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segunda-feira, 15 de abril de 2013

Microfísica do Poder - Michel Foucault - parte final


SOBRE A HISTÓRIA DA SEXUALIDADE

Alam Grosrichard:

Abordemos a História da Sexualidade, de que conhecemos o primeiro volume e que, pelo que você
anuncia, deve ter seis.

Michel Foucault:

Gostaria primeiro de dizer que estou realmente contente em estar aqui com vocês. Foi um pouco
por isso que dei esta forma a este livro. Até o momento, eu havia empacotado as coisas, não havia
economizado citações, referências e havia publicado tijolos um pouco pesados, que quase nunca
obtiveram resposta. Daí a idéia deste livro-programa, tipo queijo gruyère, cheio de buracos para
que neles possamos nos alojar. Não quis dizer "Eis o que penso", pois ainda não estou muito
seguro quanto ao que formulei. Mas quis ver se aquilo podia ser dito e até que ponto podia ser dito.
Certamente, há o risco disto ser muito decepcionante para vocês. O que existe de incerto no que
escrevi é certamente incerto. Não há artifícios; não há retóricas. E não estou certo quanto ao que
escreverei nos próximos volumes. Por isso queria saber qual foi o efeito produzido por este
discurso hipotético, geral. Acho que é a primeira vez que encontro pessoas que querem participar
do jogo que proponho em meu livro.



O Dispositivo

A.G.:

Sem dúvida. Comecemos com o título geral deste programa: História da Sexualidade. De que tipo
é este novo objeto histórico que você chama "a sexualidade"? Evidentemente não se trata da
sexualidade tal como os botânicos ou os biólogos tematizavam ou tematizam, objeto do historiador
das ciências; nem da sexualidade tal como a entende a história tradicional das idéias ou dos
costumes, que você contesta quando a "hipótese repressiva" é colocada em questão; nem mesmo
das práticas sexuais, que os historiadores estudam atualmente através de novos métodos e meios
técnicos de análise. Você fala de um "dispositivo de sexualidade". Para você, qual é o sentido e a
função metodológica deste termo: dispositivo?

M.F.:

Através deste termo tento demarcar, em primeiro lugar, um conjunto decididamente heterogêneo
que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis,
medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em
suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode
estabelecer entre estes elementos.

Em segundo lugar, gostaria de demarcar a natureza da relação que pode existir entre estes
elementos heterogêneos. Sendo assim, tal discurso pode aparecer como programa de uma
instituição ou, ao contrário, como elemento que permite justificar e mascarar uma prática que
permanece muda; pode ainda funcionar como reinterpretação desta prática, dando-lhe acesso a
um novo campo de racionalidade. Em suma, entre estes elementos, discursivos ou não, existe um
tipo de jogo, ou seja, mudanças de posição, modificações de funções, que também podem ser
muito diferentes.

Em terceiro lugar, entendo dispositivo como um tipo de formação que, em um determinado
momento histórico, teve como função principal responder a uma urgência. O dispositivo tem,


portanto, uma função estratégica dominante. Este foi o caso, por exemplo, da absorção de uma
massa de população flutuante que uma economia de tipo essencialmente mercantilista achava
incômoda: existe ai um imperativo estratégico funcionando como matriz de um dispositivo, que
pouco a pouco tornou-se o dispositivo de controle-dominação da loucura, da doença mental, da
neurose.

Gérard Wajeman:

Um dispositivo define-se portanto por uma estrutura de elementos heterogêneos, mas também por
um certo tipo de gênese?

M.F.:

Sim. E vejo dois momentos essenciais nesta gênese. Um primeiro momento é o da predominância
de um objetivo estratégico. Em seguida, o dispositivo se constitui como tal e continua sendo
dispositivo na medida em que engloba um duplo processo: por um lado, processo de
sobredeterminação funcional, pois cada efeito, positivo ou negativo, desejado ou não, estabelece
uma relação de ressonância ou de contradição com os outros, e exige uma rearticulação, um
reajustamento dos elementos heterogêneos que surgem dispersamente; por outro lado, processo
de perpétuo preenchimento estratégico. Tomemos o exemplo do aprisionamento, dispositivo que
fez com que em determinado momento as medidas de detenção tivessem aparecido como o
instrumento mais eficaz, mais racional que se podia aplicar ao fenômeno da criminalidade. O que
isto produziu? Um efeito que não estava de modo algum previsto de antemão, que nada tinha a ver
com uma astúcia estratégica produzida por uma figura meta ou trans-histórica que o teria
percebido e desejado. Este efeito foi a constituição de um meio delinqüente, muito diferente
daquela espécie de viveiro de práticas e indivíduos ilegalistas que se podia encontrar na sociedade
setecentista. O que aconteceu? A prisão funcionou como filtro, concentração, profissionalização,
isolamento de um meio delinqüente. A partir mais ou menos de 1830, assiste-se a uma reutilização
imediata deste efeito involuntário e negativo em uma nova estratégia, que de certa forma ocupou o
espaço vazio ou transformou o negativo em positivo: o meio delinqüente passou a ser reutilizado
com finalidades políticas e econômicas diversas (como a extração de um lucro do prazer, com a
organização da prostituição). E isto que chamo de preenchimento estratégico do dispositivo.

A. G.:
Em As Palavras e as Coisas, e A Arqueologia do Saber, você falava em épistémè, saber,
formações discursivas. Hoje, você fala mais em dispositivos, disciplinas. Estes conceitos
substituem os precedentes, que você estaria abandonando no momento? Ou eles os reduplicam
em outro registro? Deve-se ver aí uma mudança na idéia que você tem a respeito do uso a ser
feito de seus livros? Você escolhe os objetos, a maneira de abordá-los, os conceitos para
apreendê-los, em função de novos objetivos, que hoje seriam as lutas a desenvolver, um mundo a
transformar, mais que a interpretar? Digo isto para que as questões que serão colocadas não
fiquem á margem do que você quis fazer.

M.F.:

Talvez também seja bom que elas fiquem à margem: isto provaria que minhas colocações estão à
margem. Mas você tem razão em colocar a questão. A respeito do dispositivo, encontro-me diante
de um problema que ainda não resolvi. Disse que o dispositivo era de natureza essencialmente
estratégica, o que supõe que trata-se no caso de uma certa manipulação das relações de força, de
uma intervenção racional e organizada nestas relações de força, seja para desenvolvê-las em
determinada direção, seja para bloqueá-las, para estabilizá-las, utilizá-las, etc... O dispositivo,
portanto, está sempre inscrito em um jogo de poder, estando sempre, no entanto, ligado a uma ou
a configurações de saber que dele nascem mas que igualmente o condicionam. E isto, o
dispositivo: estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por
eles. Em As Palavras e as Coisas, querendo fazer uma história da epistémè, permanecia em um
impasse. Agora, gostaria de mostrar que o que chamo de dispositivo é algo muito mais geral que
compreende a épistémè. Ou melhor, que a épistémè é um dispositivo especificamente discursivo,


diferentemente do dispositivo, que é discursivo e não discursivo, seus elementos sendo muito mais
heterogêneos.
Jacques-Alain Miller:
O que você coloca como dispositivo certamente é mais heterogêneo que o que você chamava


épistémè.

M.F.:
Certamente.
J.-A.M.:
Você misturava ou ordenava nas suas épistémè enunciados de tipo muito diferente, enunciados de


filósofos, de cientistas, enunciados de autores obscuros e de práticos que teorizavam. Daí a
surpresa que você causou. Mas se tratava sempre de enunciados.
M.F.:
Certamente.


J.-A.M.:
Com os dispositivos, você quer ir além do discurso. Mas estes novos conjuntos, que reúnem muitos
elementos articulados, permanecem neste sentido conjuntos significantes. Não vejo bem em que
medida você englobaria o não discursivo.


M.F.:


Para dizer: eis um dispositivo, procuro quais foram os elementos que intervieram em uma
racionalidade, em uma organização...
J.-A.M.:
Não se deve dizer racionalidade, senão se recairia na épistémè.
M.F.:
Voltando um pouco no tempo, eu definiria épistémè como o dispositivo estratégico que permite


escolher, entre todos os enunciados possíveis, aqueles que poderão ser aceitáveis no interior, não
digo de uma teoria científica, mas de um campo de cientificidade, e a respeito de que se poderá
dizer: é falso, é verdadeiro. E o dispositivo que permite separar não o verdadeiro do falso, mas o
inqualificável cientificamente do qualificável.

Guy Le Gaufey:

Mas para voltar ao não discursivo, além dos enunciados, o que existe em um dispositivo que não
seja "instituição"?
M.F.:
Geralmente se chama instituição todo comportamento mais ou menos coercitivo, aprendido. Tudo


que em uma sociedade funciona como sistema de coerção, sem ser um enunciado, ou seja, todo o
social não discursivo é a instituição.
J.-A .M.:



A instituição está evidentemente ao nível do discursivo.

M.F.:

Como quiser, mas em relação ao dispositivo, não é muito importante dizer: eis o que é discursivo,
eis o que não é. Entre o programa arquitetural da Escola Militar feito por Gabriel e a própria
contração da Escola Militar, o que é discursivo, o que é institucional? Isto só me interessará se o
edifício não estiver conforme ao programa. Mas não creio que seja muito importante fazer esta
distinção, a partir do momento em que meu problema não é lingüístico.

A Analítica do Poder

A.G.:

Em seu livro, você estuda a constituição e a história de um dispositivo: o dispositivo da
sexualidade. Esquematizando muito, pode-se dizer que por um lado ele se articula com o que você
chama o poder, de que ele é o meio ou a expressão. E, por outro lado, que ele talvez produza um
objeto imaginário, historicamente datável, o sexo. A partir dai, delineiam-se duas grandes séries de
questões: sobre o poder e sobre o sexo, em sua relação com o dispositivo de sexualidade. Em
relação ao poder, você coloca dúvidas a respeito das concepções que, tradicionalmente, dele se
fez. E o que você propõe não é tanto uma nova teoria do poder, mas uma "analítica do poder".
Como esta "analítica" permite que você esclareça o que você denomina aqui de "poder", enquanto
ligado ao dispositivo de sexualidade?

M. F:
O poder não existe. Quero dizer o seguinte: a idéia de que existe, em um determinado lugar, ou
emanando de um determinado ponto, algo que é um poder, me parece baseada em uma análise
enganosa e que, em todo caso, não dá conta de um número considerável de fenômenos. Na
realidade, o poder é um feixe de relações mais ou menos organizado, mais ou menos
piramidalizado, mais ou menos coordenado. Portanto, o problema não é de constituir uma teoria do
poder que teria por função refazer o que um Boulainvilliers ou um Rousseau quiseram fazer. Todos
os dois partem de um estado originário em que todos os homens são iguais, e depois, o que
acontece? Invasão histórica para um, acontecimento mítico-jurídico para outro, mas sempre
aparece a idéia de que, a partir de um momento, as pessoas não tiveram mais direitos e surgiu o
poder. Se o objetivo for construir uma teoria do poder, haverá sempre a necessidade de
considerá-lo como algo que surgiu em um determinado ponto, em um determinado momento, de
que se deverá fazer a gênese e depois a dedução. Mas se o poder na realidade é um feixe aberto,
mais ou menos coordenado (e sem dúvida mal coordenado) de relações, então o único problema é
munir-se de princípios de análise que permitam uma analítica das relações do poder.

A G.:

Entretanto, na p. 20 do seu livro, você se propõe a estudar, evocando o que se passa depois do
Concilio de Trento, "através de que canais, fluindo através de que discursos o poder consegue
chegar às mais tênues e mais individuais das condutas. Que caminhos lhe permitem atingir as
formas raras ou quase imperceptíveis do desejo", etc... A linguagem que você utiliza aqui faz com
que se pense em um poder que partiria de um centro único e que, pouco a pouco, de acordo com
um processo de difusão, de contágio, de cancerização, alcançaria o que há de mais ínfimo e
periférico. Ora, parece-me que, quando você fala, em outro lugar, da multiplicação das disciplinas,
você mostra o poder partindo de pequenos lugares, organizando-se em função de pequenas
coisas, para finalmente se concentrar. Como conciliar estas duas interpretações do poder: uma que

o descreve como algo que se exerce de cima para baixo, do centro para a periferia, do importante
para o ínfimo, e a outra, que parece ser o inverso?
M.F.:


Ouvindo a sua leitura, moralmente enrubesci até as orelhas, dizendo a mim mesmo: é verdade,
utilizei esta metáfora do ponto que, pouco a pouco, irradia... Mas foi em um caso muito preciso: o
da Igreja depois do Concílio de Trento. De modo geral, penso que é preciso ver como as grandes
estratégias de poder se incrustam, encontram suas condições de exercício em micro-relações de
poder. Mas sempre há também movimentos de retorno, que fazem com que as estratégias que
coordenam as relações de poder produzam efeitos novos e avancem sobre domínios que, até o
momento, não estavam concernidos. Assim, até a metade do século XVI, a Igreja controlou a
sexualidade de maneira bastante frouxa: a obrigação do sacramento da confissão anual, com as
confissões dos diferentes pecados, garantia que não se tivesse histórias imorais para contar ao
padre. A partir do Concilio de Trento, por volta de meados do século XVI, assistiu-se ao
aparecimento, ao lado das antigas técnicas de confissão, de uma série de procedimentos novos
que foram aperfeiçoados no interior da instituição eclesiástica, com objetivos de purificação e de
formação do pessoal eclesiástico: para os seminários e conventos, elaboraram-se técnicas
minuciosas de explicitação discursiva da vida cotidiana, de auto-exame, de confissão, de direção
de consciência, de relação dirigidos-diretores. Foi isto que se tentou injetar na sociedade, através
de um movimento, é verdade, de cima para baixo.

J.-A.M.:

Pierre Legendre se interessa por isto.

M.F.:

Ainda não li seu último livro, mas o que ele fez em L'Amourdu Censeur me parece importante. Ele
descreve um processo que existe realmente. Mas não creio que a produção das relações de poder
se laça assim, somente de cima para baixo.

