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sábado, 27 de outubro de 2012

Do Livro do Desassossego - Fernando Pessoa [parte 2]


* * * 95.
"Somos quem não somos e a vida é pronta e triste."
"Quantos somos! Quantos nos enganamos! Que mares soam em nós, na noite de sermos, pelas praias que nos sentimos nos alagamentos da emoção! Aquilo que se perdeu, aquilo que se
deveria ter querido, aquilo que se obteve e satisfez por erro, o que amamamos e perdemos e, depois de perder, vimos, amando por tê-lo perdido, que o não havíamos amado; o que
julgávamos que pensávamos quando sentíamos; o que era uma memória e críamos que era uma emoção; e o mar todo, vindo lá, rumoroso e fresco, do grande fundo de toda a noite, a
estuar fino na praia, no decurso nocturno do meu passeio à beira-mar ...
Quem sabe sequer o que pensa ou o que deseja? Quem sabe o que é para si-mesmo?"

* * * 
101.
"Tão supérfluo tudo! Nós e o mundo e o mistério de ambos."
* * * 
104.
" O pensamento colectivo é estupído porque é colectivo: nada passa as barreiras do colectivo sem deixar nelas, como real de água, a maior parte da inteligência que traga consigo.
Na  mocidade somos dois: há em nós a coexistência da nossa inteligência própria, que pode ser grande, e a da estupidez da nossa inexperiência, que forma uma segunda inteligência inferior.
Só quando chegamos a outra idade se dá em nós a unificação. Daí a acção sempre fruste da juventude - devida, não à sua inexperiência, mas à sua não-unidade."
* * * 
107.
" Sou daquelas almas que as mulheres dizem que amam, e nunca reconhecem quando encontram, daquelas que, se elas as reconhecessem, mesmo assim não as reconheceriam. Sofro
a delicadeza dos meus sentimentos com uma atenção desdenhosa. Tenho todas as qualidades, pelas quais são admirados os poeta românticos, mesmo aquela falta dessas qualidades, pela
qual se é realmente poeta romântico. Encontro-me descrito (em parte) em vários romances como protagonista de vários enredos; mas o essencial da minha vida, como da minha alma, é
não ser nunca protagonista."
"O cais, a tarde, a maresia entram todos, e entram juntos, na composição da minha angústia. As flautas dos pastores impossíveis não são mais suaves que o não haver aqui flautas e isso lembrar-mas."
* * * 110.
" Cada qual tem o seu álcool. Tenho álcool bastante em existir. Bêbado de me sentir, vagueio e ando certo. Se são horas, recolho ao escritório como qualquer outro. Se não são horas, vou
até o rio fitar o rio, como qualquer outro. Sou igual. E por detrás de isso, céu meu, constelome às escondidas e tenho o meu infinito."
* * * 
112.
" Nunca amamos alguém. Amamos, tão-somente, a ideia que fazemos de alguém. É a um conceito nosso - em suma, é a nós mesmos - que amamos. Isto é verdade em toda a escala do amor. No amos sexual buscamos um prazer nosso por
intermédio de um corpo estranho. No amor diferente do sexual, buscamos um prazer nosso dado por intermédio de uma ideia nossa. O onanista é objecto, mas, em exacta verdade, o
onanista é a perfeita expressão lógica do amoroso. É o único que não disfarça nem se engana. As relações entre uma alma e outra, através de coisas tão incertas e divergentes como as
palavras comuns e os gestos que se empreendem, são matéria de estranha complexidade. No próprio ato em que nos conhecemos, nos desconhecemos. Dizem os dois «amo-te» ou pensamno e sentem-no por troca, e cada um quer dizer uma ideia diferente, uma vida diferente, até, porventura, uma cor ou um aroma diferente, na soma abstracta de impressões que constitui a
actividade da alma."
"É de compreender que sobretudo nos cansamos. Viver é não pensar."
* * * 
113.
