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segunda-feira, 15 de abril de 2013

Microfísica do Poder - Michel Foucault - parte 13


NÃO AO SEXO REI

Bernard Henri-Lévy:

Você inaugura, com A Vontade de Saber, uma história da sexualidade que, ao que tudo indica, é
monumental. O que justifica hoje, para você, Michel Foucault, um empreendimento de tal
amplitude?

Michel Foucault:

De tal amplitude? Não, não, muito mais de tal exiguidade. Não quero fazer a crônica dos
comportamentos sexuais através das épocas e das civilizações. Quero seguir um fio muito mais
tênue: o fio que, em nossas sociedades, durante tantos séculos ligou o sexo e a procura da
verdade.

B.H. -L.:
Em que sentido precisamente?

M.F.:

O problema é o seguinte: como se explica que, em uma sociedade como a nossa, a sexualidade
não seja simplesmente aquilo que permita a reprodução da espécie, da família, dos indivíduos?
Não seja simplesmente alguma coisa que dê prazer e gozo? Como é possível que ela tenha sido
considerada como o lugar privilegiado em que nossa "verdade" profunda ê lida, é dita? Pois o
essencial é que, a partir do cristianismo, o Ocidente não parou de dizer "Para saber quem és,
conheças teu sexo". O sexo sempre foi o núcleo onde se aloja, juntamente com o devir de nossa
espécie, nossa "verdade" de sujeito humano.


A confissão, o exame de consciência, toda uma insistência sobre os segredos e a importância da
carne não foram somente um meio de proibir o sexo ou de afastá-lo o mais possível da
consciência; foi uma forma de colocar a sexualidade no centro da existência e de ligar a salvação
ao domínio de seus movimentos obscuros. O sexo foi aquilo que, nas sociedades cristãs, era
preciso examinar, vigiar, confessar, transformar em discurso.

B. H.-L.:
Daí a tese paradoxal que este primeiro volume defende: nossas sociedades não pararam de falar
da sexualidade e de fazê-la falar, ao invés de fazer dela o seu tabu, a sua principal proibição...

M.F.:

Poder falar da sexualidade se podia muito bem e muito, mas somente para proibi-la. Mas eu quis
enfatizar duas coisas importantes. Primeiro, que o esclarecimento, a "iluminação" da sexualidade


não foi feita só nos discursos mas também na realidade das instituições e das práticas. Segundo,
que as proibições existem, são numerosas e fortes. Mas que fazem parte de uma economia
complexa em que existem ao lado de incitações, de manifestações, de valorizações. São sempre
interditos que são enfatizados. Gostaria de mudar um pouco o cenário; em todo caso, apreender o
conjunto dos dispositivos.

Além disso, você bem sabe que fizeram de mim o melancólico historiador das proibições e do
poder repressivo, alguém que sempre conta histórias bipolares: a loucura e seu enclausuramento,
a anomalia e sua exclusão, a delinqüência e seu aprisionamento. Ora, meu problema sempre
esteve do lado de um outro pólo: a verdade. Como o poder que se exerce sobre a loucura produziu

o discurso "verdadeiro" da psiquiatria? O mesmo em relação à sexualidade: retomar a vontade de
saber onde o poder sobre o sexo se embrenhou. Não quero fazer a sociologia histórica de uma
proibição, mas a história política de uma produção de "verdade".
B. H. -L.:
Uma nova revolução no conceito de história? A aurora de uma outra "nova história"?

M.F.:

Há anos, os historiadores ficaram muito orgulhosos quando descobriram que podiam fazer não
somente a história das batalhas, dos reis e das instituições, mas também a história da economia.
Ei-los todos estupefatos por terem os mais maliciosos dentre eles mostrado que também se podia
fazer a história dos sentimentos, dos comportamentos, dos corpos. Que a história do Ocidente não
seja dissociável da maneira pela qual a "verdade" é produzida e assinala seus efeitos, eles logo
compreenderão...