A.G.:

Você acha, então, que esta representação do poder exercendo-se de cima para baixo e de
maneira repressiva ou negativa é uma ilusão? Não se trata de uma ilusão necessária e produzida
pelo próprio poder? Em todo caso, é uma ilusão bastante constante, e é contra este tipo de poder
que as pessoas lutaram e acreditaram poder mudar as coisas.

Gérard MilIer:

Mesmo admitindo-se que o poder, em escala social, não proceda de cima para baixo mas que se
analise como um feixe de relações, será que os micro-poderes não funcionam sempre de cima
para baixo?

M.F.:

De acordo. Na medida em que as relações de poder são uma relação desigual e relativamente
estabilizada de forças, é evidente que isto implica um em cima e um em baixo, uma diferença de
potencial.

A.G.:

Sempre se tem necessidade de alguém que esteja embaixo.

M.F.:

De acordo, mas o que eu quis dizer é que, para que haja um movimento de cima para baixo, é
preciso que haja ao mesmo tempo uma capilaridade de baixo para cima. Tomemos um exemplo
simples: as relações de poder de tipo feudal. Entre os servos, ligados à terra, e o senhor, que
extraia deles uma renda, existia uma relação local, relativamente autônoma, quase um tête à tête.
Para que esta relação se mantivesse, era necessário que houvesse, por detrás, uma certa
piramidalização do sistema feudal. Mas é certo que o poder dos reis da França e os aparelhos de


Estado que eles pouco a pouco constituíram a partir do século XI tiveram como condição de
possibilidade o enraizamento nos comportamentos, nos corpos, nas relações de poder locais, em
que não caberia de forma alguma ver uma simples projeção do poder central.

J.-A.M.:

O que é, então, esta relação do poder? Não é simplesmente a obrigação...

M.F.:

Não! Eu queria justamente responder à questão que me foi colocada sobre o poder de cima para
baixo, que seria "negativo". Todo o poder, seja ele de cima para baixo ou de baixo para cima, e
qualquer que seja o nível em que é analisado, ele é efetivamente representado, de maneira mais
ou menos constante nas sociedades ocidentais, sob uma forma negativa, isto é, sob uma forma
jurídica. E característico de nossas sociedades ocidentais que a linguagem do poder seja o direito
e não a magia ou a religião, etc.

A.G.:

Mas a linguagem amorosa, por exemplo, tal como ela se formula na literatura cortesã e em toda a
história do amor no Ocidente, não é uma linguagem jurídica. Entretanto, ela fala o tempo todo do
poder, está sempre recorrendo a relações de dominação e servidão. Veja por exemplo, o termo

maitresse.

M.F.:

De fato a este respeito Duby tem uma explicação interessante. Ele liga o aparecimento da literatura
cortesã à existência, na sociedade medieval, dos juvenes: os juvenes eram jovens, descendentes
que não tinham direito à herança e que deveriam viver de certa forma à margem da sucessão
genealógica linear característica do sistema feudal. Eles esperavam portanto que houvesse mortes
entre os herdeiros masculinos legítimos para que uma herdeira se visse na obrigação de arranjar
um marido, capaz de encarregar-se da herança e das funções ligadas ao chefe de família. Os
juvenes eram, portanto, um excesso turbulento, produzido necessariamente pelo modo de
transmissão do poder e da propriedade. Para Duby, a literatura cortesã vem daí: era uma espécie
de combate fictício entre os juvenes e o chefe de família ou o senhor, ou mesmo o rei, tendo como
objetivo a mulher já apropriada. No intervalo das guerras, no lazer das longas noites de inverno,
tecia-se em torno da mulher estas relações cortesãs, que no fundo são o inverso das relações de
poder, pois se trata sempre de um cavaleiro chegando em um castelo para roubar a mulher do
senhor da região. Havia portanto uma instabilidade, um desenfreamento tolerado, produzido pelas
próprias instituições e que originaram este combate real-fictício que se encontra nos temas
cortesãos. E uma comédia em torno das relações do poder, que funciona nos interstícios do poder,
mas que não é uma verdadeira relação de poder.

A.G.:

Talvez, mas a literatura cortesã veio, por intermédio dos trovadores, da civilização
árabe-muçulmana. Ora, o que Duby diz também vale para ela? Mas voltemos à questão do poder,
em sua relação com o dispositivo.

Uma estratégia sem estrategista

Catherine Millot:

Falando dos dispositivos de conjunto, você escreveu na p. 125 que "lá, a lógica ainda é
perfeitamente clara, as miras decifráveis e, contudo, acontece não haver mais ninguém para tê-las
concebido e poucos para formulá-las: caráter implícito das grandes estratégias anônimas, quase


mudas, que coordenam táticas loquazes, cujos inventores ou responsáveis quase nunca são
hipócritas"... Você define aí algo como uma estratégia sem sujeito. Como isto é concebivel?

M.F.:

Tomemos um exemplo. A partir dos anos 1825-1830, vemos aparecer localmente, e de uma forma
que é realmente loquaz, estratégias bem definidas para fixar os operários das primeiras industrias
pesadas ao próprio local em que eles trabalham. Tratava-se de evitar a mobilidade do emprego.
Em Mulhouse, ou no norte da França, elaboram-se assim técnicas variadas: pressiona-se para
que as pessoas se casem, fornece-se alojamentos, constrói-se cidades operárias, pratica-se este
sistema sutil do endividamento, de que Marx fala, que consiste em exigir o pagamento do aluguel
adiantado sendo que o salário só é pago no fim do mês. Existem também os sistemas de caixa
econômica, de endividamento junto a merceeiros ou vendedores de vinho que são agentes do
patrão, etc. Pouco a pouco se forma em torno disto tudo um discurso, o da filantropia, o discurso da
moralização da classe operária. Depois, as experiências se generalizam, graças a uma rede de
instituições, de sociedades que propõem, conscientemente, programas de moralização da classe
operária. Aí se vai enxertar o problema do trabalho feminino, da escolarização das crianças e da
relação entre eles. Entre a escolarização das crianças, que é uma medida central, tomada a nível
parlamentar, e esta ou aquela forma de iniciativa totalmente local tomada a respeito, por exemplo,
do alojamento dos operários, podem-se encontrar todos os tipos de mecanismos de apoio
(sindicatos patronais, câmaras de comércio, etc.) que inventam, modificam, reajustam, segundo as
circunstâncias do momento e do lugar, a ponto de se obter uma estratégia global, coerente,
racional. Entretanto, não é possível mais dizer quem a concebeu.

C.M.:

Mas então, qual é o papel da classe social?

M.F.:

Chegamos ao centro do problema e sem dúvida das obscuridades de meu próprio discurso. Uma
classe dominante não é uma abstração, mas também não é um dado prévio. Que uma classe se
torne dominante, que ela assegure sua dominação e que esta dominação se reproduza, estes são
efeitos de um certo número de táticas eficazes, sistemáticas, que funcionam no interior de grandes
estratégias que asseguram esta dominação. Mas entre a estratégia que fixa, reproduz, multiplica,
acentua as relações de força e a classe dominante, existe uma relação recíproca de produção.
Pode-se, portanto, dizer que a estratégia de moralização da classe operária é a da burguesia.
Pode-se mesmo dizer que é a estratégia que permite à classe burguesa ser a classe burguesa e
exercer sua dominação. Mas não creio que se possa dizer que foi a classe burguesa, como um
sujeito ao mesmo tempo real e fictício, que inventou e impôs à força, ao nível de sua ideologia ou
de seu projeto econômico, esta estratégia à classe operária.

J.-A.M.:

Não existe sujeito, mas isto se finaliza...

M.F.:

Isto se finaliza em relação a um objetivo.

J.-A.M.:

Que, portanto, se impôs...

M.F.:...

que acabou por se impor. A moralização da classe operária não foi imposta por Guizot através de
suas legislações, nem por Dupin através de seus livros. Não foram também os sindicatos patronais.


Entretanto, ela se realizou, porque respondia ao objetivo urgente de dominar uma mão-de-obra
flutuante e vagabunda. Portanto, o objetivo existia e a estratégia desenvolveu-se, com uma
coerência cada vez maior, mas sem que se deva supor um sujeito detentor da Lei, enunciando-a
sob a forma de um "você deve, você não deve".

G.M.:

Mas o que diferencia os sujeitos implicados nesta estratégia? Não se deve distinguir, por exemplo,
aqueles que a produzem daqueles que apenas sofrem sua ação? Mesmo se suas iniciativas
acabam freqüentemente convergindo, estão eles todos misturados ou podem ser singularizados? E
em que termos?

A.G..:

Ou ainda: seu modelo seria o da Fábula das Abelhas, de Mandeville?

M.F.:

Eu não diria isto, mas tomarei um outro exemplo: o da constituição de um dispositivo médico-legal
em que, por um lado, a psiquiatria foi utilizada no domínio penal, mas por outro foram multiplicados
os controles, as intervenções de tipo penal sobre condutas ou comportamentos de pessoas
normais. Isto conduziu a este enorme edifício, ao mesmo tempo teórico e legislativo, construído em
torno da questão da degenerescência e dos degenerados. O que aconteceu neste caso? Todos os
tipos de sujeito intervieram: o pessoal administrativo, por exemplo, por razões de ordem pública,
mas principalmente os médicos e os magistrados. Pode-se falar de interesse? No caso dos
médicos, por que eles quiseram intervir tão diretamente no domínio penal? Eles tinham acabado de
retirar a psiquiatria, não sem dificuldade, desta espécie de magma que era a prática do
internamento, em que se estava em pleno "médico-legal", já que não se tratava nem de médico
nem de legal. Os alienistas estão acabando de separar a teoria e a prática da alienação mental e
de definir sua especificidade, quando dizem: "existem crimes que nos concernem, estas pessoas
são nossas!" Onde está seu interesse médico? Dizer que existe um tipo de dinâmica imperialista da
psiquiatria, que quis anexar a ela o crime, submetê-lo à sua racionalidade, não leva a nada. Eu
estaria tentado a dizer que, de fato, havia nisto uma necessidade (que não se precisa
necessariamente chamar de interesse) ligada à própria existência de uma psiquiatria que se tornou
autônoma, mas que, a partir de então, devia fundar sua intervenção fazendo-se reconhecer como
parte da higiene pública. E não podia fundar esta intervenção simplesmente sobre o fato de que ela
tinha uma doença (a alienação mental) a desfazer. Era também preciso que ela tivesse um perigo a
combater, como o de uma epidemia, de uma falta de higiene, etc. Ora, como demonstrar que a
loucura é um perigo, senão mostrando que existem casos extremos em que uma loucura - não
aparente aos olhos do público, não se manifestando previamente por sintomas algum exceto por
algumas minúsculas fissuras, algumas pequenas manifestações que só poderiam ser percebidos
pelo observador altamente exercitado - pode bruscamente explodir em um crime monstruoso? Foi
assim que se construiu a monomania homicida. A loucura é um perigo temível exatamente por não
ser previsível pelas pessoas de bom senso que pretendem poder conhecer a loucura. Só um
médico pode demarcá-la: eis a loucura transformada em objeto exclusivo do médico, cujo direito
de intervenção é no mesmo momento fundado. No caso dos magistrados, pode-se dizer que é
uma outra necessidade que fez com que, apesar de suas reticências, eles aceitassem a
intervenção dos médicos. Ao lado do edifício do Código, a máquina punitiva que foi colocada em
suas mãos a prisão - só podia funcionar eficazmente se houvesse intervenção sobre a
individualidade do indivíduo, sobre o criminoso e não sobre o crime, para transformá-lo e
emendá-lo. Mas, a partir do momento em que havia crimes dos quais não se percebia nem a razão
nem os motivos, não se podia mais punir. Punir alguém que não se conhece torna-se impossível
em uma penalidade que não é mais a do suplício mas a do enclausuramento. (Isto é tão verdadeiro
que se ouviu outro dia, na boca de alguém importante, esta frase colossal, que devia ter deixado
todo mundo de boca aberta: "Vocês não podem matar Patrick Henry. Vocês não o conhecem". O
que é isto? Se se tivesse conhecido P. Henry, ele teria sido morto?) Os magistrados, portanto, para
poderem ligar um código (que continuava sendo código da punição, da expiação) e uma prática
punitiva que passou a ser a da correção e da prisão, foram obrigados a lançar mão da psiquiatria.


Temos então necessidades estratégicas que não são exatamente interesses...

G.M.: Você substitui o interesse pelo problema (para os médicos) e pela necessidade (para os
magistrados). A vantagem é mínima e as coisas continuam muito imprecisas.

G.L.G.:

Parece-me que o sistema metafórico que comanda sua análise é o do organismo, que permite
eliminar a referência a um sujeito pensante e desejante. Um organismo vivo tende sempre a
perseverar em seu ser e todos os meios lhe são adequados para conseguir atingir este objetivo.

M.F.:

Não, não concordo de forma alguma. Primeiro, nunca utilizei a metáfora do organismo. Além disso,

o problema não é de "se manter". Quando falo de estratégia, levo o termo a sério: para que uma
determinada relação de forças possa não somente se manter mas se acentuar, se estabilizar e
ganhar terreno, é necessário que haja uma manobra. A psiquiatria manobrou para conseguir ser
reconhecida como parte da higiene pública. Não é um organismo, assim como a magistratura não o
é, e não vejo como o que digo implica que sejam organismos.
A. G.:
Em contrapartida, é impressionante que tenha sido durante o século XIX que se constituiu uma
teoria da sociedade concebida a partir do modelo de um organismo, com Auguste Comte, por
exemplo. Mas deixemos isto de lado. Os exemplos que você nos deu, para explicar como concebia
esta "estratégia sem sujeito" foram todos tirados do século XIX, época em que a sociedade e o
Estado já estão muito centralizados e tecnificados. Será tão claro em relação a períodos
anteriores?

J.-A.M.:

Ou seja, é exatamente no momento em que a estratégia parece ter um sujeito que Foucault
demonstra que ela não tem sujeito...

