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sábado, 10 de novembro de 2012

A vida magistralmente obscura de Perrito Silva - Hilton Görresen

Desde os bancos escolares, aprendemos a reverenciar o nome e a vida das grandes figuras nacionais.  Claro, geralmente essas vidas se resumem a um importante ato público.  Parece que Tiradentes nasceu unicamente para deixar crescer os cabelos e ser enforcado.  D.Pedro I veio a mundo para proclamara a nossa independência e transar com a marquesa de Santos.  A princesa Isabel embarcou na Terra apenas  para abolir a escravidão.  A propósito, foi ela quem casou com o conde D'Eu? (de quem consta apenas que lutou na guerra do Paraguai).

Que sabemos da vida íntima desses notáveis brasileiros?  Que maldades, injustiças, invejas, ingratidões foram perpetradas pela sua natureza humana?  Quais suas pequenas alegrais e decepções? Quais seus amores de juventude ou suas brincadeiras de infância?


Se sabemos tão pouco da vida desses que têm o nome perpetuado nos livros de História, quem dirá daqueles que nasceram para o anonimato.  É esse o caso do cidadão Perrito Silva.

Agora, após incansáveis pesquisas, você vai saber tudo sobre a vida desse indivíduo tão desprovido de heroísmo e importância política e social.

Perrito nasceu numa madrugada de setembro, não tenho certeza do ano, e recebeu esse apelido de um vizinho espanhol, porque em pequeno costumava brincar nas latas de lixo.  Fez o curso primário em escola pública, onde foi brilhantemente reprovado na segunda série.  Na infância, caçava passarinhos de estilingue e participava de peladas com os meninos da vizinhança.  Desde esse tempo já se manifestava sua incomensurável atração para a obscuridade.

De família pobre, teve de buscar trabalho cedo.  Entrou de ajudante numa fundição, na qual trabalhou até a aposentadoria.  Empunhando com galhardia suas sólidas ferramentas que, de tão utilizadas, pareciam um prolongamento das mãos calosas, enfrentava de peito aberto e cabeça altiva as intempéries profissionais.  Sua fenomenal falta de liderança logo se manifestou, mantendo-se todos esses anos como insigne subalterno.  Escravo do dever e do amor ao trabalho, não esmorecia diante da injusta jornada de até 14 horas de trabalho que lhe era imposta.

Antes disso, quando a pátria necessitou de seus préstimos, não se furtou a servi-la honradamente, permanecendo quase um ano na exaustiva mas nobilíssima tarefa de esfregar o chão de banheiros e limpar latrinas.

Conheceu dona Margarida numa festa de fim de ano na associação da empresa e em dois anos estavam casados.  Tiveram três filhos, dois homens e uma moça.  De espírito conservador, forjado na brilhante mesmice de sua convivência familiar, não deixava a filha sair de casa desacompanhada; mesmo assim a menina conheceu um playboyzinho e acabou grávida.  Seu Perrito ficou possesso, de uma cólera magnífica e estarrecedora, como convêm aos predestinados pela má fortuna; queria espancar a filha, expulsar de casa.  Vencido pela magnanimidade de seu vacilante caráter, acabou não fazendo nada disso.

Tinha uma réstia de romantismo, dos tempos dos dramalhões mexicanos no cinema, que fortaleceram sua robusta falta de erudição.  Fã ardoroso de Nelson Gonçalves, quando bebia umas e outras virava a cantar, com sua cristalina voz anasalada: boemia, aqui me tens de regresso...  Era uma das poucas protuberâncias de seu caráter.

Ereto e altivo, andava sem temor pelos desvãos do bairro, ignorando as ameaças dos solertes adversários nas eleições para síndico do prédio de três andares.  Mesmo saindo derrotado desse gigantesco embate, não se deixou arrastar pelo desânimo, deixando fluir sua vida de inenarrável insipidez.

Dois anos após a aposentadoria, seu Perrito teve um infarto e foi levado inexoravelmente pela Morte, deixando inconcluso seu brilhante destino, que prometia coloridas páginas em branco.  O triste acontecimento se deu no auge de uma heroica batalha num tabuleiro de damas, no exato momento em que, como brilhante estrategista, iniciava a devastação das forças oponentes, o compadre Orides.

Discreto na grandeza e na morte, sumiu sem alarde, somente com o contido desespero de dona Margarida e as rezas da tia quase centenária.  Ó pátria ingrata, que o colocou no panteão dos esquecidos.

É isso, leitor, agora você sabe mais da vida de Perrito Silva do que da vida do Duque de Caxias.
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O conto apresenta a falta de iniciativa de Perrito, o conformismo, o indivíduo alienado em meio à sociedade que o cerca e sem perspectivas.  O autor mostra o retrato da grande maioria das pessoas que prefere reproduzir comportamentos e resignar-se ao silêncio a questionar, repensar e perceber que o que nos faz pessoas é aquilo que não cabe na nossa carteira de identidade, mas são nossas atitudes, a forma como expressamos aquilo que pensamos, nosso jeito de nos relacionarmos com mundo e com o outro.    (Rosilda da Silva)

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