Vivemos em uma sociedade que em grande parte marcha "ao compasso da verdade" - ou seja,
que produz e faz circular discursos que funcionam como verdade, que passam por tal e que detêm
por este motivo poderes específicos. A produção de discursos "verdadeiros" (e que, além disso,
mudam incessantemente) é um dos problemas fundamentais do Ocidente. A história da "verdade"
- do poder próprio aos discursos aceitos como verdadeiros - está totalmente por ser feita.

Quais são os mecanismos positivos que, produzindo a sexualidade desta ou daquela forma,
ocasionam efeitos de miséria?

Em todo caso, no que me diz respeito, gostaria de estudar todos os mecanismos que, em nossa
sociedade, convidam, incitam, coagem a falar do sexo.

B. H.-L.:
Alguns responderiam que, apesar desta explicitação discursiva, a repressão, a miséria sexual
também existem...

M.F.:

Sim, me fizeram esta objeção. Você tem razão: todos nós vivemos uns mais, outros menos - em
um estado de miséria sexual. Mas, efetivamente, não trato desta experiência de vida em meu
livro...

B. H.-L.:
Por que? Trata-se de uma escolha deliberada?

M.F.:

Quando eu abordar, nos volumes seguintes, os estudos concretos - a respeito das mulheres, das
crianças, dos perversos - tentarei analisar as formas e as condições desta miséria. Mas, no


momento, trata-se de fixar o método. O problema é saber se esta miséria deve ser explicada
negativamente por uma proibição fundamental ou por um interdito relativo a uma situação
econômica ("Trabalhem, não façam amor"); ou se ela é o efeito de procedimentos muito mais
complexos e muito mais positivos.

B. H. -L.:
O que poderia ser, neste caso, uma explicação "positiva"?

M.F.:

Farei uma comparação presunçosa. O que fez Marx quando, em sua análise do capital, ele
encontrou o problema da miséria operária? Ele recusou a explicação habitual, que fazia desta
miséria o efeito de uma escassez natural ou de um roubo organizado. E, essencialmente, ele disse:
considerando o que vem a ser a produção capitalista em suas leis fundamentais, ela não pode
deixar de produzir miséria. O capitalismo não tem como razão de ser privar os trabalhadores dos
meios de subsistência. Mas ele não pode se desenvolver sem privá-los dos meios de subsistência.
Marx substituiu a denúncia do roubo pela análise da produção.

Mutatis mutandis,

foi um pouco isto o que eu quis fazer. Não se trata de negar a miséria sexual, mas também não se
trata de explicá-la negativamente por uma repressão. O problema está em apreender quais são os
mecanismos positivos que, produzindo a sexualidade desta ou daquela maneira, acarretam efeitos
de miséria.

Um exemplo de que tratarei em próximo volume: no começo do século XVIII, de repente se dá uma
importância enorme à masturbação infantil; perseguida por toda parte como uma epidemia
repentina, terrível, capaz de comprometer toda a espécie humana.

Será necessário admitir que a masturbação das crianças de repente se tornou inaceitável para uma
sociedade capitalista em vias de desenvolvimento? Esta hipótese de alguns "reichianos" recentes
não me parece satisfatória.

Ao contrário, na época o importante era a reorganização das relações entre crianças e adultos,
pais, educadores, era a intensificação das relações intrafamiliares, era a criança transformada em
problema comum para os pais, as instituições educativas, as instâncias de higiene pública, era a
criança como semente das populações futuras. Na encruzilhada do corpo e da alma, da saúde e da
moral, da educação e do adestramento, o sexo das crianças tornou-se ao mesmo tempo um alvo e
um instrumento de poder. Foi constituída uma "sexualidade das crianças" específica, precária,
perigosa, a ser constantemente vigiada.

Daí uma miséria sexual da infância e da adolescência de que nossas gerações ainda não se
livraram; mas o objetivo procurado não era esta miséria, não era proibir. O fim era constituir,
através da sexualidade infantil, tornada subitamente importante e misteriosa, uma rede de poder
sobre a infância.

