questão é posta em termos de posição recíproca das salas,
sua ventilação e comunicação da roupa branca.

3º) Os autores dessas descrições funcionais da organização médico-espacial do hospital não são
mais arquitetos. Tenon é médico e, como médico, é designado pela Academia de Ciências para
visitar os hospitais. Howard não é médico, mas pertence à categoria das pessoas que são
predecessoras dos filantropos e tem uma competência quase sócio-médica. Surge, portanto, um
novo olhar sobre o hospital considerado como máquina de curar e que, se- produz efeitos
patológicos, deve ser corrigido.

Poder-se-ia dizer: isto não é novidade, pois há milênios existem hospitais feitos para curar;
pode-se unicamente afirmar que talvez se tenha descoberto, no século XVIII, que os hospitais não
curavam tão bem quanto deviam. Nada mais que um refinamento nas exigências formuladas a
respeito do instrumento hospitalar.

Gostaria de levantar várias objeções contra essa hipótese. O hospital que funcionava na Europa
desde a Idade Média não era, de modo algum, um meio de cura, não era concebido para curar.
Houve, de fato, na história dos cuidados no Ocidente, duas séries não superpostas;
encontravam-se às vezes, mas eram fundamentalmente distintas: as séries médica e hospitalar. O
hospital como instituição importante e mesmo essencial para a vida urbana do Ocidente, desde a
Idade Média, não é uma instituição médica, e a medicina é, nesta época, uma prática não
hospitalar. É importante lembrar isso para poder compreender o que houve de novidade no século
XVIII quando se constituiu uma medicina hospitalar ou um hospital médico, terapêutico. Pretendo
mostrar como essas duas séries eram divergentes, para situar a novidade do aparecimento do
hospital terapêutico.

Antes do século XVIII, o hospital era essencialmente uma instituição de assistência aos pobres.
Instituição de assistência, como também de separação e exclusão. O pobre como pobre tem
necessidade de assistência e, como doente, portador de doença e de possível contágio, é
perigoso. Por estas razões, o hospital deve estar presente tanto para recolhê-lo, quanto para
proteger os outros do perigo que ele encarna. O personagem ideal do hospital, até o século XVIII,
não é o doente que é preciso curar, mas o pobre que está morrendo. E alguém que deve ser
assistido material e espiritualmente, alguém a quem se deve dar os últimos cuidados e o último
sacramento. Esta é a função essencial do hospital. Dizia-se correntemente, nesta época, que o
hospital era um morredouro, um lugar onde morrer. E o pessoal hospitalar não era
fundamentalmente destinado a realizar a cura do doente, mas a conseguir sua própria salvação.
Era um pessoal caritativo - religioso ou leigo - que estava no hospital para fazer uma obra de
caridade que lhe assegurasse a salvação eterna. Assegurava-se, portanto, a salvação da alma do
pobre no momento da morte e a salvação do pessoal hospitalar que cuidava dos pobres. Função
de transição entre a vida e a morte, de salvação espiritual mais do que material, aliada à função de
separação dos indivíduos perigosos para a saúde geral da população. Há um texto importante para

o estudo da significação geral do hospital medieval e renascentista. Chama-se Le livre de la vie
active de l'Hôtel-Dieu, escrito por um parlamentar que foi chanceler do Hôtel-Dieu, no final do
século XV. O livro dá uma descrição da função material e espiritual do pessoal do HôtelDieu, em
um vocabulário muito metafórico, espécie de Roman de la Rose da hospitalização, mas onde se vê
claramente a mistura das funções de assistência e de transformação espiritual que o hospital deve
assegurar. O hospital permanece com essas características até o começo do século XVIII e o
Hospital Geral, lugar de internamento, onde se justapõem e se misturam doentes, loucos,
devassos, prostitutas, etc., é ainda, em meados do século XVII, uma espécie de instrumento misto
de exclusão, assistência e transformação espiritual, em que a função médica não aparece.