M.F.:

Em última análise, eu até assinaria o que você diz. Outro dia eu ouvia alguém falar do poder - é
moda. Ele constatava que esta famosa monarquia absoluta francesa na realidade não tinha nada
de absoluto. Na verdade, tratava-se de ilhas de poder disseminadas, umas funcionando através de
regiões geográficas, outras através de relações piramidais, outras como corpo ou segundo as
influências familiares, redes de aliança, etc. Pode-se entender porque as grandes estratégias não
podiam aparecer em um tal sistema: a monarquia francesa se dotara de um aparelho administrativo
muito forte mas muito rígido, que deixava escapar muitas coisas. Havia certamente um Rei,
representante manifesto do poder, mas na realidade o poder não era centralizado, ele não se
exprimia em grandes estratégias ao mesmo tempo sutis, flexíveis e coerentes. Por outro lado, no
século XIX, através de todo tipo de mecanismos e de instituições - parlamentarismo, difusão da
informação, edição, exposições universais universidade, etc. - o poder burguês pôde elaborar
grandes estratégias, sem que por este motivo se precise supor um sujeito.

J-A.M.:

Afinal de contas, no campo teórico o velho "espaço transcendental sem sujeito" nunca meteu medo
a muita gente, mesmo que dos lados. do Temps Modernes lhe tenham reprovado, na época de As
palavras e as Coisas, a ausência de todo tipo de causalidade nestes movimentos de mutação que
faziam você passar de uma épistémè a uma outra. Mas talvez exista uma dificuldade quando se
trata, não mais do campo teórico, mas do campo prático. Existem aí relações de força e combates.
Necessariamente se coloca a questão: Quem combate contra quem? Neste caso, você não pode
escapar da questão dos sujeitos.


M.F.:
Certamente, e é isto que me preocupa. Não sei bem como solucionar este problema. Mas quando
se considera que o poder deve ser analisado em termos de relações de poder, é possível
apreender, muito mais que em outras elaborações teóricas, a relação que existe entre o poder e a
luta, em particular a luta de classes. O que me impressiona, na maioria dos textos, senão de Marx
ao menos dos marxistas, é que sempre se silencia (salvo talvez em Trotsky) o que se entende por
luta, quando se fala de luta de classe. Neste caso, o que luta quer dizer? Afrontamento dialético?

Combate político pelo poder? Batalha econômica? Guerra? A sociedade civil permeada pela luta
de classe seria a guerra prolongada por outros meios?
Dominique Colas:
Seria preciso talvez levar em conta a instituição partido, que não se pode assimilar ás outras, que


não têm por objetivo tomar o poder...
A.G.:
Além disso, de qualquer forma os marxistas colocam esta questão: quem são nossos amigos,


quem são os inimigos? Questão que tende a determinar, no campo das lutas, as linhas reais de
afrontamento...
J.-A.M.:
Afinal, quem são para você os sujeitos que se opõem?


M.F.:
O que vou dizer não passa de uma hipótese: todo mundo a todo mundo. Não há, dados de forma
imediata, sujeitos que seriam o proletariado e a burguesia. Quem luta contra quem? Nós lutamos
todos contra todos. Existe sempre algo em nós que luta contra outra coisa em nós.


J.-A.M.:
Isto quer dizer que só haveria coalizões transitórias, sendo que algumas desmoronariam


imediatamente, enquanto outras durariam: mas, finalmente, o elemento primeiro e último são os
indivíduos?
M.F.:
Sim, os indivíduos e mesmo os sub-indivíduos.
J.-A.M.:
Os sub-individuos?
M.F.:
Por que não?


G. M.:
Sobre esta questão do poder, se eu quisesse dar minha impressão de leitor, diria em certos
momentos: está bem feita demais.
M.F.:



Foi isto que a Nouveile Critique disse a respeito do livro precedente: está bem feita demais para
que não esconda mentiras...

G.M.:

Quero dizer: que estas estratégias são bem feitas demais. Não penso que escondam mentiras,
mas, de tanto ver as coisas tão bem ordenadas, arranjadas, ao nível local, regional, nacional,
durante séculos inteiros, me pergunto: será que não havia um espaço para ... a bagunça?

M.F.:

Concordo inteiramente. A magistratura e a psiquiatria se encontram, mas através de que bagunça,
de que fracassos! Mas, para mim, é como se estivesse com uma batalha: quando não se quer ater
à descrição, quando se quer tentar explicar a vitória ou a derrota, é bastante conveniente que se
coloquem os problemas em termos de estratégia e que se pergunte: por que funcionou? Por que
teve continuidade. Eis porque analiso as coisas por este lado, o que dá a impressão de que é belo
demais para ser verdadeiro.

O sexo em jogo

A.G.:

Mas falemos agora do sexo. Você faz dele um objeto histórico, em certo sentido engendrado pelo
dispositivo de sexualidade.

J.-A.M.:

Seu livro precedente tratava da delinqüência. A sexualidade é, aparentemente, um objeto de tipo
diferente. A menos que seja mais divertido mostrar que é semelhante . . O que você prefere?

M.F.: Eu diria: tentemos ver se não seria semelhante. E a aposta deste jogo. Se ele tem seis
volumes, é porque é um jogo! Este livro foi o único que escrevi sem saber previamente qual seria o
título. E até o último momento eu não havia encontrado. Na falta de melhor, coloquei História da
Sexualidade. O primeiro título, que eu havia mostrado. a François Regnault, era Sexo e Verdade.
Desistimos dele, mas era este o meu problema: o que aconteceu no Ocidente que faz com que a
questão da verdade tenha sido colocada em relação ao prazer sexual? E este é meu problema
desde a História da Loucura. Historiadores me dizem: "está certo, mas por que você não estudou
as diferentes doenças mentais que se encontram nos séculos XVII e XVIII? Por que você não fez
uma história das epidemias de doenças mentais? Não consigo fazê-los entender que, na verdade,
tudo isto é muito interessante, mas que não é o meu problema. Em relação à loucura, meu
problema era saber como se pôde fazer a questão da loucura funcionar no sentido dos discursos
de verdade, isto é, dos discursos tendo estatuto e função de discursos verdadeiros. No Ocidente,
trata-se do discurso científico. Foi sob este ângulo que quis abordar a sexualidade.

A.G.:

Como você define o que você chama de sexo em relação a este dispositivo de sexualidade?
Trata-se de um objeto imaginário, um fenômeno, uma ilusão?

M.F.:

Vou dizer a você como as coisas aconteceram. Houve muitas redações sucessivas. No começo, o
sexo era um dado prévio e a sexualidade aparecia como uma espécie de formação ao mesmo
tempo discursiva e institucional, articulando-se com o sexo, recobrindo-o e mesmo o ocultando.
Esta era a primeira linha de análise. Mostrei depois o manuscrito a algumas pessoas e senti que
não era satisfatório. Resolvi então inverter tudo. Era um jogo, pois não estava muito seguro... Mas


dizia a mim mesmo: no fundo, será que o sexo, que parece ser uma instância dotada de leis,
coações, a partir de que se definem tanto o sexo masculino quanto o feminino, não seria ao
contrario algo que poderia ter sido produzido pelo dispositivo de sexualidade? O discurso de
sexualidade não se aplicou inicialmente ao sexo, mas ao corpo, aos órgãos sexuais, aos prazeres,
às relações de aliança, às relações inter-individuais, etc...

J.-A.M.:
Um conjunto heterogêneo...
M.F.:
Sim, um conjunto heterogêneo que estava recoberto pelo dispositivo de sexualidade que produziu,


em determinado momento, como elemento essencial de seu próprio discurso e talvez de seu
próprio funcionamento, a idéia de sexo.
G.M.:
Esta idéia de sexo não é contemporânea da instauração do dispositivo de sexualidade?
M.F.:
Não, não! Vemos aparecer o sexo, creio, durante o século XIX.
G.M.:
Existe um sexo depois do século XIX?


M.F.:
Existe uma sexualidade depois do século XVIII, um sexo depois do século XIX. Antes, sem dúvida
existia a carne. A figura fundamental é Tertuliano.


De Tertuliano a Freud
J.-A.M.:
Explique-nos isto.
M.F.:
Tertuliano reuniu, no interior de um discurso teórico coerente, duas coisas fundamentais: o


essencial dos imperativos cristãos - a didaské - e os princípios a partir dos quais se podia escapar
ao dualismo dos gnósticos.

J.-A.M.:
Vejo que você procura os operadores que lhe permitirão apagar o corte que se estabeleceu em
Freud. Na época em que Althusser impunha o corte marxista, você já havia chegado com sua
borracha. E agora, acho que seu objetivo - em uma estratégia complexa, como você diria - é
Freud. Você realmente acredita que conseguirá apagar o corte entre Tertuliano e Freud?

M.F.:
Para mim, a história dos cortes e dos não cortes é sempre, ao mesmo tempo, um ponto de partida
e algo muito relativo. Em As Palavras e as Coisas, eu partia de diferenças muito manifestas, das


transformações das ciências empíricas por volta do final do século XVIII. É preciso ser ignorante -
sei que não é este o seu caso - para não saber que um tratado de medicina de 1780 e um tratado
de anatomia patológica de 1820 são dois mundos diferentes. Meu problema era saber quais eram
os grupos de transformações necessárias e suficientes no interior do próprio regime dos discursos
para que se pudessem empregar estas palavras e não aquelas, este tipo de análise e não aquele,
que se pudessem olhar as coisas sob um ângulo e não sob outro. Aqui, por razões conjunturais, na
medida em que todo mundo apoia o corte, digo a mim mesmo: tentemos mudar o cenário e
partamos de alguma coisa que é tão constatável quanto o corte, contando que se tomem outras
referências. Veremos surgir esta formidável mecânica, a maquinaria da confissão, em que a
psicanálise e Freud aparecem como um dos episódios.

J.-A.M.:

Você constrói uma coisa que engole de uma só vez uma enorme quantidade...

M.F.:...

de uma só vez, uma enorme quantidade, e em seguida tentarei ver quais são as transformações...

J.-A.M.:

e, logicamente, você tomará cuidado para que a principal transformação não se situe em Freud.
Você demonstrara, por exemplo, que a investida sobre a família começou antes de Freud, ou...

M.F:
O fato de eu ter escolhido estas cartas sem dúvida exclui que Freud apareça como o corte radical a
partir de que todo o resto deve ser repensado. Certamente, eu poderia mostrar que em torno do
século XVIII instala-se, por razões econômicas, históricas, etc., um dispositivo geral em que Freud
terá seu lugar. E mostrarei, sem dúvida, que Freud virou pelo avesso a teoria da degenerescência.
De modo geral, esta não é a forma como se coloca o corte freudiano enquanto acontecimento de
cientificidade.
J.-A.M.:
Você acentua com prazer o caráter astucioso de seu procedimento. Seus resultados dependem da


escolha de referências e a escolha de referências depende da conjuntura. Tudo isto não passa de
aparência, é isto que você nos diz?
M.F.:
Não é falsa aparência, é fabricação.
J.-A.M.:
Sim, e portanto motivado pelo que você quer, sua esperança, sua...


M.F.: E
isto, é aí que aparece o objetivo polêmico ou político. Mas polêmica, você sabe que nunca faço; e
da política, estou longe.


J.-A.M.:
Mas então que efeito você pensa obter em relação à psicanálise?
M.F.:



Nas histórias comuns, pode-se ler que a sexualidade fora ignorada pela medicina e sobretudo pela
psiquiatria e que finalmente Freud descobriu a etiologia sexual das neuroses. Ora, todo mundo
sabe que não é verdade, que o problema da sexualidade estava inscrito na medicina e na
psiquiatria do século XIX de forma manifesta e relevante, e que no fundo Freud tomou ao pé da
letra o que uma noite ele ouvira Charcot dizer: trata-se certamente de sexualidade. O forte da
psicanálise é ter desembocado em algo totalmente diferente, que é a lógica do inconsciente. E ai, a
sexualidade não é mais o que ela era no inicio.

J.-A.M.:
Certamente. Você diz: a psicanálise. Pelo que você evoca, poderíamos dizer: Lacan, não?
M.F.: Eu diria: Freud e Lacan. Ou seja, o importante não são os Três Ensaios sobre a Sexualidade,


mas a Traumdeutung (Interpretação dos Sonhos).
J.A.M.: Não é a teoria do desenvolvimento, mas a lógica do significante.
M.F.:
Não é a teoria do desenvolvimento, não é o segredo sexual atrás das neuroses e das psicoses, é


uma lógica do inconsciente...
J.-A.M.: E
muito lacaniano opor a sexualidade ao inconsciente. Além disso, um dos axiomas desta lógica é


que não há relação sexual.
M.F.:
Não sabia da existência deste axioma.
J.-A.M.:
Isto implica que a sexualidade não é histórica no sentido em que tudo o é, totalmente e desde o


inicio, não é? Não há uma história da sexualidade como há uma história do pão.


M.F:
Como há uma história da loucura, isto é, da loucura enquanto questão, colocada em termos de
verdade, no interior de um discurso em que a loucura do homem deve dizer alguma coisa a
respeito da verdade do que é o homem, o sujeito ou a razão. A partir do momento em que a
loucura deixou de aparecer como a máscara da razão, e foi inscrita como um Outro prodigioso mas
presente em todo homem' razoável, detendo uma parte, talvez o essencial, dos segredos da razão,
a partir deste momento algo como uma história da loucura começou, ou melhor, um novo episódio
na história da loucura. E ainda vivemos este episódio. Da mesma forma, a partir do momento em
que se disse ao homem: com seu sexo, você não vai simplesmente fabricar prazer, você vai
fabricar verdade. Verdade que será a sua verdade, a partir do momento em que Tertuliano
começou a dizer aos cristãos: em vossa castidade...

J.-A.M.:

Lá vem você procurando uma origem. E agora, a culpa é de Tertuliano...

M.F.:

É uma brincadeira.