B. H.-L.:
Esta idéia de que a miséria sexual vem da repressão, esta idéia de que, para ser feliz, é preciso
liberar nossas sexualidades, é no fundo a idéia dos sexólogos, dos médicos e dos policiais do
sexo...

M.F.:

Sim. E é por isso que eles nos colocam uma armadilha perigosa. Eles dizem mais ou menos o
seguinte: "Vocês têm uma sexualidade, esta sexualidade está ao mesmo tempo frustada e muda,
proibições hipócritas a reprimem. Então venham a nós, digam e mostrem tudo isto a nós, revelem


seus infelizes segredos a nós...

Este tipo de discurso é, na verdade, um formidável instrumento de controle e de poder. Ele utiliza,
como sempre, o que dizem as pessoas, o que elas sentem, o que elas esperam. Ele explora a
tentação de acreditar que é suficiente, para ser feliz, ultrapassar o umbral do discurso e eliminar
algumas proibições. E de fato acaba depreciando e esquadrinhando os movimentos de revolta e
liberação...

B. H.-L.:
Daí, suponho, o mal-entendido de alguns comentadores: "Segundo Foucault, repressão e
liberação do sexo dão no mesmo...". Ou ainda: "O M.L.A.C. e o Laissez-les vivre no fundo têm o
mesmo discurso...

M.F.:

Sim! A este respeito é preciso clarificar as coisas. Efetivamente, me fizeram dizer que entre a
linguagem da censura e a da contra-censura, entre o discurso dos guardiães do pudor e o da
liberação do sexo não há verdadeira diferença. Dizem que eu colocava todos no mesmo saco, para
afogá-los como uma ninhada de gatos. Radicalmente errado: não foi isto que eu quis dizer. Além
disso, o importante é que de forma alguma eu disse tal coisa.

B. H.-L.:
Você admite de qualquer forma que existem elementos, enunciados comuns...

M.F.:

Mas uma coisa é o enunciado e outra o discurso. Existem elementos táticos comuns e estratégias
opostas.

B. H.-L.:
Por exemplo?

M.F.:

Acho que os movimentos ditos de "liberação sexual" devem ser compreendidos como movimentos
de afirmação "a partir" da sexualidade. Isto quer dizer duas coisas: são movimentos que partem da
sexualidade, do dispositivo de sexualidade no interior do qual nós estamos presos, que fazem com
que ele funcione até seu limite; mas, ao mesmo tempo, eles se deslocam em relação a ele, se
livram dele e o ultrapassam.

B. H.-L.:
Em que sentido eles ultrapassam?

M.F.:

Tomemos o caso da homossexualidade. Foi por volta de 1870 que os psiquiatras começaram a
constitui-la como objeto de análise médica: ponto de partida, certamente, de toda uma série de
intervenções e de controles novos.

É o início tanto do internamento dos homossexuais nos asilos, quanto da determinação de
curá-los. Antes eles eram percebidos como libertinos e às vezes como delinqüentes (dai as
condenações que podiam ser bastante severas - as vezes o fogo, ainda no século XVIII - mas que
eram inevitavelmente raras). A partir de então, todos serão percebidos no interior de um
parentesco global com os loucos, como doentes do instinto sexual. Mas, tomando ao pé da letra


tais discursos e contornando-os, vemos aparecer respostas em forma de desafio: está certo, nós
somos o que vocês dizem, por natureza, perversão ou doença, como quiserem. E, se somos
assim, sejamos assim e se vocês quiserem saber o que nós somos, nós mesmos diremos, melhor
que vocês. Toda uma literatura da homossexualidade, muito diferente das narrativas libertinas,
aparece no final do século XIX: veja Wilde ou Gide. E a inversão estratégica de uma "mesma"
vontade de verdade.