Quanto á prática médica, nada havia, no que a constituía e lhe servia de justificação científica, que
a predestinasse a ser uma medicina hospitalar. A medicina dos séculos XVII e XVIII era
profundamente individualista. Individualista da parte do médico, qualificado como tal ao término de
uma iniciação assegurada pela própria corporação dos médicos que compreendia conhecimento de
textos e transmissão de receitas mais ou menos secretas ou públicas. A experiência hospitalar
estava excluída da formação ritual do médico. O que o qualificava era a transmissão de receitas e
não o campo de experiências que ele teria atravessado, assimilado e integrado. Quanto á
intervenção do médico na doença, ela era organizada em torno da noção de crise. O médico devia
observar o doente e a doença, desde seus primeiros sinais, para descobrir o momento em que a
crise apareceria. A crise era o momento em que se afrontavam, no doente, a natureza sadia do
indivíduo e o mal que o atacava. Nesta luta entre a natureza e a doença, o médico devia observar
os sinais, prever a evolução, ver de que lado estaria a vitória e favorecer, na medida do possível, a
vitória da saúde e da natureza sobre a doença. A cura era um jogo entre a natureza, a doença e o
médico. Nesta luta o médico desempenhava o papel de prognosticador, árbitro e aliado da
natureza contra a doença. Esta espécie de teatro, de batalha, de luta em que consistia a cura só
podia se desenvolver em forma de relação individual entre médico e doente. A idéia de uma longa
série de observações no interior do hospital, em que se poderia registrar as constâncias, as
generalidades, os elementos particulares, etc., estava excluída da prática médica.

Vê-se, assim, que nada na prática médica desta época permitia a organização de um saber
hospitalar, como também nada na organização do hospital permitia intervenção da medicina. As
séries hospital e medicina permaneceram, portanto, independentes até meados do séc. XVIII.

Como se deu a transformação, isto é, como o hospital foi medicalizado e a medicina pôde
tornar-se hospitalar?

O primeiro fator da transformação foi não a busca de uma ação positiva do hospital sobre o doente
ou a doença, mas simplesmente a anulação dos efeitos negativos do hospital. Não se procurou
primeiramente medicalizar o hospital mas purificá-lo dos efeitos nocivos, da desordem que ele
acarretava. E desordem aqui significa doenças que ele podia suscitar nas pessoas internadas e
espalhar na cidade em que estava situado, como também a desordem econômico-social de que
ele era foco perpétuo.

Esta hipótese de que o hospital primeiramente se medicalizou por intermédio da anulação das
desordens de que era portador pode ser confirmada pelo fato da primeira grande organização
hospitalar da Europa se situar, no século XVII, essencialmente nos hospitais marítimos e militares.
O ponto de partida da reforma hospitalar foi, não o hospital civil, mas o hospital marítimo. A razão é
que o hospital marítimo era um lugar de desordem econômica. Através dele se fazia, na França,
tráfico de mercadorias, objetos preciosos, matérias raras, especiarias, etc., trazidos das colônias. O
traficante fazia-se doente e era levado para o hospital no momento do desembarque, ai
escondendo objetos que escapavam, assim, do controle econômico da alfândega. Os grandes
hospitais marítimos de Londres, Marseille ou La Rochelle eram lugares de um tráfico imenso,
contra o que as autoridades financeiras protestavam. O primeiro regulamento de hospital, que
aparece no século XVII, é sobre a inspeção dos cofres que os marinheiros, médicos e boticários
detinham nos hospitais. A partir de então, se poderá fazer a inspeção desses cofres e registrar o
que eles contêm. Se são encontradas mercadorias destinadas a contrabando, os donos serão
punidos. Surge, assim, neste regulamento, um primeiro esquadrinhamento econômico. Aparece
também, nesses hospitais marítimos e militares, o problema da quarentena, isto é, da doença
epidêmica que as pessoas que desembarcam podem trazer. Os lazaretos estabelecidos em
Marseille e La Rochelle, por exemplo, são a programação de uma espécie de hospital perfeito. Mas
trata-se, essencialmente, de um tipo de hospitalização que não procura fazer do hospital um
instrumento de cura, mas impedir que seja foco de desordem econômica ou médica.