"Para o esteta, as tragédias são coisas interessantes de observar, mas incomodas de sofrer. O próprio cultivo da imaginação é prejudicado pelo da vida. Reina quem não está entre os
vulgares. Afinal, isto bem me contentaria se eu conseguissepersuadir-me que esta teoria não é o que é,
um complexo barulho que faço aos ouvidos da minha inteligência, quase para ela não perceber que, no fundo, não há senão a minha timidez, a minha incompetência para a vida."
* * * 
114.
ESTÉTICA DO ARTIFÍCIO
" A vida prejudica a expressão da vida. Se eu tivesse um grande amor nunca o poderia contar. Eu próprio não sei se este eu, que vos exponho, por estas coleantes páginas fora, realmente
existe ou é apenas um conceito estético e falso que fiz de mim próprio. Sim, é assim. Vivo-me esteticamente em outro. Esculpi a minha vida como a uma estátua de matéria alheia ao meuser. Às vezes não me reconheço, tão exterior me pus a mim, e tão de modo puramente artístico empreguei a minha consciência de mim próprio. Quem sou por detrás desta irrealidade? Não
sei. Devo ser alguém. E se não busco viver, agir, sentir, é - crede-me bem - para não perturbar as linhas feitas da minha personalidade suposta. Quero ser tal qual quis ser e não sou. Se eu cedesse destruir-me-ia. Quero ser uma obra de arte, da alma pelo menos, já que do corpo não posso ser. Por isso me esculpi em calma e alheamento e me pus em estufa, longe dos ares
frescos e das luzes francas  - onde a minha artificialidade, flor absurda, floresça em afastada beleza."
* * * 


115.
"Assim organizar a nossa vida que ela seja para os outros um mistério, que quem melhor nos conheça, apenas nos desconheça de mais perto que os outros. Eu assim talhei a minha vida,
quase que sem pensar nisso, mas tanta arte institiva pus em fazê-lo que para mim próprio me tornei uma não de todo clara e nítida individualidade minha."
* * * 
116.
"A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida."
* * *
117.
"A  maioria da gente enferma de não saber dizer o que vê e o que pensa. Dizem que não há nada mais difícil do que definir em palavras uma espiral: é preciso, dizem, fazer no ar, com a
mão sem literatura, o gesto, ascendemente enrolado em ordem, com que aquela figura abstracta das molas ou de certas escadas se manifesta aos olhos. Mas, desde que nos
lembremos que dizer é renovar, definiremos sem dificuldade uma espiral: é um círculo que sobe sem nunca conseguir acabar-se. A maioria da gente, sei bem, não ousaria definir assim,
porque supõe que definir é dizer o que os outros querem que se diga, que não o que é preciso dizer para definir. Direi melhor: uma espiral é um circulo virtual que se desdobra a subir sem
nunca se realizar: Mas não, a definição ainda é abstracta. Buscarei o concreto, e tudo será visto: uma espiral é uma cobra sem cobra enroscada verticalmente em coisa nenhuma.
Toda a literatura consiste num esforço para tornar a vida real. Como todos sabem, ainda quando agem sem saber, a vida é absolutamente irreal, na sua realidade directa; os campos,
as cidades, as ideias, sao coisas absolutamente fictícias, filhas da nossa complexa sensação de nós mesmos. Sâo intransmissíveis todas as impressões salvo se as tornarmos literárias. As
crianças são muito literárias porque dizem como sentem e não como deve sentir quem sente segundo outra pessoa. Uma criança, que uma vez ouvi, disse, querendo dizer que estava à
beira de chorar, não «Tenho vontade de chorar», que é como diria um adulto, isto é, um estúpido, senão isto: «Tenho vontade de lágrimas». E esta frase, absolutamente literária, a
ponto de que seria afectada num poeta célebre, se ele a pudesse dizer, refere absolutamente a presença quente das lágrimas a romper das pálpebras conscientes da amargura líquida.