B. H.-L.:
Na verdade é isto que acontece com todas as minorias, as mulheres, os jovens, os negros
americanos...

M.F.:

Certamente. Durante muito tempo se tentou fixar as mulheres à sua sexualidade. "Vocês são
apenas o seu sexo", dizia-se a elas há séculos. E este sexo, acrescentaram os médicos, é frágil,
quase sempre doente e sempre indutor de doença. "Vocês são a doença do homem". E este
movimento muito antigo se acelerou no século XVIII, chegando à patologização da mulher: o corpo
da mulher torna-se objeto médico por excelência. Tentarei mais tarde fazer a história desta imensa
"ginecologia", no sentido amplo do termo.

Ora, os movimentos feministas aceitaram o desafio. Somos sexo por natureza? Muito bem,
sejamos sexo mas em sua singularidade e especificidade irredutíveis. Tiremos disto as
conseqüências e reinventemos nosso próprio tipo de existência, política, econômica, cultural...
Sempre o mesmo movimento: partir desta sexualidade na qual se procura colonizá-las e
atravessá-la para ir em direção a outras afirmações.

B. H.-L.:
Esta estratégia que você descreve, esta estratégia de duas faces ainda é, no sentido clássico, uma
estratégia de liberação? Ou será que se deveria dizer que liberar o sexo é, de agora em diante,
odiá-lo e ultrapassá-lo?

M.F.:

Está se esboçando atualmente um movimento que me parece estar indo contra a corrente do
"sempre mais sexo", do "sempre mais verdade no sexo" que existe há séculos: trata-se, não digo
de "redescobrir", mas de fabricar outras formas de prazer, de relações, de coexistências, de laços,
de amores, de intensidades. Tenho a impressão de escutar atualmente um sussurro "anti-sexo"
(não sou profeta, no máximo um diagnosticador), como se um esforço em profundidade estivesse
sendo feito para sacudir esta grande "sexografia" que faz com que decifremos o sexo como se
fosse segredo universal.

B. H.-L.:
Existem sinais para este diagnóstico?

M.F.:

Vejamos um caso. Um jovem escritor, Hervé Guibert, tinha escrito contos para crianças: nenhum
editor aceitou. Ele escreve então um outro texto, por sinal surpreendente e de aparência muito
"sexo". Esta era a condição para se fazer ouvir e ser editado. Ei-lo portanto publicado (trata-se de
La Mort Propagande). Leia este livro: ele parece ser o contrário desta escrita sexográfica que foi a
lei da pornografia e às vezes da boa literatura: ir progressivamente até chegar a nomear o que há
de mais inominável no sexo. Hervé começa logo com o pior e o extremo - "Vocês querem que se
fale dele, muito bem, em frente: vocês ouvirão o que nunca ouviram" - e com o infame material ele
constrói corpos, miragens, castelos, fusões, ternuras, raças, inebriamentos; todo o pesado
coeficiente do sexo se volatizou. Mas este é somente um exemplo do desafio "anti-sexo" de que


poderíamos encontrar outros sinais. Talvez seja o fim deste morno deserto da sexualidade, o fim
da monarquia do sexo.

B.H.-L.:

A menos que nós não estejamos consagrados, encavilhados ao sexo como a uma fatalidade. E isto
desde a infância, como se diz...

M.F.:

Justamente, olhe o que ocorre em relação às crianças. Diz-se: a vida das crianças é sua vida
sexual. Da mamadeira à puberdade, só se trata disto. Atrás do desejo de aprender a ler ou do
gosto pelas histórias em quadrinhos, existe ainda e sempre a sexualidade. Muito bem, você tem
certeza de que este tipo de discurso é efetivamente liberador? Você tem certeza de que ele não
aprisiona as crianças em um tipo de insularidade sexual? E se eles, afinal de contas, pouco se
importassem? Se a liberdade de não ser adulto consistisse justamente em não estar dependente
da lei, do princípio, do lugar comum - afinal de contas tão entediante - da sexualidade? Se fosse
possível estabelecer relações às coisas, ás pessoas, aos corpos relações polimorfas, não seria isto
a infância? Este polimorfismo é chamado pelos adultos, por questões de segurança, de
perversidade; que assim o colorem com os tons monótomos de seu próprio sexo.