Se os hospitais militares e marítimos tornaram-se o modelo, o ponto de partida da reorganização
hospitalar, é porque as regulamentações econômicas tornaram-se mais rigorosas no
mercantilismo, como também porque o preço dos homens tornou-se cada vez mais elevado. E
nesta época que a formação do indivíduo, sua capacidade, suas aptidões passam a ter um preço
para a sociedade.


Examine-se o exemplo do exército. Até a segunda metade do século XVII, não havia dificuldade
em recrutar soldados - bastava ter dinheiro. Encontravam-se, em toda a Europa, desempregados,
vagabundos, miseráveis disponíveis para entrar no exército de qualquer nacionalidade ou religião.
Ora, com o surgimento do fuzil, no final dó século XVII, o exército torna-se muito mais técnico, sutil
e custoso. Para se aprender a manejar um fuzil será preciso exercício, manobra, adestramento. E
assim que o preço de um soldado ultrapassará o preço de uma simples mão-de-obra e o custo do
exército tornar-se-á um importante capítulo orçamentário de todos os países. Quando se formou
um soldado não-se pode deixá-lo morrer. Se ele morrer deve ser em plena forma, como soldado,
na batalha, e não de doença. Não se deve esquecer que o índice de mortalidade dos soldados era
imenso no século XVII. Um exército austríaco, por exemplo, que saiu de Viena para a Itália perdeu
5/6 de seus homens antes de chegar ao lugar do combate. Esta perda de homens por motivo de
doença, epidemia ou deserção era um fenômeno relativamente comum.

A partir dessa mutação técnica do exército, o hospital militar tornou-se um problema técnico e
militar importante. 1º) Era preciso vigiar os homens no hospital militar para que não desertassem,
na medida em que tinham sido formados de modo bastante custoso. 2º) Era preciso curá-los,
evitando que morressem de doença. 3º) Era preciso evitar que quando curados eles fingissem
ainda estar doentes e permanecessem de cama, etc. Surge, portanto, uma reorganização
administrativa e política, um novo esquadrinhamento do poder no espaço do hospital militar. O
mesmo acontece com o hospital marítimo, a partir do momento em que a técnica da marinha
torna-se muito mais complicada e não se pode mais perder alguém cuja formação foi bastante
custosa.

Como se fez esta reorganização do hospital? Não foi a partir de uma técnica médica que o hospital
marítimo e militar foi reordenado, mas, essencialmente, a partir de uma tecnologia que pode ser
chamada política: a disciplina.

A disciplina é uma técnica de exercício de poder que foi, não inteiramente inventada, mas
elaborada em seus princípios fundamentais durante o século XVIII. Historicamente as disciplinas
existiam há muito tempo, na Idade Média e mesmo na Antigüidade. Os mosteiros são um exemplo
de região, domínio no interior do qual reinava o sistema disciplinar. A escravidão e as grandes
empresas escravistas existentes nas colônias espanholas, inglesas, francesas, holandesas, etc.,
eram modelos de mecanismos disciplinares. Pode-se recuar até a Legião Romana e, lá, também
encontrar um exemplo de disciplina. Os mecanismos disciplinares são, portanto, antigos, mas
existiam em estado isolado, fragmentado, até os séculos XVII e XVIII, quando o poder disciplinar foi
aperfeiçoado como uma nova técnica de gestão dos homens. Fala-se, freqüentemente, das
invenções técnicas do século XVIII - as tecnologias químicas, metalúrgicas, etc. - mas,
erroneamente, nada se diz da invenção técnica dessa nova maneira de gerir os homens, controlar
suas multiplicidades, utilizá-las ao máximo e majorar o efeito útil de seu trabalho e sua atividade,
graças a um sistema de poder suscetível de controlá-los. Nas grandes oficinas que começam a se
formar, no exército, na escola, quando se observa na Europa um grande progresso da
alfabetização, aparecem essas novas técnicas de poder que são uma das grandes invenções do
século XVIII.

