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sexta-feira, 12 de outubro de 2012

As Experiências de Walter Benjamin - 3

Nessa passagem, Benjamin assinala ser a rememoração mais do que a busca da coisa ou do acontecimento em si,
considerando as suas contingências. Logo adiante, no entanto, ele afirma ser esse comentário ainda um tanto
grosseiro, e continua: “O importante, para o autor que rememora, não é o que ele viveu, mas o tecido de sua
rememoração, o trabalho de Penélope da reminiscência” 17. Assim, mais do que indicar o reaparecimento de um
conteúdo ou objeto, a memória é um movimento, uma ação. Para finalizar, o filósofo é ainda mais questionador: “Ou
seria preferível falar do trabalho de Penélope do esquecimento?”.18 Nesse ponto Benjamin já indica que a memória
involuntária encontra-se mais próxima do esquecimento do que da lembrança. O esquecimento se faz necessário,
pois o movimento engendrado pela memória é aquele que vai associar duas sensações diferentes, distantes no
tempo e no espaço. É um movimento de analogias. Em vez de retomar o passado, a memória involuntária vai
superá-lo, realizando o entrecruzamento dos tempos. “A memória involuntária permite aceder a um tempo virtual,
ontológico” 19. Segundo Barrenechea, ultrapassar os limites da percepção e da memória voluntária, esquecendo o
tempo presente e aquilo que já passou permite o homem viver, enfim, “fora do tempo”, deflagrando uma essência
pura, uma “qualidade pura, uma característica essencial e comum a ambas sensações” 20, o que caracteriza uma
busca pela verdade, pelo em-si das coisas, uma experiência singular, fundamental. “O historicista apresenta a
imagem eterna do passado, o materialista histórico faz desse passado uma experiência única. Ele deixa a outros a
tarefa de se esgotar no bordel do historicismo, com a meretriz Era uma vez” 21.
Ao relatar sua experiência com haxixe ao desembarcar pela primeira vez em Marselha, Benjamin mostra a
emoção de sentir a melancolia de um fato que não foi vivido por ele, mas pelos moradores antigos da cidade. Ao
andar vagarosamente por Marselha, não pelos pontos turísticos, mas pelo subúrbio – “a exceção da cidade” 22 - o
pensador confessa:
Abateu-se sobre mim um pouco daquela melancolia que ainda
hoje me cativa. Creio que, ao acolhe-la dentro de si, o forasteiro
participa de algo que só podem sentir os antigos moradores de
um lugar, pois a infância é a vara de condão que aponta sempre
para a aflição: só se conhece a melancolia de cidades
resplendentes de glória quando se viveu nelas em criança” 23.
Sob o efeito da droga, Benjamin apreendeu no espaço da nova cidade “mil lugares diferentes” 24, pois o
haxixe “improvisara o presente” 25, abrindo percepções, realizando associações, trazendo à tona lembranças que
nem foram vividas por ele, mas que foram sentidas por aqueles que viveram numa Marselha ainda não tão
modernizada.
Assim, a memória involuntária é o mundo dos entrecruzamentos, das correspondências, elementos
presentes nas experiências de comunidades, nas experiências narrativas, na tradição. Elas são irrepetíveis, únicas, com a Paris imersa na dissolução da aura da experiência, imersa nas vivências dos choques. O estado inebriante da flanerie era como o estado daquele que consome haxixe.
A investigação mais apaixonada da embriaguez produzida pelo
haxixe nos ensina menos sobre o pensamento (que é um
narcótico eminente) que a iluminação profana do pensamento
pode ensinar-nos sobre a embriaguez do haxixe. O homem que
lê, que pensa, que espera, que se dedica à flanerie, pertence, do
mesmo modo que o fumador de ópio, o sonhador e o ébrio, à
galeria dos iluminados. Para não falar da mais terrível das drogas
– nós mesmos- que tomamos quando estamos sós.11
Benjamin considerava o efeito do ato de comer ou fumar haxixe uma vivência solitária, porém uma vivência em
que a memória involuntária poderia vicejar. O conceito de memória involuntária é fundamental para entendermos
como a flanerie e o haxixe agiam como experiências em um cenário moderno, onde a “atrofia da experiência” era
moeda corrente.