B. H.-L.:
A criança é oprimida por aqueles que pretendem liberá-la?

M.F.:

Leia o livro de Schérer e Hocquenghem: ele mostra que a criança tem um regime de prazer para o
qual o código do "sexo" constitui uma verdadeira prisão.

B. H.-L.:
Um paradoxo?

M. F.:
Isto decorre da idéia de que a sexualidade não é fundamentalmente aquilo de que o poder tem
medo; mas de que ela é, sem dúvida e antes de tudo, aquilo através de que ele se exerce.

B. H. L.:
Mas veja os Estados autoritários: pode-se dizer que o poder não se exerce contra, mas através da
sexualidade?

M.F.:

Dois fatos recentes, aparentemente contraditórios. Há mais ou menos dezoito meses, a China
iniciou uma campanha contra a masturbação das crianças, exatamente no estilo da que o século
XVIII europeu conheceu (ela impede o trabalho, causa surdez, faz a espécie degenerar...). Em
compensação, antes do fim do ano, a URSS receberá, pela primeira vez, um congresso de
psicanalistas (é necessário que ela receba, já que lá não existem psicanalistas). Liberalização?
Degelo dos lados do inconsciente? Primavera da libido soviética contra o emburguesamento moral
dos chineses?

Nas tolices envelhecidas de Pequim e nas novas curiosidades dos soviéticos, vejo sobretudo o
duplo reconhecimento do fato de que, formulada e proibida, dita e interdita, a sexualidade é um
comutador que nenhum sistema moderno de poder pode dispensar. Temamos, temamos o
socialismo de aspecto sexual.


B.H.-L.:
O poder, em outras palavras, não é mais necessariamente aquilo que censura e aprisiona?
M.F.:
De modo geral, eu diria que o interdito, a recusa, a proibição, longe de serem as formas essenciais


do poder, são apenas seus limites, as formas frustradas ou extremas. As relações de poder são,
antes de tudo, produtivas.
B.H.-L.:
Esta é uma idéia nova em relação aos seus livros anteriores.
M.F.:
Se eu quisesse fazer pose e assumir uma coerência um pouco fictícia, eu diria que este sempre foi


o meu problema: efeitos de poder e produção de "verdade". Sempre me senti pouco à vontade
diante desta noção de ideologia tão utilizada nestes últimos anos. Ela foi utilizada para explicar
erros, ilusões, representações-anteparo, em suma, tudo que impede a formação de discursos
verdadeiros. Ela também foi utilizada para mostrar a relação entre o que se passa na cabeça das
pessoas e seu lugar nas relações de produção. A grosso modo, a economia do não verdadeiro.
Meu problema é a política do verdadeiro. Mas eu custei a perceber.
B.H.-L.:

Por que?

M.F.:

Por várias razões. Primeiro, porque o poder no Ocidente é o que mais se mostra, portanto o que
melhor se esconde: o que se chama a "vida política", a partir do século XIX, é (um pouco como a
Corte na época monárquica) a maneira pela qual o poder se representa. Não é ai nem assim que
ele funciona. As relações de poder estão talvez entre as coisas mais escondidas no corpo social.

Segundo, porque, desde o século XIX, a crítica da sociedade foi feita, essencialmente, a partir do
caráter efetivamente determinante da economia. Sã redução do "político", certamente, mas
também tendência a negligenciar as relações de poder elementares que podem ser constituintes
das relações econômicas.

Terceira razão: uma tendência que é comum às instituições, aos partidos, a toda uma corrente de
pensamento e de ação revolucionários e que consiste em só ver o poder na forma e nos aparelhos
de Estado. O que leva, quando nos voltamos para os indivíduos, a que só encontremos o poder em
suas cabeças (sob forma de representação, aceitação ou interiorização).