Tomando como exemplos o exército e a escola, o que se vê aparecer nesta época?

1º) Uma arte de distribuição espacial dos indivíduos. No exército do século XVII, os indivíduos
estavam amontoados. O exército era um aglomerado de pessoas com as mais fortes e mais hábeis
na frente, nos lados e no meio as que não sabiam lutar, eram covardes, tinham vontade de fugir. A
força de um corpo de tropa era o efeito da densidade desta massa. A partir do século XVIII, ao
contrário, a partir do momento em que o soldado recebe um fuzil, se é obrigado a estudar a
distribuição dos indivíduos e a colocá-los corretamente no lugar em que sua eficácia seja máxima.
A disciplina do exército começa no momento em que se ensina o soldado a se colocar, se deslocar
e estar onde for preciso. Nas escolas do século XVII, os alunos também estavam aglomerados e o
professor chamava um deles por alguns minutos, ensinava-lhe algo, mandava-o de volta,
chamava outro, etc. Um ensino coletivo dado simultaneamente a todos os alunos implica uma
distribuição espacial. A disciplina é, antes de tudo, a análise do espaço. E a individualização pelo
espaço, a inserção dos corpos em um espaço individualizado, classificatório, combinatório.


2º) A disciplina exerce seu controle, não sobre o resultado de uma ação, mas sobre seu
desenvolvimento. No século XVII, nas oficinas de tipo corporativo, o que se exigia do companheiro
ou do mestre era que fabricasse um produto com determinadas qualidades. A maneira de
fabricá-lo dependia da transmissão de geração em geração. O controle não atingia o próprio gesto.
Do mesmo modo, se ensinava o soldado a lutar, a ser mais forte do que o adversário na luta
individual da batalha. A partir do século XVIII, se desenvolve uma arte do corpo humano.
Começa-se a observar de que maneira os gestos são feitos, qual o mais eficaz, rápido e melhor
ajustado. E assim que nas oficinas aparece o famoso e sinistro personagem do contra-mestre,
destinado não só a observar se o trabalho foi feito, mas como é feito, como pode ser feito mais
rapidamente e com gestos melhor adaptados. Aparece, no exército, o suboficial e com ele os
exercícios, as manobras e a decomposição dos gestos no tempo. O famoso Regulamento da
Infantaria Prussiana, que assegurou as vitórias de Frederico da Prússia, consiste em mecanismos
de gestão disciplinar dos corpos.

3º) A disciplina é uma técnica de poder que implica uma vigilância perpétua e constante dos
indivíduos. Não basta olhá-los às vezes ou ver se o que fizeram é conforme à regra. E preciso
vigiá-los durante todo o tempo da atividade e submetê-los a uma perpétua pirâmide de olhares. E
assim que no exército aparecem sistemas de graus que vão, sem interrupção, do general chefe até

o ínfimo soldado, como também os sistemas de inspeção, revistas, paradas, desfiles, etc., que
permitem que cada indivíduo seja observado permanentemente.
4º) A disciplina implica um registro contínuo. Anotação do indivíduo e transferência da informação
de baixo para cima, de modo que, no cume da pirâmide disciplinar, nenhum detalhe, acontecimento
ou elemento disciplinar escape a esse saber. No sistema clássico o exercício do poder era confuso,
global e descontínuo. Era o poder do soberano sobre grupos constituídos por famílias, cidades,
paróquias isto é, por unidades globais, e não um poder continuo atuando sobre o indivíduo. A
disciplina é o conjunto de técnicas pelas quais os sistemas de poder vão ter por alvo e resultado os
indivíduos em sua singularidade. E o poder de individualização que tem o exame como instrumento
fundamental. O exame é a vigilância permanente, classificatória, que permite distribuir os
indivíduos, julgá-los, medi-los, localizá-los e, por conseguinte, utilizá-los ao máximo. Através do
exame, a individualidade torna-se um elemento pertinente para o exercício do poder.