«Tenho vontade de lágrimas»! Aquela criança pequena definiu bem a sua espiral." 
* * * 120.
" Sinto perante o rebaixamento dos outros não uma dor, mas um desconforto estético e uma irritação sinuosa. Não é por bondade que isto acontece, mas sim porque quem se torna
ridículo não é só para mim que se torna ridículo, mas para os outros também, e irrita-me que alguém esteja sendo ridículo para os outros, dói-me que qualquer animal da espécie humana
ria à custa de outro, quando não tem direito de o fazer. De os outros se rirem à minha custa não me importo, porque de mim para fora há um desprezo profícuo e blindado.
Mais terrível de que qualquer muro , pus grades altíssimas a demarcas o jardim do meu ser, de modo que, vendo perfeitamente os outros, perfeitissimamente eu os excluo e mantenho
outros. Escolher modos de não agir foi semrpre a atenção e o escrúpulo da minha vida. Não me submeto ao estado nem aos homens; resisto inertemente. O estado só me pode querer
para uma açcão qualquer. Não agindo eu, ele nada de mim consegue. Hoje já não se mata, e ele apenas me pode incomodar; se isso acontecer, terei que blindar mais o meu espírito e viver
mais longe adentro dos meus sonhos. Mas isso não aconteceu nunca. Nunca me apoquentou o estado. Creio que a sorte soube providenciar."
* * * 
122.
" Tenho da vida uma náusea vaga, e o movimento acentua-ma."
"A vida, para mim, é uma sonolência que não chega ao cérebro. Esse conservo eu livre para que nele possa ser triste."
* * * 
123.
"Que me pode dar a China que a minha alma me não tenha já dado? E, se a minha alma mo não pode dar, como mo dará a China, se é com a minha alma que verei a China, se a vir?
Poderei ir buscar riqueza ao Oriente, mas não riqueza de alma, porque a riqueza de minha alma sou eu, e eu estou onde estou, sem Oriente ou com ele." 
"Somos todos míopes, excepto para dentro. Só o sonho vê com o olhar."
"Transeuntes eternos por nós mesmos, não há paisagem senão o que somos. Nada possuímos, porque nem a nós possuímos. Nada temos porque nada somos. Que mãos estenderei para que
universo? O universo não é meu: sou eu."
* * * 124.
"A ânsia de compreender, que para tantas almas nobres substitui a de agir, pertence à esfera da sensibilidade. Substitui a Inteligência à energia, quebrar o elo entre a vontade e a emoção,
despindo de interesse todos os gestos da vida material, eis o que, conseguido, vale mais que a vida, tão difícil de possuir completa, e tão triste de possuir parcial. Diziam os argonautas que navegar é preciso, mas que viver não é preciso. Argonautas, nós, da
sensibilidade doentia, digamos que sentir é preciso, mas que não é preciso viver." * * * 
125.
"Arcaram os vossos argonautas com monstros e medos. Também, na viagem do meu pensamento, tive monstros e medos com que arcar. No caminho para o abismo abstracto, que
está no fundo das coisas, há horrores, que passar, que os homens do mundo não imaginam e medos que ter que a experiência humana não conhece; é mais humano talvez o cabo para o
lugar indefinido do mar comum do que a senda abstracta para o vácuo do mundo."
* * * 
127.
"Não me indigno, porque a indignação é para os fortes; não me resigno, porque a resignação é para os nobres; não me calo, porque o silêncio é para os grandes.   eu não sou forte, nem nobre, nem grande. Sofro e sonho. Queixo-me porque sou fraco e, porque sou artista, entretenho-me a tecer musicais as minhas queixas e a arranjar meus sonhos conforme me parece melhor a minha ideia de os achar belos. Só lamento o não ser criança, para que pudesse crer nos meus sonhos."
"Eu não sou pessimista, sou triste."
132.
"Omnia fui, nihil expedit - fui tudo, nada vale a pena."
* * * 
133.