B. H.-L.: E, face a isto, o que você quis fazer?
M.F.:
Quatro coisas: pesquisar o que pode haver de mais escondido nas relações de poder;
apreendê-las até nas infra-estruturas econômicas; segui-las em suas formas não somente
estatais mas infra-estatais ou para-estatais; reencontrá-las em seu jogo material.
B.H.-L.:
A partir de que momento você fez este tipo de análise?
M.F.:



Se você quiser uma referência livresca, em Vigiar e Punir. Gostaria mais de dizer que foi a partir de
uma série de acontecimentos e de experiências feitas, depois de 1968, em relação à psiquiatria, à
delinqüência, à escolaridade, etc. Mas acredito que estes acontecimentos jamais poderiam ter
adquirido sentido e intensidade se não tivessem atrás de si estas duas sombras gigantescas que
foram o fascismo e o estalinismo. Se a miséria operária - esta sub-existência - fez com que o
pensamento político do século XIX girasse em torno da economia, o fascismo e o estalinismo -
estes dois sobre-poderes - estão na origem da inquietude política de nossas sociedades atuais.

Dai, dois problemas: Como funciona o poder? É suficiente que ele proíba violentamente para
funcionar realmente? E em seguida: será que ele sempre se precipita de cima para baixo, do
centro para a periferia?

B.H.-L.:

Na verdade eu vi, em A Vontade de Saber, este deslocamento, esta mudança essencial: desta vez
você nitidamente rompe com um naturalismo difuso que existia em seus livros precedentes...

M.F.:

O que você chama de "naturalismo" designa, creio eu, duas coisas. Uma certa teoria, a idéia de
que sob o poder, suas violências e artifícios, deve-se encontrar as próprias coisas em sua
vivacidade primitiva: atrás dos muros do asilo, a espontaneidade da loucura; através do sistema
penal, a febre generosa da delinqüência; sob o interdito sexual, o frescor do desejo. E também uma
certa escolha estético-moral: o poder é mal, é feio, é pobre, estéril, monótono, morto; e aquilo
sobre o qual o poder se exerce é bem, é bom, é rico.

B.H.-L.:

Sim. O tema comum à Vulgata marxista e ao neo-esquerdismo: "Debaixo dos paralelepípedos, a
natureza em festa".

M.F.:

Como quiser. Existem momentos em que estas simplificações são necessárias. Para de tempos
em tempos mudar o cenário e passar do pró ao contra, um tal dualismo é provisoriamente útil.

B.H.-L.:

E depois vem o tempo da parada, o momento da reflexão e do novo equilíbrio?

M.F.:

Ao contrário. Deve vir o momento da nova mobilidade e do novo deslocamento. Pois estas viradas
do pró ao contra logo se bloqueiam, nada podendo fazer a não ser se repetir, formando o que
Jacques Ranciêre chama a "doxa esquerdista". A partir do momento em que se repete
indefinidamente o mesmo refrão da cançoneta anti-repressiva, as coisas permanecem onde estão
e qualquer um pode cantar a mesma música, que ninguém prestará atenção. Esta inversão dos
valores e das verdades, de que eu falava antes, foi importante por não se limitar a simples vivas
(viva a loucura, viva a delinqüência, viva o sexo), mas por permitir novas estratégias. O que
freqüentemente me incomoda hoje - em última análise, o que me dói - é que todo este trabalho
feito durante quinze anos, muitas vezes com dificuldades e às vezes na solidão, só funciona para
alguns como sinal de pertencimento: estar do "lado correto", do lado da loucura, das crianças, da
delinqüência, do sexo.

B.H.-L.:

Não existe um lado correto?


M.F.: É preciso passar para o outro lado - o "lado correto" - mas para procurar se desprender
destes mecanismos que fazem aparecer dois lados, para dissolver esta falsa unidade, a "natureza"
ilusória deste outro lado de que tomamos o partido. E ai que começa o verdadeiro trabalho, o do
historiador do presente.