J.-A.M.:


Evidentemente você dirá: é mais complexo, existem níveis heterogêneos, movimentos de baixo
para cima e de cima para baixo. Mas, falando seriamente, esta pesquisa a respeito do ponto em
que isto teria começado, esta doença da palavra, será que você...

MF.:

Digo isto de forma fictícia, para rir, para contar história.

J.-A.M.: Mas se não se quiser rir, o que se deveria dizer?

M.F.:

O que se deveria dizer? Certamente se encontraria em Euripides; misturando-o com alguns
elementos da mística judaica, outros da filosofia alexandrina e da sexualidade tal como era vista
pelos estóicos, tomando também a noção de enkrateia, esta maneira de assumir alguma coisa que,
nos estóicos, não é a castidade... Mas aquilo de que falo é aquilo através de que se disse às
pessoas que, em seu sexo, estava o segredo de sua verdade.

A confissão

A.G.:

Você fala das técnicas de confissão. Parece-me que também existem técnicas de escuta. Por
exemplo, na maioria dos manuais de confessores ou dos dicionários de caso de consciência
pode-se encontrar um artigo sobre o "deleite moroso", que trata da natureza e da gravidade do
pecado que consiste em ter prazer, demorando-se (é isto, a morositas) na representação, por
pensamento ou palavra, de um pecado sexual passado. Ora, isto concerne diretamente o
confessor: como prestar atenção à narrativa de cenas abomináveis sem pecar, isto é, sem ter
prazer? E existe toda uma técnica e toda uma casuística da escuta, que depende manifestamente,
por um lado, da relação da própria coisa com o pensamento da coisa e, por outro, do pensamento
da coisa com as palavras que servem para expressá-la. Ora, esta dupla relação variou: foi o que
você mostrou em As palavras e as Coisas, quando você delimitou as fronteiras, inicial e final, da
épistémè da representação. Esta longa história da confissão, esta vontade de ouvir do outro a
verdade sobre seu sexo, que continua existindo, acompanha-se portanto de uma história das
técnicas de escuta, que se modificaram profundamente. A linha que você traça da Idade Média até
Freud é contínua? Quando Freud - ou um psicanalista - escuta, a maneira como ele escuta e
aquilo que ele escuta, o lugar que ocupa nesta escuta o significante, por exemplo, é comparável ao
que isto era para os confessores?

M.F.:

No primeiro volume, trata-se de um exame por alto de alguma coisa cuja existência permanente no
Ocidente dificilmente pode ser negada: os procedimentos regulamentados de confissão do sexo,
da sexualidade e dos prazeres sexuais. Mas é verdade: estes procedimentos foram profundamente
transformados em certos momentos, em condições freqüentemente difíceis de explicar. Assiste-se,
no século XVIII, a 'um desmoronamento muito nítido, não da coação ou da imposição à confissão,
mas do refinamento nas técnicas da confissão. Nesta época, em que a direção de consciência e a
confissão perderam o essencial de seu papel, vê-se aparecer técnicas médicas brutais, do tipo:
ande, conte-nos sua história, conte-a por escrito...

J.-A.M.:

Mas você acha que, durante este longo período, continua existindo o mesmo conceito, não do
sexo, mas da verdade? Ela é localizada e recolhida da mesma forma? Ela é considerada causa?

M.F.:


Certamente nunca se deixou de admitir que a produção da verdade acarrete efeitos sobre o sujeito,
com todos os tipos de variações possiveis...


J.-A.M.:
Mas você não tem a impressão de estar construindo alguma coisa que, por mais divertida que seja,
está destinada a deixar escapar o essencial? Que sua rede tem malhas tão largas que deixa
passar todos os peixes? Por que, ao invés de seu microscópio, você usa um telescópio e o usa ao
inverso? Nós só podemos compreender este seu procedimento, se você nos dizer qual é sua
esperança ao fazer isto.


M.F.:
Será que se pode falar de esperança? A palavra confissão, que utilizo, talvez seja um pouco vaga.
Mas creio ter-lhe dado em meu livro um conteúdo bastante preciso. Por confissão entendo todos


estes procedimentos pelos quais se incita o sujeito a produzir sobre sua sexualidade um discurso
de verdade que é capaz de ter efeitos sobre o próprio sujeito.
J.-A.M.:
Não estou muito satisfeito com os conceitos abrangentes que você está utilizando; eles parecem se


diluir quando olhamos as coisas mais de perto.
M.F.:
Mas tudo isto é feito para ser diluído, são definições muito gerais...
J.-A.M.:
Nos procedimentos de confissão, supõe-se que o sujeito conheça a verdade. Não há uma


mudança radical, quando se supõe que o sujeito não conhece esta verdade?
M.F.:
Vejo bem aonde você quer chegar. Mas um dos pontos fundamentais, na direção de consciência


cristã, é justamente que o sujeito não conhece a verdade.


J. -A M.:
E você vai demonstrar que este não-conhecer tem o estatuto de inconsciente? Reinscrever o
discurso do sujeito em um código de leitura, recodificá-lo a partir de um questionário para saber
em que um ato é pecado ou não, não tem nada a ver com supor que o sujeito tem um saber de que
ele não conhece a verdade.
M.F.:
Na direção de consciência, o que o sujeito não sabe é algo muito diferente de saber se é pecado


ou não, pecado mortal ou venial. Ele sabe o que se passa nele. E quando o dirigido encontra seu
diretor e lhe diz: escute...
J.-A.M.:
O dirigido, o diretor, esta de fato é uma situação analítica.


M.F.:
Deixe-me terminar o que estava dizendo. O dirigido diz: escute, não posso fazer minha oração
atualmente, sinto um estado de insensibilidade que me faz perder contato com Deus. E o diretor


lhe diz: alguma coisa acontece em você que você não conhece. Nós trabalharemos juntos para
produzi-la.

J.-A.M.:

Peço desculpas, mas não acho esta comparação muito convincente.

A grande virada

M.F.:

Acho que tocamos agora na questão fundamental, tanto para você quanto para todo mundo. Com
esta noção de confissão não procuro construir um quadro que me permitiria reduzir tudo ao
mesmo, os confessores a Freud. Ao contrário, como em As Palavras e as Coisas, trata-se de
mostrar melhor as diferenças. Em A Vontade de Saber, meu campo de objetos são estes
procedimentos de extorsão da verdade; no próximo volume, a respeito da carne cristã, tentarei
estudar o que caracterizou, do século X ao século XVIII, estes procedimentos discursivos. Depois
chegarei a esta transformação, que me parece mais enigmática que a ocorrida com a psicanálise,
pois é a partir da questão que ela me colocou que acabei por transformar o que não devia passar
de um livrinho neste projeto atual um pouco louco: no período de vinte anos, em toda a Europa, só
se tratou, entre os médicos e os educadores, desta epidemia incrível que ameaçava todo o gênero
humano: a masturbação das crianças. Algo que ninguém antes teria praticado!

Jocelyne Livi:

A respeito da masturbação das crianças, você não acha que você valoriza muito a diferença dos
sexos? Ou você considera que a instituição pedagógica funcionou da mesma forma em relação às
meninas e aos meninos?

M.F.: A

primeira vista, as diferenças me pareceram pequenas antes do século XIX.

J.L.:

Parece-me que isto se dá de maneira mais discreta no caso das meninas. Fala-se menos,
enquanto que, em relação aos meninos, existem descrições muito detalhadas.

M.F.:

Sim... no século XVIII, o problema do sexo era o problema do sexo masculino, e a disciplina do
sexo era colocada em prática nos colégios de meninos, nas escolas militares, etc. Depois, a partir
do momento em que o sexo da mulher começou a adquirir importância médico-social, com os
problemas correlatos da maternidade, do aleitamento, etc., a masturbação feminina adquire
importância. Parece que no século XIX foi ela que prevaleceu. No fim do século XIX, em todo caso,
as grandes operações cirúrgicas tiveram as meninas por objeto. Eram verdadeiros suplícios: a
cauterização clitoriana com ferro em brasa era, senão corrente, ao mesmo relativamente freqüente
na época. Via-se, na masturbação, algo de dramático.

G. W.:
Seria possível precisar o que você diz a respeito de Freud e Charcot?

M.F.:


Freud vai ver Charcot. Vê internos fazendo inalações de nitrato de amilo nas mulheres, que são
levadas neste estado a Charcot. As mulheres assumem posturas, dizem coisas. Elas são
observadas, escutadas e em determinado momento Charcot declara que aquilo estava passando
dos limites. Tem-se aí portanto algo soberbo, em que a sexualidade é efetivamente excitada,
suscitada, incitada, titilada de mil maneiras e Charcot, de repente, diz: "Basta". Freud dirá: "E por
que basta'?" Freud não precisou procurar alguma outra coisa além do que vira com Charcot. A
sexualidade estava sob seus olhos, presente, manifestada, organizada por Charcot e seus
homens...

G. W.: Não é certamente isto que você diz em seu livro. Houve, de qualquer forma, a intervenção
da "mais famosa Orelha". Sem dúvida, a sexualidade passou de uma boca para uma orelha, a
boca de Charcot para a orelha de Freud, e é verdade que Freud viu na Salpêtrière se manifestar
algo da ordem da sexualidade. Mas Charcot reconhecera nisto a sexualidade? Charcot provocava
a produção de crises histéricas, por exemplo, a postura em arco. Já Freud reconhece nisto algo
como o coito. Mas pode-se dizer que Charcot via o que Freud verá?
M.F.:

Não, mas eu falava como apologista. Queria dizer que a grande originalidade de Freud não foi
descobrir a sexualidade sob a neurose. A sexualidade estava lá, Charcot já falara dela. Sua
originalidade foi tomar isto ao pé de letra e edificar a partir dai a Traumdeutung, que é algo
diferente da etiologia sexual das neuroses. Sendo muito pretensioso, eu diria que faço algo
semelhante. Parto de um dispositivo de sexualidade, dado histórico fundamental que não pode ser
deixado de lado. Eu o tomo ao pé da letra, não me coloco no extenor, porque não é possível, mas
isto me leva a outra coisa.

J.-A.M.:

E em relação à Interpretação dos Sonhos, você não dá importância ao fato de se estabelecer entre

o sexo e o discurso uma relação verdadeiramente inédita?
M.F.:

É possível. Não excluo isto de forma alguma. Mas a relação que se instituiu com a direção de
consciência, depois do Concilio de Trento, também era inédita. Foi um fenômeno cultural
gigantesco. E inegável.

J.-A.M.:

E a psicanálise não?

M.F.:

Sim, evidentemente, não quero dizer que a psicanálise já esteja contida nos diretores de
consciência. Seria um absurdo!

J.-A.M.:

Sim, sim, você não diz isto mas de qualquer forma o diz! Enfim, você pensa que se pode dizer que
a história da sexualidade, no sentido em que você entende este último termo, culmina com a
psicanálise?

M.F.:

Certamente! Atinge-se então, na história dos procedimentos que estabelecem uma relação entre o
sexo e a verdade, um ponto culminante. Em nossos dias, não há um só discurso sobre a
sexualidade que, de uma maneira ou de outra, não siga o da psicanálise.


J.-A.M.:

Mas o que acho engraçado é que uma declaração como esta só se conceba no contexto francês e
na conjuntura atual. Não é verdade?

M.F.:

Existem países, é verdade, onde, por razões de institucionalização e de funcionamento do mundo
cultural, os discursos sobre o sexo talvez não tenham, em relação à psicanálise, esta posição de
subordinação, de derivação, de fascínio que têm na França, onde a intelligentsia, por seu lugar na
pirâmide e na hierarquia dos valores aceitos, concede à psicanálise um privilégio absoluto, que
ninguém pode evitar, mesmo Ménie Grégoire.

Os movimentos de liberação

J.-A.M.:

Você não poderia nos falar um pouco sobre os movimentos de liberação da mulher e dos
movimentos homossexuais?

M.F.:

O que eu gostaria precisamente de mostrar, em relação a tudo que atualmente se diz a respeito da
liberação da sexualidade, é que o objeto sexualidade é, na realidade, um instrumento formado há
muito tempo e que se constituiu como um dispositivo de sujeição milenar. O que existe de
importante nos movimentos de liberação da mulher não é a reivindicação da especificidade da
sexualidade e dos direitos referentes à esta sexualidade especial, mas o fato de terem partido do
próprio discurso que era formulado no interior dos dispositivos de sexualidade. Com efeito, é como
reivindicação de sua especificidade sexual que os movimentos aparecem no século XIX. Para
chegar a que? Afinal de contas, a uma verdadeira dessexualização... a um deslocamento em
relação à centralização sexual do problema, para reivindicar formas de cultura, de discurso, de
linguagem, etc.,, que são não mais esta espécie de determinação e de fixação a seu sexo que de
certa forma elas tiveram politicamente que aceitar que se fazer ouvir. O que há de criativo e de
interessante nos movimentos das mulheres é precisamente isto.

J.-A.M.:

De inventivo?

M.F.:

De inventivo, sim... Os movimentos homossexuais americanos também partiram deste desafio.
Como as mulheres, eles começaram a procurar formas novas de comunidade, de coexistência, de
prazer. Mas, diferentemente das mulheres, a fixação dos homossexuais à especificidade sexual é
muito mais forte, eles reduzem tudo ao sexo. As mulheres não.

G.L.G.:

Entretanto, eles conseguiram retirar a homossexualidade da nomenclatura das doenças mentais.
De qualquer forma, é muito diferente de dizer: "Vocês querem que sejamos homossexuais, pois
bem, nós somos".

M.F.:

Sim, mas os movimentos de homossexuais continuam muito presos à reivindicação dos direitos de
sua sexualidade, à dimensão do sexológico. Mas isso é normal, pois a homossexualidade é uma


prática sexual que, enquanto tal, é combatida, barrada, desqualificada. As mulheres podem ter
objetivos econômicos, políticos, etc., muito mais amplos que os homossexuais.

G.L.G.:

A sexualidade das mulheres não as faz sair dos sistemas de aliança reconhecidos, enquanto que a
dos homossexuais os faz sair totalmente. Os homossexuais estão em uma posição diferente em
relação ao corpo social.