É a introdução dos mecanismos disciplinares no espaço confuso do hospital que vai possibilitar sua
medicalização. Tudo o que foi dito até agora pode explicar porque o hospital se disciplina. As
razões econômicas, o preço atribuído ao indivíduo, o desejo de evitar que as epidemias se
propaguem explicam o esquadrinhamento disciplinar a que estão submetidos os hospitais. Mas se
esta disciplina torna-se médica, se este poder disciplinar é confiado ao médico, isto se deve a uma
transformação no saber médico. A formação de uma medicina hospitalar deve-se, por um lado, à
disciplinarização do espaço hospitalar, e, por outro, â transformação, nesta época, do saber e da
prática médicas.

No sistema epistêmico ou epistemológico da medicina do século XVIII, o grande modelo de
inteligiblidade da doença é a botânica, a classificação de Lineu. Isto significa a exigência da doença
ser compreendida como um fenômeno natural. Ela terá espécies, características observáveis,
curso e desenvolvimento como toda planta. A doença é a natureza, mas uma natureza devida a
uma ação particular do meio sobre o indivíduo. O indivíduo sadio, quando submetido a certas
ações do meio, é o suporte da doença, fenômeno limite da natureza. A água, o ar, a alimentação, o
regime geral constituem o solo sobre o qual se desenvolvem em um indivíduo as diferentes
espécies de doença. De modo que a cura é, nessa perspectiva, dirigida por uma intervenção
médica que se endereça, não mais à doença propriamente dita, como na medicina da crise, mas
ao que a circunda: o ar, a água, a temperatura ambiente, o regime, a alimentação, etc. E uma
medicina do meio que está se constituindo, na medida em que a doença é concebida como um
fenômeno natural obedecendo a leis naturais.

É, portanto, o ajuste desses dois processos, deslocamento da intervenção médica e
disciplinarização do espaço hospitalar, que está na origem do hospital médico. Esses dois
fenômenos, distintos em sua origem, vão poder se ajustar com o aparecimento de uma disciplina
hospitalar que terá por função assegurar o esquadrinhamento, a vigilância, a disciplinarização do


mundo confuso do doente e da doença, como também transformar as condições do meio em que
os doentes são colocados. Se individualizará e distribuirá os doentes em um espaço onde possam
ser vigiados e onde seja registrado o que acontece; ao mesmo tempo se modificará o ar que
respiram, a temperatura do meio, a água que bebem, o regime, de modo que o quadro hospitalar
que os disciplina seja um instrumento de modificação com função terapêutica.

Admitindo-se a hipótese do duplo nascimento do hospital pelas técnicas de poder disciplinar e
médica de intervenção sobre o meio, pode-se compreender várias características que ele possui:

1º) A questão do hospital, no final do século XVIII,. é fundamentalmente a do espaço ou dos
diferentes espaços a que ele está ligado. Em primeiro lugar, onde localizar o hospital, para que não
continue a ser uma região sombria, obscura, confusa em pleno coração da cidade, para onde as
pessoas afluem no momento da morte e de onde se difundem, perigosamente, miasmas, ar
poluído, água suja, etc.? É preciso que o espaço em que está situado o hospital esteja ajustado ao
esquadrinhamento sanitário da cidade. É no interior da medicina do espaço urbano que deve ser
calculada a localização do hospital.