B.H.-L..: Em

muitos momentos você se definiu como "historiador". O que significa isto? Por que "historiador" e
não "filósofo"?

M.F.: Eu diria - usando uma forma tão ingênua quanto uma fábula para crianças - que a questão
da filosofia durante muito tempo foi: "neste mundo em que tudo morre, o que não desaparece? O
que somos nós, nós que morreremos, em relação ao que desaparece?" Acho que, desde o século
XIX, a filosofia não parou de se aproximar da questão: "O que acontece atualmente e o que somos
nós, nós que talvez não sejamos nada mais e nada além daquilo que acontece atualmente?" A
questão da filosofia é a questão deste presente que é o que somos. Daí a filosofia hoje ser
inteiramente política e inteiramente indispensável à política.

B.H.-L.:

Não há hoje também uma volta à mais clássica, à mais metafísica das filosofias?

M.F.:

Não acredito em nenhum tipo de volta. Eu diria apenas isto, em tom de brincadeira: o pensamento
dos primeiros séculos cristãos teve que responder à questão - "O que acontece atualmente? O
que é este tempo que é o nosso tempo? Como e quando se dará esta volta de Deus que nos foi
prometida? O que fazer com este tempo que parece excessivo? E o que somos nós, nós que
somos esta passagem?" Seria possível dizer que, nesta vertente da história, em que a revolução
deve se conter e ainda não aconteceu, nós colocamos a mesma questão: "Quem somos nós, nós
que estamos em excesso, neste tempo em que nâo acontece o que deveria acontecer?" Todo o
pensamento moderno, como toda a política, foi comandada pela questão da revolução.

B.H.-L.:

Esta questão da revolução, você continua a colocá-la e a refletir sobre ela? Em sua opinião, ela
continua sendo a questão por excelência?

M.F.:

Se a política existe desde o século XIX, é porque existiu a Revolução Francesa. Esta não é uma
espécie, uma região daquela. É a política que sempre se situa em relação à revolução. Quando
Napoleão dizia: "A forma moderna do destino é a política", ele simplesmente tirava as
conseqüências desta verdade, pois ele vinha depois da Revolução e antes do eventual retorno de
uma outra.

O retorno da Revolução, é exatamente este o nosso problema. É certo que, sem ele, a questão do
estalinismo seria somente uma questão de escola - simples problema de organização das
sociedades ou de validade do esquema marxista. Ora, a questão é bem outra no estalinismo. Você
sabe bem disso: é a própria desejabilidade da revolução que hoje causa problema...

B.H.-L.:

Você deseja a revolução? Você deseja alguma coisa que exceda o simples dever ético de lutar,
aqui e agora, ao lado destes ou daqueles, loucos e prisioneiros, oprimidos e miseráveis?

M.F.:


Não tenho resposta. Mas acho que fazer política sem ser um político é tentar saber com a maior
honestidade possível se a revolução é desejável. É explorar este terrível terreno movediço onde a
política pode se enterrar.

B.H.-L.: Se
a revolução não fosse mais desejável, a política continuaria sendo o que você diz que ela é?
M.F.:
Não, não creio. Seria preciso inventar outra ou alguma coisa para substitui-la. Nós vivemos talvez


o fim da política. Pois se é verdade que a política é um campo que foi aberto pela existência da
revolução e se a questão da revolução não pode mais ser colocada nestes termos, então a política
pode desaparecer.
B.H.-L.:
Voltemos à sua política, àquela que você consignou em A Vontade de Saber. Você diz: "Onde


existe poder, existe resistência". Você não restabelece esta natureza que há pouco você queria
descartar?
M.F.:
Não acredito. Esta resistência de que falo não é uma substância. Ela não é anterior ao poder que


ela enfrenta. Ela é coextensiva a ele e absolutamente contemporânea.
B.H.-L.:
A imagem invertida do poder? Daria no mesmo... Os paralelepípedos debaixo da natureza em


festa...
M.F.:
Também não é isto. Se fosse apenas isto, não haveria resistência. Para resistir, é preciso que a


resistência seja como o poder. Tão inventiva, tão móvel, tão produtiva quanto ele. Que, como ele,
venha de "baixo" e se distribua estrategicamente.
B.H.-L.:
"Onde existe poder, existe resistência" é, por conseguinte, quase uma tautologia...