M.F.:

Sim.

G.L.G.:

Veja os movimentos de homossexuais femininos: eles se deparam com as mesmas aporias que os
movimentos dos homossexuais masculinos. Não há diferença, precisamente porque elas recusam
todo sistema de aliança.

O instinto sexual

A.G.:

O que você diz a respeito das perversões também é válido para o sado-masoquismo? Há muito
tempo se fala das pessoas que se fazem chicotear para gozar...

M.F.:

Dificilmente isto se pode dizer. Você tem documentos?

A.G.:

Sim, existe um tratado, Do uso do chicote nas coisas de Vênus, escrito por um médico e que data,
se não me engano, de 1665, que tem um catálogo de casos muito completo. Faz-se alusão a ele
na época dos convulsionários de Saint-Médard, para mostrar que os pretensos milagres
escondiam histórias sexuais.

M.F.:

Sim, mas este prazer em ser chicoteado não é repertoriado como doença do instinto sexual. Isto
aconteceu muito depois. Creio, sem estar absolutamente certo, que na primeira edição do livro de,
Krafft Ebing só se encontra o caso de Masoch. O aparecimento da perversão, como objeto médico,
está ligado ao aparecimento do instinto que, como disse, data dos anos 1840.

G. W.: Entretanto, quando se lê um texto de Platão ou de Hipócrates, vê-se o útero descrito como
um animal que se movimenta, no ventre da mulher, de acordo justamente com seu instinto. Mas
este instinto...
M.F.:

Veja bem que entre dizer: o útero é um animal que se movimenta, e dizer: vocês podem ter
doenças orgânicas ou doenças funcionais e entre as doenças funcionais existem algumas que
atingem as funções dos órgãos e outras que afetam os instintos e, entre os instintos, o instinto
sexual pode ser atingido de diferentes maneiras passíveis de serem classificadas, existe uma certa
diferença, um tipo completamente inédito de medicalização da sexualidade. Em relação à idéia de
um órgão que se movimenta como uma raposa em sua toca, tem-se um discurso que é,


inegavelmente, de uma outra consistência epistemológica!
J.-A.M.:
Bem, e o que lhe inspira a "consistência epistemológica" da teoria de Freud, a respeito


precisamente do instinto? Você pensa, como aliás se pensava antes de Lacan, que este instinto
tem a mesma consistência que o instinto de 1840? Como você lerá isto?
M.F.:
Ainda não sei!


J.-A.M.:
Você acha que o instinto de morte está em continuidade com esta teoria do instinto que você data
de 1844?


M.F.:
Para responder a você, seria preciso reler toda a obra de Freud...
J.-A.M.:
Mas, de qualquer forma, você não leu a Traumdeutung?
M.F.:
Sim, mas não toda a obra de Freud...


O Racismo
A.G.:
Em relação à última parte de seu livro...
M.F.:
Sim, ninguém fala desta última parte. Entretanto, o livro é pequeno, mas desconfio que as pessoas


nunca chegaram a este capítulo. E contudo é o essencial do livro.


A. G.:
Você articula o tema racista ao dispositivo da sexualidade - e à questão da degenerescência. Mas
ele parece ter sido elaborado muito antes, no Ocidente, em particular pela nobreza de velha cepa,
hostil ao absolutismo de Luís XIV que favorecia os plebeus. Em Boulamvilliers, que representa esta
nobreza, já se encontra uma história da superioridade do sangue germânico, do qual descenderia a
nobreza, sobre o sangue gaulês.

M.F.:

De fato, esta idéia de que a aristocracia vem da Germânia data da Renascença, e este foi
inicialmente um tema utilizado pelos protestantes franceses, que diziam: a França era, outrora, um
estado germânico, e existe no direito germânico limites ao poder do soberano. Foi esta idéia que
uma fração da nobreza francesa depois retomou...

A.G.:


A propósito da nobreza, você fala em seu livro de um mito do sangue, do sangue como objeto
mítico. Mas o que me parece notável, ao lado de sua função simbólica, é que o sangue tenha
também sido considerado como um objeto biológico por esta nobreza. Seu racismo não está
somente fundado em uma tradição mítica, mas em uma verdadeira teoria da hereditariedade pelo
sangue. Já é um racismo biológico.

M.F.:

Mas digo isto em meu livro.

A.
G.: Eu me lembrava sobretudo de você falar do sangue como objeto simbólico.

M.F.:

Sim, com efeito, no momento em que os historiadores da nobreza como Boulainvalliers cantavam o
sangue nobre dizendo que ele trazia em si qualidades físicas' de coragem, de virtude, de energia,
houve uma correlação entre'as teorias da geração e os temas aristocráticos. Mas o que é novo, no
século, XIX, é o aparecimento de uma biologia de tipo racista, inteiramente centrada em torno da
concepção da degenerescência. O racismo não foi inicialmente uma ideologia política. Era uma
ideologia científica que podia ser encontrada em toda parte, em MoreI como em outros. E foi usada
politicamente primeiro pelos socialistas, por pessoas de esquerda, antes de ser pelos de direita.

G.L.G.:

Quando a esquerda era nacionalista?

M.F.:

Sim, mas sobretudo com a idéia de que a classe decadente, a classe pobre, era constituída pelas
pessoas de cima, e que a sociedade socialista era limpa e sadia. Lombroso era um homem de
esquerda. Ele não era socialista em sentido estrito, mas ele fez muitas coisas com os socialistas e
os socialistas retomaram Lombroso. A separação ocorreu no final do século XIX.

G.L.G.:

Não será que se pode ter uma confirmação do que você está dizendo na voga, no século XIX, dos
romances de vampiros, em que a aristocracia é sempre apresentada como a besta a abater? O
vampiro é sempre um aristocrata e o salvador um burguês...

A.G.:

Já no século XVIII, corriam rumores que os aristocratas devassos seqüestravam criancinhas para
degolá-las e que eles se regeneravam banhando-se em seu sangue. Isto deu origem a sedições...

G.L.G.:

Sim, mas esta é a origem. A continuação é estritamente burguesa, com toda esta literatura de
vampiros, cujos temas podem ser reencontrados nos filmes de hoje: é sempre o burguês que, sem
os meios da polícia e do padre, elimina o vampiro.

M.F.:

O anti-semitismo moderno inicialmente tinha esta forma. As formas novas do anti-semitismo têm
origem, no meio socialista, na teoria da degenerescência. Dizia-se: os judeus são
necessariamente degenerados, primeiro porque são ricos e depois porque eles se casam entre si e
têm práticas sexuais e religiosas completamente aberrantes; portanto, são eles os portadores da


degenerescência em nossas sociedades. Isto pode ser encontrado na literatura socialista até o
caso Dreyfus. O pré-hitlerismo, o antisemitismo nacionalista de direita retomará exatamente os
mesmos enunciados em 1910.

A.
G.: A direita dirá que este tema pode ser encontrado hoje na pátria do socialismo...
A idéia do senhor Larrivée
J.-A.M.:
Você sabe que haverá na URSS um primeiro congresso sobre psicanálise?
M.F.:
Foi o que me disseram. Haverá psicanalistas soviéticos?
J.-A.M.:
Não, eles estão tentando levar psicanalistas de fora...


M. F.:
Será portanto um congresso de psicanálise na União Soviética em que os expositores serão
estrangeiros! Incrível! Houve um Congresso de Ciências Penais em São Petersbutgo, em 1894, em
que um criminalista francês desconhecido - ele se chamava Larrivée - disse aos russos:
concordamos todos que os criminosos são pessoas impossíveis, criminosos natos. O que fazer
com eles? Em nossos países, que são pequenos, não se sabe como se livrar deles. Mas vocês,
russos, que têm a Sibéria, não poderiam colocá-los em um tipo de grande campo de trabalho e
valorizar assim este país de uma riqueza extraordinária?

A.G.:

Ainda não havia campos de trabalho na Sibéria?

M.F.:

Não! Fiquei muito surpreso.

DC.:

Mas era um local de exílio. Lênin foi para lá em 1898; lá ele se casou, caçou, tinha uma
empregada, etc. Havia também locais de trabalhos forçados. Tchekov visitou um nas Ilhas
Sakhaline. Os campos de concentração em que se trabalha são uma invenção socialista. Eles
nasceram principalmente de iniciativas como as de Trostsky, que organizou os restos do Exército
Vermelho em uma espécie de exército de trabalho; depois, criaram-se campos disciplinares que
rapidamente se tornaram campos de degredo. Havia uma mistura de vontade de eficácia pela
militarização, de reeducação, de coerção...

M.F.:

De fato, esta idéia veio da recente legislação francesa sobre o desterro. A idéia de utilizar
prisioneiros durante o período de sua pena em um trabalho ou em alguma coisa útil é tão antiga
quanto as prisões. O desterro era a idéia de que, entre os delinqüentes, existem no fundo alguns
que são absolutamente irrecuperáveis e de que é preciso, de uma maneira ou de outra, eliminá-los


da sociedade, utilizando-os. Na França, depois de um certo número de reincidências, o sujeito era
enviado para a Guiana, para a Nova Caledônia e depois tornava-se colono. Eis o que o senhor
Larrivée propunha aos russos para explorar a Sibéria. De qualquer forma, é incrível que os russos
não tenham pensado nisto antes. Mas se tivesse sido este o caso, certamente teria havido no
congresso um russo para dizer: mas senhor Larrivée, nós já tivemos esta maravilhosa idéia! Não
foi o que aconteceu. Na França, não temos Gulag, mas temos idéias...

O poder sobre a vida

A.G.:

Maupertuis - também francês, mas que era secretário da Academia Real de Berlim - propunha aos
soberanos, em uma "Carta sobre o Progresso das Ciências", a utilização dos criminosos para fazer
experiências úteis. Isto em 1752.

Judiih Mlller:

Parece que La Condamine, com uma cometa no ouvido, pois ele tinha ficado surdo depois de sua
expedição ao Peru, ia escutar o que diziam os supliciados no momento em que iam morrer.

A.G.:

Tornar o suplício útil, utilizar o poder absoluto de ordenar a morte em proveito de melhor
conhecimento sobre a vida, fazendo com que de algum modo o condenado à morte confessasse
uma verdade sobre a vida, tem-se aí como que um ponto de encontro entre o que você nos dizia
sobre a confissão e o que você analisa na última parte do seu livro. Nele você diz que, em certo
momento, passa-se de um poder que se exerce como direito de morte para um poder sobre a vida.
Poderiam os lhe perguntar: este poder sobre a vida, este cuidado em controlar seus excessos ou
suas carências, é característico das sociedades ocidentais modernas? Tomemos um exemplo: o
Livro XXIII do Espírito das Leis de Montesquieu, que tem como título "Das Leis em sua relação com

o número de habitantes". Ele fala, como de um problema grave, do despovoamento da Europa e
opõe ao edito de Luís XIV em favor dos casamentos, que data de 1666, as medidas muito mais
eficazes colocadas em prática pelos romanos. Como se, sob o Império Romano, a questão de um
poder sobre a vida, de uma disciplina da sexualidade do ponto de vista da reprodução tivesse sido
colocada e depois esquecida para reaparecer no meio do século XVIII. Então, esta passagem de
um direito de morte para um poder sobre a vida será realmente inédita ou não será ela periódica,
ligada por exemplo a épocas e a civilizações em que a urbanização, a concentração da população
ou, ao contrário, o despovoamento provocado pelas guerras ou pelas epidemias parecem colocar
em perigo a nação?
M.F.:

Certamente, o problema da população sob a forma: "seremos nós muito numerosos, não
suficientemente numerosos?", há muito tempo é colocado, há muito tempo que se dá a ele
soluções legislativas diversas: impostos sobre os celibatários, isenção de imposto para as famílias
numerosas, etc.. Mas, no século XVIII, o que é interessante é, em primeiro lugar, uma
generalização destes problemas: todos os aspectos do fenômeno população começam a ser
levados em conta (epidemias, condições de habiiat, de higiene, etc.) e a se integrar no interior de
um problema central. Em segundo lugar, vê-se aplicar a este problema novos tipos de saber:
aparecimento da demografia, observações sobre a repartição das epidemias, inquéritos sobre as
amas de leite e as condições de aleitamento. Em terceiro lugar, o estabelecimento de aparelhos de
poder que permitem não somente a observação, mas a intervenção direta e a manipulação de tudo
isto. Eu diria que, neste momento, começa algo que se pode chamar de poder sobre a vida,
enquanto antes só havia vagas incitações, descontínuas, para modificar uma situação que não se
conhecia bem. No século XVIII, por exemplo, apesar dos importantes esforços estatísticos, as
pessoas estavam convencidas de que havia despovoamento; os historiadores sabem agora que,


ao contrário, havia um crescimento considerável da população.

A.G.:

Você concorda com historiadores como Flandrin, sobre o desenvolvimento das práticas
contraceptivas no século XVIII?

M.F.:

Em relação a isso, sou obrigado a confiar neles. Eles têm técnicas bem precisas para interpretar os
registros notariais, os registros de batismo, etc. A propósito da ligação entre o aleitamento e a
contracepção, Flandrin mostra - o que me parece muito interessante -que a verdadeira questão
era a sobrevivência das crianças e não sua geração. Ou seja, praticava-se a contracepção não
para que as crianças não nascessem, mas para que as crianças pudessem viver, uma vez
nascidas. A contracepção induzida por uma política natalista é algo bastante curioso!

A.G.:

Mas é isto que os médicos ou os demógrafos da época declaram abertamente.