Em segundo lugar, é preciso não somente calcular sua localização, mas a distribuição interna de
seu espaço. Isso será feito em função de alguns critérios: se é verdade que se cura a doença por
uma ação sobre o meio, será necessário constituir em torno de cada doente um pequeno meio
espacial individualizado, específico, modificável segundo o doente, a doença e sua evolução. Será
preciso a realização de uma autonomia funcional, médica, do espaço de sobrevivência do doente.
E assim que se estabelece o princípio que não deve haver mais de um doente por leito, devendo
ser suprimido o leito dormitório onde se amontoavam até seis pessoas. Será, também, necessário
construir em torno do doente um meio manipulável que possibilite aumentar a temperatura
ambiente, refrescar o ar, orientá-lo para um único doente, etc. Daí as pesquisas. feitas para
individualizar o espaço de existência, de respiração dos doentes mesmo em salas coletivas.
Houve, por exemplo, o projeto de encapsular o leito de cada doente em um tecido que permitisse a
circulação do ar, mas bloqueasse os miasmas.

Tudo isso mostra como, em sua estrutura espacial, o hospital é um meio de intervenção sobre o
doente. A arquitetura do hospital deve ser fator e instrumento de cura. O hospital-exclusão, onde
se rejeitam os doentes para a morte, não deve mais existir. A arquitetura hospitalar é um
instrumento de cura de mesmo estatuto que um regime alimentar, uma sangria ou um gesto
médico. O espaço hospitalar é medicalízado em sua função e em seus efeitos.- Esta é a primeira
característica da transformação do hospital no final do século XVIII.

2º) Transformação do sistema de poder no interior do hospital. Até meados do século XVIII quem aí
detinha o poder era o pessoal religioso, raramente leigo, destinado a assegurar a vida cotidiana do
hospital, a salvação e a assistência alimentar das pessoas internadas. O médico era chamado para
os mais doentes entre os doentes, era mais uma garantia, uma justificação, do que uma ação real.
A visita médica era um ritual feito de modo irregular, em princípio uma vez por dia, para centenas
de doentes. O médico estava, além disso, sob a dependência administrativa do pessoal religioso
que podia inclusive despedi-lo.

A partir do momento em que o hospital é concebido como um instrumento de cura e a distribuição
do espaço torna-se um instrumento terapêutico, o médico passa a ser o principal responsável pela
organização hospitalar. A ele se pergunta como se deve construi-lo e organizá-lo, e é por este
motivo que Tenon faz seu inquérito. A partir de então, a forma do claustro, da comunidade
religiosa, que tinha servido para organizar o hospital, é banida em proveito de um espaço que deve
ser organizado medicamente. Além disso, se o regime alimentar, a ventilação, o ritmo das bebidas,
etc., são fatores de cura, o médico, controlando o regime dos doentes, assume, até certo ponto, o
funcionamento econômico do hospital, até então privilégio das ordens religiosas. Ao mesmo tempo,
a presença do médico se afirma, se multiplica no interior do hospital. O ritmo das visitas aumenta
cada vez mais durante o século XYIII. Se em 1680 havia no Hôtel-Dieu de Paris uma visita por dia,
no século XVIII - aparecem vários regulamentos que sucessivamente precisam que deve haver
uma outra visita, à noite, para os doentes mais graves; que deve haver uma outra visita para todos
os doentes; que cada visita deve durar duas horas e finalmente, em torno de 1770, que um médico


deve residir no hospital e pode ser chamado ou se locomover a .qualquer hora do dia ou da noite
para observar o que se passa.

Aparece, assim, o personagem do médico de hospital, que antes não havia. O grande médico, até