M.F.:
Absolutamente. Não coloco uma substância da resistência face a uma substância do poder. Digo
simplesmente: a partir do momento em que há uma relação de poder, há uma possibilidade de
resistência. Jamais somos aprisionados pelo poder: podemos sempre modificar sua dominação em
condições determinadas e segundo uma estratégia precisa.

B.H.-L.:

poder e resistência... Tática e estratégia... Por que estas metáforas guerreiras? Você acha que o
poder deve ser de agora em diante concebido a partir da forma da guerra?
M.F.:
Ainda não sei bem. O que me parece certo é que, para analisar as relações de poder, só dispomos


de dois modelos: o que o direito nos propõe ( o poder como lei, proibição, instituição) e o modelo
guerreiro ou estratégico em termos de relações de forças. O primeiro foi muito utilizado e mostrou,


acho eu, ser inadequado: sabemos que o direito não descreve o poder.

O outro, sei bem que também é muito usado. Mas se fica nas palavras: utilizam-se noções
pré-fabricadas ou metáforas ("guerra de todos contra todos", "luta pela vida") ou ainda esquemas
formais (as estratégias estão muito em moda entre alguns sociólogos e economistas, sobretudo
americanos). Penso que seria necessário tentar aprimorar esta análise das relações de força.

B.H.-L.:

Esta concepção guerreira das relações de poder já existia nos marxistas?

M.F.:

O que me espanta, nas análises marxistas, é que sempre se fala de "luta de classes", mas que a
palavra á qual se presta menos atenção é "luta". Mais uma vez é preciso nuançar. Os maiores
marxistas (a começar por Marx) insistiram muito nos problemas "militares" (exército como aparelho
de Estado, levante armado, guerra revolucionária). Mas, quando falam de "luta de classes" como
força motriz da história, eles se preocupam principalmente em saber o que é a classe, onde ela se
situa, quem ela engloba e jamais o que concretamente é a luta. Uma ressalva: os textos não
teóricos mas históricos do próprio Marx são mais sutis.

B.H.-L.: V

ocê acredita que seu livro possa preencher esta lacuna?

M.F.:

Não tenho esta pretensão. De modo geral, acho que os intelectuais - se é que esta categoria
existe ou deve continuar a existir, o que não é certo e que talvez não seja desejável - renunciam à
sua velha função profética.

E, dizendo isto, não penso somente em sua pretensão de dizer o que vai acontecer, mas na função
de legislador à qual eles tanto aspiraram: "Eis o que é preciso fazer, eis o que é bom, sigam-me.
Na agitação em que vocês todos estão, eis o ponto fixo, que é onde eu estou". O sábio grego, o
profeta judeu e o legislador romano são sempre modelos que obsecam os que, hoje, têm como
ocupação falar e escrever. Sonho com o intelectual destruidor das evidências e das
universalidades, que localiza e indica nas inércias e coações do presente os pontos fracos, as
brechas, as linhas de força; que sem cessar se desloca, não sabe exatamente onde estará ou o
que pensará amanhã, por estar muito atento ao presente; que contribui, no lugar em que está, de
passagem, a colocar a questão da revolução, se ela vale a pena e qual (quero dizer qual revolução
e qual pena). Que fique claro que os únicos que podem responder são os que aceitam arriscar a
vida para fazê-la.

Quanto a todas as questões de classificação ou de programa que nos são colocadas: "Você é
marxista?", "O que você faria se tivesse o poder?", "Quais são os seus aliados e suas filiações?",

são questões realmente secundárias em relação àquela que acabo de indicar: pois esta é a
questão da atualidade.


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