M.F.:

Sim, mas havia uma espécie de circuito que fazia com que as crianças nascessem umas após as
outras. Com efeito, a tradição médica e popular dizia que uma mulher, quando estivesse aleitando,
não tinha mais o direito de manter relações sexuais, do contrário o leite se estragaria. Então as
mulheres, sobretudo as ricas, para poderem recomeçar a ter relações sexuais e assim segurar
seus maridos, enviavam seus filhos para a ama de leite. Havia uma verdadeira indústria do
aleitamento. As mulheres pobres faziam isto para ganhar dinheiro. Mas não havia nenhum meio de
verificar como a criança estava sendo criada, nem mesmo se a criança estava viva ou morta. De tal
forma que as amas de leite, e sobretudo os intermediários entre as amas e os pais, continuavam a
receber pensa-o de um bebê que já tinha morrido. Algumas amas tinham um índice de dezenove
crianças mortas em vinte que lhe haviam sido confiadas. Era terrível! Foi para evitar esta
desordem, para restabelecer um pouco de ordem, que se encorajaram as mães a aleitar seus
filhos. Imediatamente acabou a incompatibilidade entre a relação sexual e o aleitamento, mas com
a condição, é claro, de que as mulheres não ficassem grávidas imediatamente depois. Daí a
necessidade da contracepção. Enfim, tudo gira em torno disto: engravidando, fique com a criança.

A. G.:
O que é surpreendente é que, entre os argumentos utilizados para fazer com que as mães
aleitassem, surge um novo. Diz-se: é claro que dar de mamar permite que a criança e a mãe
tenham boa saúde, mas também: dê de mamar, você verá como dá prazer! De forma, que isto
coloca o problema da ablactação em termos que não são mais somente fisiológicos mas também
psicológicos. Como separar a criança de sua mãe? Por exemplo, um médico bastante conhecido
inventou uma rodela provida de pontas que a mãe ou a ama deviam colocar no bico do seio. A
criança, mamando, sente prazer misturado com dor e, se você aumenta o calibre das pontas, ele
se cansa e se desliga do seio que o aleita.

M.F.:

É mesmo?

J.L.:

A sra. Roland conta que, quando ela era muito pequena, sua ama havia colocado mostarda no seio
para desmamá-la. A ama zombou da menina, perturbada com o cheiro da mostarda!

A.G.:


É também a época da invenção da mamadeira moderna.
M.F.:
Não conheço a data!


A. G.:
1786, tradução francesa da Maneira de aleitar as crianças á mão na falta de amas de leite, de um
italiano, Baldini. Teve muito sucesso...
M.F.:
Renuncio a todas as minhas funções públicas e privadas! A vergonha se abate sobre mim!


Cubro-me de cinzas! Não sabia a data da criação da mamadeira!

A GOVERNAMENTALIDADE
Curso do
College de France, 1 de fevereiro de 1978

Através da análise de alguns dispositivos de segurança, procurei ver como surgiu historicamente o
problema especifico da população, o que conduziu à questão do governo: relação entre segurança,
população e governo. E esta temática do governo que procurarei agora inventariar.

Certamente, na Idade Média ou na Antigüidade greco-romana, sempre existiram tratados que se
apresentavam como conselhos ao príncipe quanto ao modo de se comportar, de exercer o poder,
de ser aceito e respeitado pelos súditos; conselhos para amar e obedecer a Deus, introduzir na
cidade dos homens a lei de Deus, etc. Mas, a partir do século XVI até o final do século XVIII, vê-se
desenvolver uma série considerável de tratados que se apresentam não mais como conselhos aos
príncipes, nem ainda como ciência da política, mas como arte de governar. De modo geral, o
problema do governo aparece no século XVI com relação a questões bastante diferentes e sob
múltiplos aspectos: problema do governo de si mesmo - reatualizado, por exemplo, pelo retorno ao
estoicismo no século XVI; problema do governo das almas e das condutas, tema da pastoral
católica e protestante; problema do governo das crianças, problemática central da pedagogia, que
aparece e se desenvolve no século XVI; enfim, problema do governo dos Estados pelos príncipes.
Como se governar, como ser governado, como fazer para ser o melhor governante possível, etc.

Todos estes problemas, com a intensidade e multiplicidade tão características do século XVI, se
situam na convergência de dois processos: processo que, superando a estrutura feudal, começa a
instaurar os grandes Estados territoriais, administrativos, coloniais; processo, inteiramente diverso
mas que se relaciona com o primeiro, que, com a Reforma e em seguida com a Contra-Reforma,
questiona o modo como se quer ser espiritualmente dirigido para alcançar a salvação. Por um lado,


movimento de concentração estatal, por outro de dispersão e dissidência religiosa: é no encontro
destes dois movimentos que se coloca, com intensidade particular no século XVI, o problema de
como ser governado, por quem, até que ponto, com qual objetivo, com que método, etc.
Problemática geral do governo em geral.

Em toda esta imensa e monótona literatura do governo, gostaria de isolar alguns pontos
importantes que dizem respeito à definição do que se entende por governo do Estado, aquilo que
chamaremos governo em sua forma política. Com este objetivo, o mais simples sem dúvida é opor
esta literatura a um único texto que, do século XVI ao século XVIII, constitui um ponto de repulsão,
implícito ou explícito, em relação ao qual por oposiçâo ou recusa - se situa a literatura do governo:
O Príncipe, de Maquiavel.

É importante lembrar que O Príncipe não foi imediatamente abominado: foi reverenciado pelos
seus contemporâneos e sucessores imediatos como também no inicio do século XIX - sobretudo
na Alemanha, onde foi lido, apresentado, comentado por pessoas como Rehberg, Leo, Ranke,
Kellermann, etc., e na Itália - exatamente no momento em que desaparece toda esta literatura
sobre a arte de governar. O que se deu no contexto preciso da Revolução Francesa e de
Napoleão, quando se colocou a questão de como e em que condições se pode manter a soberania
de um soberano sobre um Estado; no contexto do aparecimento, com Clausewitz, da relação entre
política e estratégia e da importância política, manifestada por exemplo pelo Congresso de Viena,
em 1815, que se atribui ao cálculo das relações de força considerado como princípio de
inteligibilidade e de racionalização das relações internacionais; finalmente, no contexto da
unificação territorial da Itália e da Alemanha, na medida em que Maquiavel foi um dos que
procuraram definir em que condições a unificação territorial da Itália poderia ser realizada.

Entre estes dois momentos, houve porém uma volumosa literatura anti-Maquiavel, às vezes
explicitamente - uma série de livros que em geral são de origem católica, como por exemplo o
texto de Ambrogio Politi, Disputationes de Libris a Christiano detestandis, e de origem protestante,
como o livro de Innocent Gentillet, Discours d'Etat sur les moyens de bien gouverner contre Nicolas
Machiavel, 1576 - às vezes implicitamente, em oposição velada, como por exempIo Guillaume de
La Pernére, Miroir Politique, 1567, P. Paruta, Della Perfezione della Vita politica, 1579, Thomas
Elyott, The Governor, 1580.

O importante é que esta literatura anti-Maquiavel não tem somente uma função negativa de
censura, de barragem, de recusa do inaceitável: é um gênero positivo que tem objeto, conceitos e
estratégia, e é em sua positividade que gostaria de analisá-lo. Sem dúvida encontramos uma
espécie de retrato negativo do pensamento de Maquiavel, em que se representa um Maquiavel
adverso. O Príncipe, contra o qual se luta, é caracterizado por um principio: o príncipe está em
relação de singularidade, de exterioridade, de transcendência em relação ao seu principado;
recebe o seu principado por herança, por aquisição, por conquista, mas não faz parte dele, lhe é
exterior; os laços que o unem ao principado são de violência, de tradição, estabelecidos por tratado
com a cumplicidade ou aliança de outros príncipes, laços puramente sintéticos, sem ligação
fundamental, essencial, natural e jurídica, entre o príncipe e seu principado. Corolário deste
princípio: na medida em que é uma relação de exterioridade, ela é frágil e estará sempre
ameaçada, exteriormente pelos inimigos do príncipe que querem conquistar ou reconquistar seu
principado e internamente, pois não há razão apriori, imediata, para que os súditos aceitem o
governo do príncipe. Deste principio e de seu corolário se deduz um imperativo: o objetivo do
exercício do poder será manter, reforçar e proteger este principado, entendido não como o conjunto
constituído pelos súditos e o território, o principado objetivo, mas como relação do príncipe com o
que ele possui, com o território que herdou ou adquiriu e com os súditos. É este liame frágil do
príncipe com seu principado que a arte de governar apresentada por Maquiavel deve ter como
objetivo. Consequentemente, o modo de análise terá dois aspectos: por um lado, demarcação dos
perigos (de onde vêm, em que consistem, qual é sua intensidade); por outro lado, desenvolvimento
da arte de manipular as relações de força que permitirão ao príncipe fazer com que seu principado,
como liame com seus súditos e com o território, possa ser protegido. Esquematicamente, se pode
dizer que O Príncipe de Maquiavel é essencialmente um tratado da habilidade do príncipe em
conservar seu principado e é isto que a literatura anti-Maquiavel quer substituir por uma arte de
governar. Ser hábil em conservar seu principado não é de modo algum possuir a arte de governar.


Para caracterizar esta arte de governar, examinarei o Miroir politique contenant diverses maniéres
de gouverner, de Guillaume de La Perriére, um dos primeiros textos desta literatura
anti-Maquiavel, que apresenta alguns pontos importantes. Em primeiro lugar, o que o autor
entende por governar e governante? Diz ele, na página 24 de seu texto: "governante pode ser
chamado de monarca, imperador, rei, príncipe, magistrado, prelado, juiz e similares". Como La
Perriére, também outros, tratando da arte de governar, lembram continuamente que também se diz
governar uma casa, almas, crianças, uma província, um convento, uma ordem religiosa, uma
família. Estas observações, que parecem simplesmente terminológicas, têm de fato implicações
políticas importantes. O príncipe "maquiavélico" é, por definição, único em seu principado e está
em posição de exterioridade, transcendência, enquanto que nesta literatura o governante, as
pessoas que governam, a prática de governo são, por um lado, práticas múltiplas, na medida em
que muita gente pode governar: o pai de família, o superior do convento, o pedagogo e o professor
em relação à criança e ao discípulo. Existem portanto muitos governos, em relação aos quais o do
príncipe governando seu Estado é apenas uma modalidade. Por outro lado, todos estes governos
estão dentro do Estado ou da sociedade. Portanto, pluralidade de formas de governo e imanência
das práticas de governo com relação ao Estado; multiplicidade e imanência que se opõem
radicalmente á singularidade transcendente do príncipe de Maquiavel.

É certo que entre todas estas formas de governo, que se cruzam, que se imbricam no interior da
sociedade e do Estado, uma forma é bastante especifica: trata-se de definir qual é a forma
particular que se aplica a todo o Estado. É assim que, procurando fazer a tipologia das diferentes
formas de governo, La Mothe Le Vayer, em um texto do século seguinte (uma série de escritos
pedagógicos para o Delfim), diz que existem basicamente três tipos de governo, cada um se
referindo a uma forma específica de ciência ou de reflexão. O governo de si mesmo, que diz
respeito à moral; a arte de governar adequadamente uma família, que diz respeito à economia; a
ciência de bem governar o Estado, que diz respeito à política. Em relação à moral e à economia, a
política tem sua singularidade, o que La Mothe Le Vayer indica muito bem. Mas o importante é que,
apesar desta tipologia, as artes de governar postulam uma continuidade essencial entre elas.
Enquanto a doutrina do príncipe ou a teoria jurídica do soberano procura incessantemente marcar
uma descontinuidade entre o poder do príncipe e as outras formas de poder, as teorias da arte de
governar procuram estabelecer uma continuidade, ascendente e descendente.

Continuidade ascendente no sentido em que aquele que quer poder governar o Estado deve
primeiro saber se governar, governar sua família, seus bens, seu patrimônio. É esta espécie de
linha ascendente que caracterizará a pedagogia do príncipe. La Mothe Le Vayer escreve assim
para o Delfim primeiro um tratado de moral, em seguida um livro de economia e finalmente um
tratado de política. Continuidade descendente no sentido em que, quando o Estado é bem
governado, os pais de família sabem como governar suas famílias, seus bens, seu patrimônio e por
sua vez os indivíduos se comportam como devem. E esta linha descendente, que faz repercutir na
conduta dos indivíduos e na gestão da família o bom governo do Estado, que nesta época se
começa a chamar de polícia. A pedagogia do príncipe assegura a continuidade ascendente da
forma de governo; a policia, a continuidade descendente. E nos dois casos o elemento central
desta continuidade é o governo da família, que se chama de economia.

A arte de governar, tal como aparece em toda esta literatura, deve responder essencialmente à
seguinte questão: como introduzir a economiaa - isto é, a maneira de gerir corretamente os
indivíduos, os bens, as riquezas no interior da família - ao nível da gestão de um Estado? A
introdução da economia no exercício político será o papel essencial do governo. E se foi assim no
século XVI, também o será no século XVIII, como atesta o artigo Economia Política, de Rousseau,
que diz basicamente: a palavra economia designa originariamente o sábio governo da casa para o
bem da família. O problema, diz Rousseau, é como ele poderá ser introduzido, mutatis mutandis,
na gestão geral do Estado. Governar um Estado significará portanto estabelecer a economia ao
nível geral do Estado, isto é, ter em relação aos habitantes, às riquezas, aos comportamentos
individuais e coletivos, uma forma de vigilância, de controle tão atenta quanto a do pai de família.
Uma expressão importante no século XVIII caracteriza bem tudo isto: Quesnay fala de um bom
governo como de um "governo econômico". E se Quesnay fala de governo econômico - que no
fundo é uma noção tautológica, visto que a arte de governar é precisamente a arte de exercer o
poder segundo o modelo da economia – é porque a palavra economia, por razões que procurarei


explicitar, já começa a adquirir seu sentido moderno e porque neste momento se começa a
considerar que é da própria essência do governo ter por objetivo principal o que hoje chamamos de
economia. A palavra economia designava no século XVI uma forma de governo; nó século XVIII,
designará um nível de realidade, um campo de intervenção do governo através de uma série de
processos complexos absolutamente capitais para nossa história. Eis portanto o que significa
governar e ser governado.