o século XVIII, não aparecia no hospital; era o médico de consulta privada, que tinha adquirido
prestigio graças a certo número de curas espetaculares. O médico que as comunidades religiosas
chamavam para fazer visitas aos hospitais era, geralmente, o pior dos médicos. O grande médico
de hospital, aquele que será mais sábio quanto maior for sua experiência hospitalar, é uma
invenção do final do século XVIII. Tenon, por exemplo, foi um médico de hospital e Pinel pôde fazer
o que fez em Bicêtre graças a sua situação de detentor do poder no hospital.
Essa inversão das relações hierárquicas no hospital, a tomada de poder pelo médico, se manifesta
no ritual da visita, desfile quase religioso em que o médico, na frente, vai ao leito de cada doente
seguido de toda a hierarquia do hospital: assistentes, alunos, enfermeiras, etc. Essa codificação
ritual da visita, que marca o advento do poder médico, é encontrada nos regulamentos de hospitais
do século XVIII, em que se diz onde cada pessoa deve estar colocada, que o médico deve ser
anunciado por uma sineta, que a enfermeira deve estar na porta com um caderno nas mãos e deve
acompanhar o médico quando ele entrar, etc.

3º) Organização de um sistema de registro permanente e, na medida do possível, exaustivo, do
que acontece. Em primeiro lugar, técnicas de identificação dos doentes. Amarra-se no punho do
doente uma pequena etiqueta que permitirá distinguí-lo mesmo se vier a morrer. Aparece em cima
do leito a ficha com o nome e a doença do paciente. Aparece, também, uma série de registros que
acumulam e transmitem informações: registro geral das entradas e saídas em que se anota o nome
do doente, o diagnóstico do médico que o recebeu, a sala em que se encontra e, depois, se morreu
ou saiu curado; registro de cada sala feito pela enfermeira-chefe; registro da farmácia em que se
diz que receitas e para que doentes foram despachadas; registro do médico que manda anotar,
durante a visita, as receitas e o tratamento prescritos, o diagnóstico, etc. Aparece, finalmente, a
obrigação dos médicos confrontarem suas experiências e seus registros - ao menos uma vez por
mês, segundo o regulamento do Hôtel-Dieu de 1785 - para ver quais são os diferentes tratamento
aplicados, os que têm melhor êxito, que médicos têm mais sucesso, se doenças epidêmicas
passam de uma sala para outra, etc.

Constitui-se, assim, um campo documental no interior do hospital que não é somente um lugar de
cura, mas também de registro, acúmulo e formação de saber. E então que o saber médico que, até

o início do século XVIII, estava localizado nos livros, em uma espécie de jurisprudência médica
encontrada nos grandes tratados clássicos da medicina, começa a ter seu lugar, não mais no livro,
mas no hospital; não mais no que foi escrito e impresso, mas no que é quotidianamente registrado
na tradição viva, ativa e atual que é o hospital. E assim que naturalmente se chega, entre
1780/1790, a afirmar que a formação normativa de um médico deve passar pelo hospital. Além de
ser um lugar de cura, este é também lugar de formação de médicos. A clínica aparece como
dimensão essencial do hospital.
Clínica aqui significa a organização do hospital como lugar de formação e transmissão de saber.
Mas vê-se também que, com a disciplinarização do espaço hospitalar que permite curar, como
também registrar, formar e acumular saber, a medicina se dá como objeto de observação um
imenso domínio, limitado, de um lado, pelo indivíduo e, de outro, pela população. Pela
disciplinarização do espaço médico, pelo fato de se poder isolar cada indivíduo, colocá-lo em um
leito, prescrever-lhe um regime, etc., pretende-se chegar a uma medicina individualizajite.
Efetivamente, é o indivíduo que será observado, seguido, conhecido e curado. O indivíduo emerge
como objeto do saber e da prática médicos. Mas, ao mesmo tempo, pelo mesmo sistema do
espaço hospitalar disciplinado se pode observar grande quantidade de indivíduos. Os registros
obtidos quotidianamente, quando confrontados entre os hospitais e nas diversas regiões, permitem
constatar os fenômenos patológicos comuns a toda a população.

O indivíduo e a população são dados simultaneamente como objetos de saber e alvos de
intervenção da medicina, graças à tecnologia hospitalar. A redistribuição dessas duas medicinas
será um fenômeno próprio do século XIX. A medicina que se forma no século XVIII é tanto uma


medicina do indivíduo quanto da população.

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