"Para mim, se considero, pestes, tormentas, guerras, são produtos da mesma força cega, cooperando uma vez através de micróbios inconscientes, outra vez através de raios e águas
inconscientes, outra vez através de homens inconscientes."
* * * 138.
"Há uma erudição do conhecimento, que é propriamente o que se chama erudição, e há uma erudição do entendimento, que é o que se chama cultura. Mas há também uma erudição da
sensibilidade."
"Condillac começa o seu livro célebre, «Por mais alto que subamos e mais baixo que desçamos, nunca saímos das nossas sensações». Nunca desembarcamos de nós. Nunca
chegamos a outrem, senão outrando-nos pela imaginação sensível de nós mesmos. As verdadeiras paisagens são as que nós mesmos criamos, porque assim, sendo deuses delas, as
vemos como elas verdadeiramente são, que é como foram criadas. Não é nenhuma das sete partidas do mundo aquela que me interessa e posso verdadeiramente ver; a oitava é a que
percorro e é a minha."
* * * 
139.
"Há muito tempo que não escrevo. Têm passado meses sem que viva, e vou durando, entre o escritório e a fisiologia, numa estagnação íntima de pensar e de sentir. Isto, infelizmente, não
repousa: no apodrecimento há fermentação."
* * * 
144.
"É domingo e não tenho que fazer. Nem sonhar me apetece, de tão bem que está o dia. Gozo-o com uma sinceridade de sentidos a que a inteligência se abandona. Passeio como um caixeiro
liberto. Sinto-me velho, só para ter o prazer de me sentir rejuvenescer."
* * * 
148.
"O homem perfeito do pagão era a perfeição do homem que há; o homem perfeito do cristão a perfeição do homem que não há; o homem perfeito do budista a perfeição de não haver
homem."
"Tudo quanto o homem expõe ou exprime é uma nota à margem de um texto apagado de todo. Mais ou menos, pelo sentido da nota, tiramos o sentido de que havia de ser o do texto;
mas fica sempre uma dúvida, e os sentidos possíveis são muitos."
* * * 
149.
"Não é fácil distinguir o homem dos animais, não há critério seguro para distinguir o homem dos animais. As vidas humanas decorrem da mesma íntima inconsciência que as vidas dos
animais. As mesmas leis profundas, que regem de fora os instintos dos animais, regem, também, de fora, a inteligência do homem, que parece não ser mais que um instinto em
formação, tão inconsciente como todo instinto, menos perfeito porque ainda não formado.«Tudo vem da sem-razão», diz-se na Antologia Grega."
"A Ironia é o primeiro indício de que a consciência se tornou consciente. E a ironia atravessa dois estádios: o estádio marcado por Sócrates, quando disse «sei só que nada sei», e o estádio
marcado por Sanches, quando disse «nem sei se nada sei». O primeiro passo chega àquele ponto em que duvidamos de nós dogmaticamente, e todo o homem superior o dá e atinge. O
segundo passo chega àquele ponto em que duvidamos de nós e da nossa dúvida,  e poucos homens o têm atingido na curta extensão já tão longa do tempo que, humanidade, temos visto
o sol e a noite sobre a vária superfície da terra."
* * *
152.
"Pasmo sempre quando acabo qualquer coisa. Pasmo e desolo-me. O meu instinto de perfeição deveria inibir-me de acabar; deveria inibir-me até de dar começo. Mas distraio-me
e faço. O que consigo é um produto, em mim, não de uma aplicação de vontade, mas de uma cedência dela. Começo porque não tenho força para pensar; acabo porque não tenho alma
para suspender. Este livro é a minha cobardia."
* * *
155.
"Escrevo demorando-me nas palavras, como por montras onde não vejo, e são meios-sentidos, quase-expressões o que me fica, como cores de estofos que não vi o que são, harmonias
exibidas compostas de não sei que objectos. Escrevo embalando-me, como uma mãe louca a um filho morto."


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