Em segundo lugar, encontramos no livro de Guillaume de La Perriére a seguinte afirmação:
"governo é uma correta disposição das coisas de que se assume o encargo para conduzi-las a um
fim conveniente". Gostaria também de fazer uma série de observações sobre esta frase,
começando com a palavra coisa. No Príncipe de Maquiavel, o que caracteriza o conjunto dos
objetos sobre os quais se exerce o poder é o fato de ser constituído pelo território e seus
habitantes. Com relação a esse ponto, Maquiavel não fez mais do que retomar um princípio jurídico
pelo qual se caracterizava a soberania no direito público, da Idade Média até o século XVI. Neste
sentido, pode-se dizer que o território é o elemento fundamental tanto do principado de Maquiavel
quanto da soberania jurídica do soberano, tal como a definem os filósofos e teóricos do direito. O
território pode ser fértil ou estéril, a população densa ou escassa, seus habitantes ricos ou pobres,
ativos ou preguiçosos, etc., mas estes elementos são apenas variáveis com relação ao território,
que é o próprio fundamento do principado ou da soberania.

No texto de La Perriére, ao contrário, a definição do governo não se refere de modo algum ao
território. Governam-se coisas. Mas o que significa esta expressão? Não creio que se trate de opor
coisas a homens, mas de mostrar que aquilo a que o governo se refere é não um território e sim
um conjunto de homens e coisas. Estas coisas, de que o governo deve se encarregar, são os
homens, mas em suas relações com coisas que são as riquezas, os recursos, os meios de
subsistência, o território em suas fronteiras, com suas qualidades, clima, seca, fertilidade, etc.; os
homens em suas relações com outras coisas que são os costumes, os hábitos, as formas de agir
ou de pensar, etc.; finalmente, os homens em suas relações com outras coisas ainda que podem
ser os acidentes ou as desgraças como a fome, a epidemia, a morte, etc. Que o governo diga
respeito às coisas entendidas como a imbricação de homens e coisas temos a confirmação em
uma metáfora que aparece em todos esses tratados: o navio. O que é governar um navio? É
certamente se ocupar dos marinheiros, da nau e da carga; governar um navio é também prestar
atenção aos ventos, aos recifes, às tempestades, às intempéries, etc.; são estes relacionamentos
que caracterizam o governo de um navio. Governar uma casa, uma família, não é essencialmente
ter por fim salvar as propriedades da família; é ter como objetivo os indivíduos que compõem a
família, suas riquezas e prosperidades; é prestar atenção aos acontecimentos possíveis, às
mortes, aos nascimentos, às alianças com outras famílias; éesta gestão geral que caracteriza o
governo e em relação ao qual o problema da propriedade fundiária para a família ou a aquisição da
soberania sobre um território pelo príncipe são elementos relativamente secundários. O essencial é
portanto este conjunto de coisas e homens; o território e a propriedade são apenas variáveis.

Este tema do governo das coisas que aparece em La Perriére será encontrado ainda nos séculos
XVII e XVIII. Frederico II, em seu Anti-Maquiavel, escreveu passagens significativas. Diz, por
exemplo: comparemos a Holanda e a Rússia; a Rússia pode até ser o país de maior extensão em
relação aos outros Estados europeus, mas é composta de pântanos, florestas, desertos, é povoada
apenas por um bando de miseráveis, sem atividade nem indústria; a Holanda, que é pequeníssima
e constituída de pântanos, possui ao contrário uma população, uma riqueza, uma atividade
comercial e uma frota que fazem dela um país importante da Europa, o que a Rússia está apenas
começando a ser. Portanto, governar é governar as coisas.

Voltemos ao texto citado de La Perriére: "governo é uma correta disposição das coisas de que se
assume o encargo para conduzi-las a um fim conveniente". O governo tem uma finalidade, e nisto
ele também se opõe claramente à soberania. Certamente nos textos filosóficos e jurídicos a
soberania nunca foi apresentada como um direito puro e simples. Nunca foi dito nem pelos juristas
nem afortiori pelos teólogos que o soberano legítimo teria razões para exercer o poder. Para ser
um bom soberano, é preciso que tenha uma finalidade: "o bem comum e a salvação de todos".


Tomarei como exemplo um texto do final do século XVII em que seu autor, Pufendorf, diz: "Só lhe
será conferida autoridade soberana para que ele se sirva dela para obter e manter a utilidade
pública". Um soberano não deve se beneficiar de nada se ele não beneficiar o Estado. Em que
consiste este bem comum ou esta salvação de todos que regularmente são colocados como o
próprio fim da soberania? Se examinarmos o conteúdo que os juristas e teólogos dão ao bem
comum, vemos que há bem comum quando os súditos obedecem, e sem exceção, às leis,
exercem bem os encargos que lhe são atribuídos, praticam os ofícios a que são destinados,
respeitam a ordem estabelecida, ao menos na medida em que esta ordem é conforme às leis que
Deus impôs à natureza e aos homens. Isto quer dizer que o bem público é essencialmente a
obediência à lei: seja a do soberano terreno seja a do soberano absoluto, Deus. De todo modo, o
que caracteriza a finalidade da soberania é este bem comum, geral, é apenas a submissão à
soberania. A finalidade da soberania é circular, isto é, remete ao próprio exercício da soberania. O
bem é a obediência à lei, portanto o bem a que se propõe a soberania é que as pessoas obedeçam
a ela. Qualquer que seja a estrutura teórica, a justificação moral e os efeitos práticos, isto não é
muito diferente de Maquiavel quando afirmava que o objetivo principal do príncipe devia ser manter
seu principado. Estrutura essencialmente circular da soberania ou do principado com relação a si
mesmo.

Com as tentativas de definição de governo de La Perriére, vê-se aparecer um outro tipo de
finalidade. O governo é definido como uma maneira correta de dispor as coisas para conduzi-las
não ao bem comum, como diziam os textos dos juristas, mas a um objetivo adequado a cada uma
das coisas a governar. O que implica, em primeiro lugar, uma pluralidade de fins específicos, como
por exemplo fazer com que se produza a maior riqueza possível, que se forneça às pessoas meios
de subsistência suficientes, e mesmo na maior quantidade possível, que a população possa se
multiplicar, etc. Portanto, uma série de finalidades específicas que são o próprio objetivo do
governo. E para atingir estas diferentes finalidades deve-se dispor as coisas. E esta palavra dispor
é importante, na medida em que, para a soberania, o que permitia atingir sua finalidade, isto é, a
obediência à lei, era a própria lei; lei e soberania estavam indissoluvelmente ligadas. Ao contrário,
no caso da teoria do governo não se trata de impor uma lei aos homens, mas de dispor as coisas,
isto é, utilizar mais táticas do que leis, ou utilizar ao máximo as leis como táticas. Fazer, por vários
meios, com que determinados fins possam ser atingidos. Isto assinala uma ruptura importante:
enquanto a finalidade da soberania é ela mesma, e seus instrumentos têm a forma de lei, a
finalidade do governo está nas coisas que ele dirige, deve ser procurada na perfeição, na
intensificação dos processos que ele dirige e os instrumentos do governo, em vez de serem
constituídos por leis, são táticas diversas. Na perspectiva do governo, a lei não é certamente o
instrumento principal; e este é um tema freqüente nos séculos XVII e XVIII que aparece nos textos
dos economistas e dos fisiocratas, quando explicam que não é certamente através da lei que se
pode atingir os fins do governo.

Finalmente, quarta observação sobre o texto de La Perriére. Ele diz que um bom governante deve
ter paciência, soberania e diligência. O que entende por paciência? Para explicá-la, ele toma o
exemplo do "rei dos insetos do mel", isto é, o zangão, dizendo que o zangão reina sobre a colmeia
sem ter necessidade do ferrão; Deus quis mostrar com isso, de modo místico, diz ele, que o
verdadeiro governante não deve ter necessidade de ferrão, isto é, de um instrumento mortífero, de
uma espada, para exercer seu governo; deve ser mais paciente que colérico; não é o direito de
matar, não é o direito de fazer prevalecer sua força que deve ser essencial a seu personagem. E
que conteúdo positivo é possível dar a esta ausência de ferrão? A sabedoria e a diligência.
Sabedoria: não, como para a tradição, o conhecimento das leis humanas e divinas, da justiça ou da
eqüidade, mas o conhecimento das coisas, dos objetivos que deve procurar atingir e da disposição
para atingi-los; é este conhecimento que constituirá a sabedoria do soberano. Diligência: aquilo
que faz com que o governante só deva governar na medida em que se considere e aja como se
estivesse ao serviço dos governados. E La Perriére se refere mais uma vez ao exemplo do pai de
família, que é o que se levanta antes das outras pessoas da casa, que se deita depois dos outros,
que pensa em tudo, que cuida de tudo pois se considera a serviço da casa. Vê-se como esta
caracterização do governo é diferente da caracterização do príncipe que se encontra ou que se
pensava encontrar em Maquiavel.


Creio que este esboço da teoria da arte de governar não ficou pairando no ar no século XVI. Não
se limitou somente aos teóricos da política. Pode-se situar suas relações com a realidade: em
primeiro lugar, a teoria da arte de governar esteve ligada desde o século XVI ao desenvolvimento
do aparelho administrativo da monarquia territorial: aparecimento dos aparelhos de governo; em
segundo lugar, esteve ligada a um conjunto de análises e de saberes que se desenvolveram a
partir do final do século XVI e que adquiriram toda sua importância no século XVII: essencialmente

o conhecimento do Estado, em seus diversos elementos, dimensões e nos fatores de sua força,
aquilo que foi denominado de estatística, isto é, ciência do Estado; em terceiro lugar, esta arte de
governar não pode deixar de ser relacionada com o mercantilismo e o cameralismo.
Esquematicamente, se poderia dizer que a arte de governar encontra, no final do século XVI e
início do século XVII, uma primeira forma de cristalização, ao se organizar em torno do tema de
uma razão de Estado. Razão de Estado entendida não no sentido pejorativo e negativo que hoje
lhe é dado (ligado à infração dos princípios do direito, da eqüidade ou da humanidade por interesse
exclusivo do Estado), mas no sentido positivo e pleno: o Estado se governa segundo as regras
racionais que lhe são próprias, que não se deduzem nem das leis naturais ou divinas, nem dos
preceitos da sabedoria ou da prudência; o Estado, como a natureza, tem sua racionalidade própria,
ainda que de outro tipo. Por sua vez, a arte de governo, em vez de fundar-se em regras
transcendentes, em um modelo cosmológico ou em um ideal filosófico-moral, deverá encontrar os
princípios de sua racionalidade naquilo que constitui a realidade específica do Estado. Os
elementos desta primeira racionalidade estatal serão estudados nas próximas aulas. Mas desde
logo se pode dizer que esta razão de Estado constituiu para o desenvolvimento da arte do governo
uma espécie de obstáculo que durou até o início do século XVIII.

E isto por algumas razões. Em primeiro lugar, razões históricas em sentido estrito: a série de
grandes crises do século XVII, como a guerra dos 30 anos com suas devastações; em meados do
século, as grandes sedições camponesas e urbanas; finalmente, no final do século, a crise
financeira, a crise dos meios de subsistência que determinou a política das monarquias ocidentais.
A arte de governar só podia se desenvolver, se pensar, multiplicar suas dimensões em períodos de
expansão, e não em momentos de grandes urgências militares, políticas e econômicas, que não
cessaram de assediar o século XVII.

Em segundo lugar, esta arte de governo, formulada no século XVI, também foi bloqueada no
século XVII por outras razões, que dizem respeito ao que se poderia chamar de estrutura
institucional e mental. A primazia do problema da soberania, como questão teórica e princípio de
organização política, foi um fator fundamental deste bloqueio da arte de governar. Enquanto a
soberania foi o problema principal, enquanto as instituições de soberania foram as instituições
fundamentais e o exercício do poder foi pensado como exercício da soberania, a arte do governo
não pôde se desenvolver de modo específico e autônomo. Temos um exemplo disto no
mercantilismo. Ele foi a primeira sanção desta arte de governar ao nível tanto das práticas políticas
quanto dos conhecimentos sobre o Estado; neste sentido, podemos dizer que o mercantilismo
representa um primeiro limiar de racionalidade nesta arte de governar, de que o texto de La
Perriére indica somente alguns princípios, mais morais que reais. O mercantilismo é a primeira
racionalização do exercício do poder como prática de governo; é com ele que se começa a
constituir um saber sobre o Estado que pôde ser utilizável como tática de governo. Entretanto, o
mercantilismo foi bloqueado, freado, porque se dava como objetivo essencialmente a força do
soberano: o que fazer não tanto para que o pais seja rico mas para que o soberano possa dispor
de riquezas, constituir exércitos para poder fazer política. E quais são os instrumentos que o
mercantilismo produz? Leis, ordens, regulamentos, isto é, as armas tradicionais do soberano.
Objetivo: o soberano; instrumentos: os mesmos da soberania. O mercantilismo, assim, procurava
introduzir as possibilidades oferecidas por uma arte refletida de governar no interior de uma
estrutura institucional e mental da soberania, que ao mesmo tempo a bloqueava.

De modo que, durante o século XVII e até o desaparecimento dos temas mercantilistas no início do
século XVIII, a arte do governo marcou passo, limitada por duas coisas. Por um lado, um quadro
muito vasto, abstrato e rígido: a soberania, como problema e como instituição. Esta arte de governo
tentou compor com a teoria da soberania, isto é, procurou-se deduzir de uma teoria renovada da
soberania os princípios diretores de uma arte de governo. É neste sentido que os juristas do século


XVII formulam ou reatualizam a teoria do contrato: a teoria do contrato será precisamente aquela
através da qual o contrato fundador - o compromisso recíproco entre o soberano e os súditos - se
tornará uma matriz teórica a partir de que se procurará formular os princípios gerais de uma arte do
governo. Que a teoria do contrato, que esta reflexão sobre as relações entre o soberano e seus
súditos tenha desempenhado um papel muito importante na teoria do direito público, o exemplo de
Hobbes o prova com evidência (mesmo se o que Hobbes quis formular tenham sido os princípios
diretores de uma arte de governar, na verdade ele não foi além da formulação dos princípios gerais
do direito público).

