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sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

A Definição da Noite - Ana Maria Gastão

Alguns poemas selecionados


   



Feto

Abrupto fim,
longínquo feto

estranheza exterior
a da tua pele

imaginária perda
filho imaginário

corpo sem corpo
corpo comigo

já não sou teu
tu não és eu

abrupto corte
longínquo cordão

jamais andarei pelos teus pés.

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Não há lugar para mim
neste país de Inverno.
As mães cegaram em seus ventres
e cada homem abandona
a juventude na cidade ácida.

Tínhamos o movimento da Terra
e eu compreendia as coisas
como se absorve a luz com os olhos.
Existiam as tuas mãos.
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Que é a vida senão 
um bramido 
inútil?

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Como dizer o teu nome 
se teu nome é sombra
e nem te oiço
no Outono final.

Como dizer o teu nome
se nem nos sonhos te encontro
estrela em fuga
num reino crepuscular.

Como dizer o teu nome
se esta é uma terra morta
sem mães vivas
nem espaço para mim.

Como dizer o teu nome 
neste vale vazio
último lugar de encontro.

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Sou o silêncio que ficou
uma cidade igual ás outras
onde os gritos se esvaem
e a tua morte se tornou minha.

Em tuas asas 
quebradas
tudo se desintegra
menos a memória.

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Então 
a palavra pranto
ergueu-se íngreme
até ao riso.

Repouso ó mãe 
minha morte
em teu colo.

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Nas tuas mãos
os segredos
a rosa
na sua durável
paciência.

Nesta segunda
vida-morta
sei-te a pré-história
de Deus.

Mataram-te,
mas não no meu poema.

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Deus - pedra branca
no pântano da morte.

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Nossa substância
as cinzas, quais
palhaços de deus.
Nós, a última
subtileza do diabo.

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Os justos - esquartejados
por uma cidade distante
condenados a espargir
o suor em terra morta.

Perdidos e sobrevivos
no tormento, não são
mais do que atletas
na senda de deus.

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O que o homem não daria
- pelo sorriso de deus.

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Para a dor
não há ciência
só a distância
entre a ausência
e a tua chegada.

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No princípio eras Tu, no fim Tu serás
e no meio dormem os homens um longo,
longo sono onde o tormento se faz carne
e habita entre nós.  Porque ninguém jamais
Te viu.  Outros virão, outros, outros e outros para consumar a círculo da vida, os que chegam
depois de Ti e nunca antes, ou não fosses Tu
o princípio, ordem e silêncio de todas as coisas.

No princípio eras Tu, no fim Tu serás
e no meio conhecem os homens a dor
e a devastação, a fome e a ruína, a solidão
e a injustiça.  Porque ninguém jamais Te viu.  Nem os que choram, nem os que riem
nem os aflitos, nem os doentes, nem os que envelhecem nem os que, fatigados, morrem.

Eloi, Eloi
quem te ama chora.

No princípio eras Tu, no fim Tu serás.


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Bem-aventurados teus segredos
pueril a luz da nostalgia,
flébil é o fogo, turvo o dia.

Somos dor e vertigem
silêncio, suave luz macia
num oculto paraíso
com saudades da morte.

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Matéria lírica, a dor
e o amor. Amados
sofremos porque não somos bastante.
Melancolia, mal do Eu.

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Simulacro do amor, o desejo
- miniatura da imensidão.

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O amor: única possibilidade
       de escapar à ciência.

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Futuro - um rio
por trás da casa.
Presente - a memória
do que não morre.


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Não é o coração
mas esta carne
em seu rumor.

Não é o coração 
mas teu silêncio
do intenso furor.

Não é o coração
mas as mãos
sem corpo, vazias.

Na grave melodia
de um instante
tu e eu
em desequilíbrio
na infame
consistência
de um absoluto
obstáculo.

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Escreve, se puderes, pois meu corpo oscila, veloz no círculo do vento
escreve antes que  o sol sangre de mim.
Escreve, se puderes, hoje ainda, assim o grão de teu corpo  o permita
escreve antes que nostalgia desça sobre nós.
Escreve, se puderes, contra a morte, até se perderem tuas ávidas mãos
escreve antes que em meu colo caiam mutiladas.

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Se tudo parasse
e eu pudesse dar-te
a vida de novo.
Sem nós não há casa
e sem asa
nunca chegaremos
a saber o que fomos.
Nada é manso
e eu sou apenas
o teu princípio.

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Pudesse eu tocar 
teus cansados ossos
quando o mar 
se encrespa.

Pudesse eu escrever
com as mãos
o olhar que lê
teu poema feito.

Pudesse eu ser visão
ou melancólica música
noite subterrânea
ou fulgurante desejo
para que entrasses
veloz em minha tristeza
como um espírito cansado
à procura do mundo.

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