MEMÓRIA INVOLUNTÁRIA
Benjamin, considerando a obra de Proust, A la recherche du temps perdu, analisa que as condições
modernas de existência conduziriam a uma ruptura da memória em voluntária e involuntária com o predomínio da
primeira sobre a segunda. A memória voluntária estaria ligada à esfera da consciência desperta, da qual dependeria
a proteção contra os estímulos externos, os chocs, sem a qual estes poderiam vir a causar efeitos traumáticos no
indivíduo. Dessa forma, ao ampliar as situações em que o homem se confronta com os chocs, o tempo da grande
indústria teria reforçado o âmbito da consciência e da memória voluntária restringindo as condições de florescimento
da memória involuntária: “O fato de o choc ser captado e aparado pela consciência, daria ao acontecimento que o
provoca o caráter de vivência em sentido estrito. E esterilizaria para a experiência poética esse acontecimento
incorporando-o diretamente ao inventário da lembrança consciente” 12.
Obstaculizando as possibilidades de emergência da memória involuntária, os tempos modernos seriam,
portanto, tempos da não experiência, já que, quando há de fato Erfahrung, a memória dos homens não se aparta. A escapam à lembrança. Ela se nutre não de imagens selecionadas, estabelecidas, mas de cacos, vestígios.
Faz parte da memória involuntária tudo aquilo que não foi vivência, consciência. A memória voluntária, por sua vez,
se relaciona ao desejo de não esquecer, de armazenar informações necessárias às nossas obrigações, funções
sociais e necessidades profissionais. A memória voluntária é bastante útil para guardar informações, mas não para
gerir afetos. É por esse motivo que o filósofo alemão admirava os retratos de Klee e as suas figuras em espanto. O
espanto é o que permite o ato criador, já que o contrário - estar desperto, não se espantar, não se surpreender, ou
pior, ser indiferente - é o alimento da existência moderna. A constante disponibilidade da lembrança voluntária e da
consciência reduz o espaço da fantasia, da imaginação, da criação. Dessa forma, o flâneur Baudelaire realiza o
trabalho do espadachim, mesmo que as contingências o incitem a realizar o trabalho do operário. O duelista,
descreve Benjamin, engenhosa e argutamente desvia os chocs com a destreza de sua espada, abrindo fendas,
saídas, alternativas.
Ao contrário de O Narrador, onde Benjamin parece mostrar um grande desalento com as transformações da
sociedade, em Sobre alguns temas em Baudelaire o autor afirma os lugares de resistência na modernidade. Em
outro momento, ele chegou a mencionar o que seria uma barbárie positiva: a barbárie de Brecht, da Bauhaus, do
surrealismo, das vanguardas, dos provocadores, referindo-se àqueles que estão dispostos a começar do começo,
já que eles "aspiram a um mundo em que para eles possam fazer valer tão pura e claramente a sua pobreza,
externa e interna, que disso resulte algo decente" 26. Novas práticas estéticas bárbaras, realizando ruptura com o
vivido, onde se instauram espaços de criação possíveis no interior de espaços fragmentados são celebradas pelo
autor. Ademais, mesmo tecendo críticas contundentes aos romances, Benjamin considerava Kafka e Proust dois
autores que não tratavam suas obras como elementos acabados, fechados em si, conclusivos, mas como criações
ressonantes, onde, no interior da existência do homem solitário, é possível viver um infinito.

OS CACOS, OS DETRITOS
Para Gagnebin (2001), Benjamin não alimenta o pessimismo ou a desesperança, mas esboça a idéia de
uma outra narração, uma narração nas ruínas da narrativa, uma transmissão entre os cacos de uma tradição em
migalhas. O narrador também seria a figura do trapeiro ou do chiffonnier (figura de Baudelaire), do catador de
sucata e de lixo, este personagem das grandes cidades modernas que recolhe os cacos, os restos, os detritos. Se
estes cidadãos são, por um lado, movidos pelo desejo de descobrir objetos úteis no lixo, certamente são os
mesmos que impedem que coisas sejam perdidas e esquecidas, ressignificando aquilo que já foi considerado
imprestável pelas elites, pelos afortunados. Aliás, O motivo literário dos detritos é um tema que pode ser encontrado
em vários romances escritos entre o século XVIII e o século XX.
Na representação literária de Paris, o personagem do limpador de detritos aparece com freqüência.
Nascimento (2002) aborda que o escritor Restif, em Les Nuits de Paris (obra publicada de 1788 a 1793), já traçava
o retrato de um singular "descolador de cartazes" que tirava sua subsistência desta atividade. O dinheiro que ele
obtinha da venda dos cartazes usados lhe servia para comprar comida; comida que ele adquiria de vendedoras de
rua, ou seja, comida essa que também eram restos. Restif inventara outras curiosas "profissões" que só poderiam
existir na grande cidade, todas elas relacionadas ao motivo do detrito: o recolhedor de garrafas quebradas, os
célebres trapeiros e os gratte-ruisseaux - tipos urbanos que vasculhavam as inúmeras valetas cheias de imundícies
que abundavam na Paris de então. Nos textos surrealistas encontram-se variantes desse tema, não é de se
espantar que Benjamin admirasse tanto os surrealistas. Em L’Amour fou, por exemplo, André Breton relata seu
passeio em um mercado de velharias. Assíduo frequentador dos Mercados das Pulgas, nos quais se encontrava   (continua)

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