Portanto, por um lado, um quadra muito vasto, abstrato, rígido da soberania e, por outro, um
modelo bastante estreito, débil, inconsistente: o da família. Isto é, a arte de governar procurou
fundar-se na forma geral da soberania, ao mesmo tempo em que não pôde deixar de apoiar-se no
modelo concreto da família; por este motivo, ela foi bloqueada por esta idéia de economia, que
nesta época ainda se referia apenas a um pequeno conjunto constituído pela família e pela casa.
Com o Estado e o soberano de um lado, com o pai de família e sua casa de outro, a arte de
governo não podia encontrar sua dimensão própria.

Como se deu o desbloqueio da arte de governar? Alguns processos gerais intervieram: expansão
demográfica do século XVII, ligada á abundância monetária e por sua vez ao aumento da produção
agrícola através dos processos circulares que os historiadores conhecem bem. Se este é o quadro
geral, pode-se dizer, de modo mais preciso, que o problema do desbloqueio da arte de governar
está em conexão com a emergência do problema da população; trata-se de um processo sutil que,
quando reconstituído no detalhe, mostra que a ciência do governo, a centralização da economia
em outra coisa que não a família e o problema da população estão ligados.

Foi através do desenvolvimento da ciência do governo que a economia pôde centralizar-se em um
certo nível de realidade que nós caracterizamos hoje como econômico; foi através do
desenvolvimento desta ciência do governo que se pôde isolar os problemas específicos da
população; mas também se pode dizer que foi graças á percepção dos problemas específicos da
população, graças ao isolamento deste nível de realidade, que chamamos a economia, que o
problema do governo pôde enfim ser pensado, sistematizado e calculado fora do quadro jurídico da
soberania. E a estatística, que no mercantilismo não havia mais podido funcionar a não ser no
interior e em beneficio de uma administração monárquica que também funcionava nos moldes da
soberania, tornar-se-á o principal fator técnico, ou um dos principais fatores técnicos, deste
desbloqueio.

De que modo o problema da população permitirá desbloquear a arte de governo? Em primeiro
lugar, a população - a perspectiva da população, a realidade dos fenômenos próprios à população
- permitirá eliminar definitivamente o modelo da família e centralizar a noção de economia em
outra coisa. De fato, se a estatística tinha até então funcionado no interior do quadro administrativo
da soberania, ela vai revelar pouco a pouco que a população tem uma regularidade própria:
número de mortos, de doentes, regularidade de acidentes, etc.; a estatística revela também que a
população tem características próprias e que seus fenômenos são irredutíveis aos da família: as
grandes epidemias, a mortalidade endêmica, a espiral do trabalho e da riqueza, etc.; revela
finalmente que através de seus deslocamentos, de sua atividade, a população produz efeitos
econômicos específicos. Permitindo quantificar os fenômenos próprios à população, revela uma
especificidade irredutível ao pequeno quadro familiar. A família como modelo de governo vai
desaparecer. Em compensação, o que se constitui nesse momento é a família como elemento no
interior da população e como instrumento fundamental.

Em outras palavras, até o advento da problemática da população, a arte de governar só podia ser
pensada a partir do modelo da família, a partir da economia entendida como gestão da família. A
partir do momento em que, ao contrário, a população aparece como absolutamente irredutível à
família, esta passa para um plano secundário em relação à população, aparece como elemento
interno à população, e portanto não mais como modelo, mas como segmento. E segmento
privilegiado, na medida em que, quando se quiser obter alguma coisa da população - quanto aos
comportamentos sexuais, à demografia, ao consumo, etc. - é pela família que se deverá passar.
De modelo, a família vai tornar-se instrumento, e instrumento privilegiado, para o governo da


população e não modelo quimérico para o bom governo. Este deslocamento da família do nível de
modelo para o nível de instrumentalização me parece absolutamente fundamental, e é a partir da
metade do século XVIII que a família aparece nesta dimensão instrumental em relação à
população, como demonstram as campanhas contra a mortalidade, as campanhas relativas ao
casamento, as campanhas de vacinação, etc. Portanto, aquilo que permite à população
desbloquear a arte de governar é o fato dela eliminar o modelo da família.

Em segundo lugar, a população aparecerá como o objetivo final do governo. Pois qual pode ser o
objetivo do governo? Não certamente governar, mas melhorar a sorte da população, aumentar sua
riqueza, sua duração de vida, sua saúde, etc. E quais são os instrumentos que o governo utilizará
para alcançar estes fins, que em certo sentido são imanentes à população? Campanhas, através
das quais se age diretamente sobre a população, e técnicas que vão agir indiretamente sobre ela e
que permitirão aumentar, sem que as pessoas se dêem conta, a taxa de natalidade ou dirigir para
uma determinada região ou para uma determinada atividade os fluxos de população, etc. A
população aparece, portanto, mais como fim e instrumento do governo que como força do
soberano; a população aparece como sujeito de necessidades, de aspirações, mas também como
objeto nas mãos do governo; como consciente, frente ao governo, daquilo que ela quer e
inconsciente em relação àquilo que se quer que ela faça. O interesse individual - como consciência
de cada indivíduo constituinte da população - e o interesse geral - como interesse da população,
quaisquer que sejam os interesses e as aspirações individuais daqueles que a compõem -
constituem o alvo e o instrumento fundamental do governo da população. Nascimento portanto de
uma arte ou, em todo caso, de táticas e técnicas absolutamente novas.

Em terceiro lugar, a população será o ponto em torno do qual se organizará aquilo que nos textos
do século XVI se chamava de paciência do soberano, no sentido em que a população será o objeto
que o governo deverá levar em consideração em suas observações, em seu saber, para conseguir
governar efetivamente de modo racional e planejado. A constituição de um saber de governo é
absolutamente indissociável da constituição de um saber sobre todos os processos referentes à
população em sentido lato, daquilo que chamamos precisamente de "economia . A economia
política pôde se constituir a partir do momento em que, entre os diversos elementos da riqueza,
apareceu um novo objeto, a população. Apreendendo a rede de relações contínuas e múltiplas
entre a população, o território, a riqueza, etc., se constituirá uma ciência, que se chamará
economia política, e ao mesmo tempo um tipo de intervenção característico do governo: a
intervenção no campo da economia e da população. Em suma, a passagem de uma arte de
governo para uma ciência política, de um regime dominado pela estrutura da soberania para um
regime dominado pelas técnicas de governo, ocorre no século XVIII em torno da população e, por
conseguinte, em torno do nascimento da económia política.

Com isto não quero de modo algum dizer que a soberania deixou de desempenhar um papel a
partir do momento em que a arte do governo começou a tornar-se ciência política. Diria mesmo o
contrário: nunca o problema da soberania foi colocado com tanta acuidade quanto neste momento,
na medida em que se tratava precisamente não mais, como nos séculos XVI e XVII, de procurar
deduzir uma arte de governo de uma teoria da soberania, mas de encontrar, a partir do momento
em que existia uma arte de governo, que forma jurídica, que forma institucional, que fundamento de
direito se poderia dar á soberania que caracteriza um Estado.

Tomemos, por exemplo, dois textos de Rousseau. Em primeiro lugar, o artigo Economia Política da
Enciclopédia, o primeiro cronologicamente. Nele, Rouseau coloca o problema do governo e da arte
de governar nos seguintes termos: a palavra economia designa essencialmente a gestão dos bens
da família pelo pai; mas este modelo não 'deve mais ser aceito, mesmo se era este o modelo a que
as pessoas se referiam no passado; atualmente, diz Rousseau, sabemos que a economia política
não é mais a economia familiar; sem referir-se explicitamente à fisiocracia, à estatística ou ao
problema geral da população, ele registra bem uma ruptura: o fato de que a "economia política"
tem um sentido totalmente novo que não pode mais ser reduzido ao velho modelo da família. Seu
objetivo portanto neste artigo é o de definir uma arte de governar. Em segundo lugar, O Contrato
Social. Nele, o problema será: como se pode formular, com noções tais como natureza, contrato,
vontade geral, um princípio geral de governo que substitua tanto o princípio jurídico da soberania
quanto os elementos através dos quais se pode definir e caracterizar uma arte de governo.


Portanto, o problema da soberania não é de modo algum eliminado pela emergência de uma nova
arte de governo; ao contrário, ele torna-se ainda mais agudo que antes.

A disciplina também não é eliminada; é certo que sua instauração - todas as instituições no interior
da qual ela se desenvolveu no século XVII e início do século XVIII, a escola, as oficinas, os
exércitos, etc. - só se compreende a partir do desenvolvimento da grande monarquia
administrativa. Mas nunca a disciplina foi tão importante, tão valorizada quanto a partir do momento
em que se procurou gerir a população. E gerir a população não queria dizer simplesmente gerir a
massa coletiva dos fenômenos ou geri-los somente ao nível de seus resultados globais. Gerir a
população significa geri-la em profundidade, minuciosamente, no detalhe. A idéia de um novo
governo da população torna ainda mais agudo o problema do fundamento da soberania e ainda
mais aguda a necessidade de desenvolver a disciplina. Devemos compreender as coisas não em
termos de substituição de uma sociedade de soberania por uma sociedade disciplinar e desta por
uma sociedade de governo. Trata-se de um triângulo: soberania-disciplina-gestão governamental,
que tem na população seu alvo principal e nos dispositivos de segurança seus mecanismos
essenciais.

O que gostaria de mostrar é a relação histórica profunda entre: o movimento que abala a constante
da soberania colocando o problema, que se tornou central, do governo; o movimento que faz
aparecer a população como um dado, como um campo de intervenção, como o objeto da técnica
de governo; e o movimento que isola a economia como setor específico da realidade e a economia
política como ciência e como técnica de intervenção do governo neste campo da realidade. São
estes três movimentos - governo, população, economia política - que constituem, a partir do
século XVIII, um conjunto que ainda não foi desmembrado.

Para concluir, gostaria de dizer o seguinte. O que pretendo fazer nestes próximos anos é uma
história da governamentalidade. E com esta palavra quero dizer três coisas:

1 - o conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e' reflexões, cálculos e táticas
que permitem exercer esta forma bastante específica e complexa de poder, que tem por alvo a
população, por forma principal de saber a economia política e por instrumentos técnicos essenciais
os dispositivos de segurança.

2 - a tendência que em todo o Ocidente conduziu incessantemente, durante muito tempo, à
preeminência deste tipo de poder, que se pode chamar de governo, sobre todos os outros -
soberania, disciplina, etc. - e levou ao desenvolvimento de uma série de aparelhos específicos de
governo e de um conjunto de saberes.

3 - resultado do processo através do qual o Estado de justiça da Idade Média, que se tornou nos
séculos XV e XVI Estado administrativo, foi pouco a pouco governamentalizado.

Sabemos que fascínio exerce hoje o amor pelo Estado ou o horror do Estado; como se está fixado
no nascimento do Estado, em sua história, seus avanços, seu poder e seus abusos, etc. Esta
supervalorização do problema do Estado tem uma forma imediata, efetiva e trágica: o lirismo do
monstro frio frente aos indivíduos; a outra forma é a análise que consiste em reduzir o Estado a um
determinado número de funções, como por exemplo ao desenvolvimento das forças produtivas, à
reprodução das relações de produção, concepção do Estado que o torna absolutamente essencial
como alvo de ataque e como posição privilegiada a ser ocupada. Mas o Estado - hoje
provavelmente não mais do que no decurso de sua história - não teve esta unidade, esta
individualidade, esta funcionalidade rigorosa e direi até esta importância. Afinal de contas, o Estado
não é mais do que uma realidade composita e uma abstração mistificada, cuja importância é muito
menor do que se acredita. O que é Importante para nossa modernidade, para nossa atualidade,
não é tanto a estatização da sociedade mas o que chamaria de governamentalização do Estado.

Desde o século XVIII, vivemos na era do governamentalidade. Governamentalização do Estado,
que é um fenômeno particularmente astucioso, pois se efetivamente os problemas da
governamentalidade, as técnicas de governo se tornaram a questão política fundamental e o
espaço real da luta política, a governamentalização do Estado foi o fenômeno que permitiu ao


Estado sobreviver. Se o Estado é hoje o que é, é graças a esta governamentalidade, ao mesmo
tempo interior e exterior ao Estado. São as táticas de governo que permitem definir a cada instante

o que deve ou não competir ao Estado, o que é público ou privado do que é ou não estatal, etc.;
portanto o Estado, em sua sobrevivência e em seus limites, deve ser compreendido a partir das
táticas gerais da governamentalidade.
Talvez se possa assim, de maneira global, pouco elaborada e portanto inexata, reconstruir as
grandes formas, as grandes economias de poder no Ocidente: em primeiro lugar, o Estado de
justiça, nascido em uma territorialidade de tipo feudal e que corresponderia grosso modo a uma
sociedade da lei; em segundo lugar, o Estado administrativo, nascido em uma territorialidade de
tipo fronteiriço nos séculos XV-XVI e que corresponderia a uma sociedade de regulamento e de
disciplina; finalmente, um Estado de governo que não é mais essencialmente definido por sua
territorialidade, pela superfície ocupada, mas pela massa da população, com seu volume, sua
densidade, e em que o território que ela ocupa é apenas um componente. Este Estado de governo
que tem essencialmente como alvo a população e utiliza a instrumentalização do saber econômico,
corresponderia a uma sociedade controlada pelos dispositivos de segurança.

Nas próximas lições, pretendo mostrar como a governamentalidade nasceu a partir de um modelo
arcaico, o da pastoral cristã, apoiou-se em seguida em uma técnica diplomático-militar e
finalmente como esta governamentalidade só pôde adquirir suas dimensões atuais graças a uma
série de instrumentos particulares, cuja formação é contemporânea da arte de governo e que se
chama, no velho sentido da palavra, o dos séculos XVII e XVIII, a policia. Pastoral,novas técnicas
diplomático-militares e finalmente a polícia: eis os três pontos de apoio a partir de que se pôde
produzir este fenômeno fundamental na história do Ocidente: a governamentalização do Estado.



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