Esses vermes furtivos que, sob a
proteção da noite, da névoa e da duplicidade rastejam sobre todo indivíduo,
sugando-lhe todo o interesse sério pelas coisas reais, todo o instinto para a
realidade – essa turba covarde, efeminada e melíflua gradualmente alienou todas
as “almas” desse edifício colossal – aquelas naturezas preciosas, virilmente
nobres, que haviam encontrado em Roma sua própria causa, sua própria seriedade,
seu próprio orgulho. A dissimulação dos hipócritas, o mistério dos
conventículos, conceitos tão sombrios quanto o inferno, como o sacrifício do
inocente, a unio mystica(3) no beber sangue, e acima de tudo o fogo lentamente
reavivado da vingança, da vingança de chandala – isso dominou Roma: o mesmo
tipo de religião que, numa forma preexistente, Epicuro combateu. Leia-se
Lucrécio para entender contra o que Epicuro fez guerra – não contra o
paganismo, mas contra o “cristianismo”, isto é, a corrupção das almas através
dos conceitos de culpa, punição e imortalidade. – Combateu os cultos
subterrâneos, todo o cristianismo latente – naquele tempo negar a imortalidade
já era uma verdadeira salvação. – E Epicuro havia triunfado, todo intelecto
respeitável em Roma era epicúreo – foi quando Paulo apareceu... Paulo, o ódio
de chandala encarnado, inspirado pelo gênio, contra Roma, contra “o mundo” – o
judeu, o judeu eternopar excellence. .. O que ele percebeu foi como, com a
ajuda de um pequeno movimento sectário cristão, à parte do judaísmo, uma
“conflagração mundial” poderia ser acesa; percebeu como, com o símbolo do “Deus
na cruz”, poderia condensar todas as sedições secretas, todos os frutos das
intrigas anárquicas, em um imenso poder. “A salvação vem dos judeus” –
cristianismo é a fórmula para sobrepor e agregar os cultos subterrâneos de
todas variedades, por exemplo, o de Osíris, da Grande Mãe, de Mitra: era nisso
que consistia o gênio de Paulo. Seu instinto estava tão seguro disso que, com
ousada violência contra a verdade, colocou as ideias que fascinavam toda
espécie de chandala na boca de sua invenção, do “salvador”, e não apenas na
boca – fez dele algo que até os sacerdotes de Mitra podiam entender... Foi esta
sua revelação em Damasco: compreendeu que precisava da crença na imortalidade
para despojar o valor do “mundo”, que a ideia de “inferno” dominaria Roma – que
a noção de um “além” significa a morte da vida. Niilista e cristão: são coisas
que rimam(4), e não somente rimam...
1 – Mais duradouro que o bronze.
1 – Mais duradouro que o bronze.
2 – Sob o aspecto do eterno.
3 – União sagrada ou mística.
4 – Rimam em alemão: “Nihilist und Christ”. (N. do T.)
LIX
Todo o esforço do mundo antigo em vão: não tenho palavras para descrever meu sentimento ante tal monstruosidade. – E, considerando o fato de que esse era um trabalho meramente preparatório, que com granítica autoconsciência lançou os fundamentos para um trabalho de milhares de anos, todo o significado da antiguidade desaparece!... Para que serviram os gregos? Para que serviram os romanos? – Todos os pré-requisitos para uma cultura sábia, todos métodos científicos já existiam; o homem já havia aperfeiçoado a grande e incomparável arte de ler bem – essa é a primeira necessidade para a tradição da cultura, para a unidade das ciências; as ciências naturais, aliadas às matemáticas e à mecânica, palmilhavam o caminho certo – o sentido dos fatos, o último e mais precioso de todos os sentidos, tinha suas escolas, e suas tradições possuíam séculos! Compreende-se isso? Tudo que era essencial ao começo do trabalho estava pronto; – e o mais essencial, nunca será demais repeti-lo, são os métodos, que também são o mais difícil de desenvolver e o que há mais tempo têm contra si os costumes e a indolência. O que hoje reconquistamos com uma inexprimível vitória sobre nós mesmos – pois certos maus instintos, certos instintos cristãos ainda habitam nossos corpos –, ou seja, o olhar afiado ante a realidade, a mão prudente, a paciência e a seriedade nas menores coisas, toda a integridade no conhecimento – tudo isso já existia há mais de dois mil anos! E mais, havia também bom gosto, um excelente e refinado tato! Não como um adestramento de cérebros! Não como a cultura “alemã”, com seus modos grosseiros! Mas como corpo, como gesto, como instinto – em suma, como realidade... Tudo em vão! Do dia para a noite tornou-se memória! – Os gregos! Os romanos! A nobreza do instinto, o gosto, a investigação metódica, o gênio para a organização e administração, a fé e a vontade para assegurar futuro do homem, um grandioso sim a todas as coisas, visível sob a forma de imperium romanum e palpável a todos os sentidos, um grande estilo que não era simplesmente arte, mas que havia se transformado em realidade, verdade, vida... – Tudo destruído de um dia para outro, e não por uma convulsão da natureza! Não pisoteado até a morte por teutônicos e outros búfalos! Mas vencido por vampiros velhacos, furtivos, invisíveis e anêmicos! Não conquistado – apenas consumido!... A vingança oculta, a inveja mesquinha, agora dominam! Tudo que é miserável, intrinsecamente doente, tomado por maus sentimentos, todo o mundo de gueto da alma estava subitamente no topo! – Leia-se qualquer agitador cristão, por exemplo, Santo Agostinho, para entender, para sentir o cheiro daquela gente imunda que subiu ao poder. – Seria um erro, entretanto, presumir que havia falta de compreensão por parte dos líderes do movimento cristão: – ah, eles eram espertos, espertos até à santidade, esses pais da Igreja! O que lhes faltava era algo bastante diferente. A natureza deixou – talvez esqueceu-se – de dotá-los, ao menos modestamente, de instintos respeitáveis, íntegros, limpos... Dito entre nós, eles não são sequer homens... Se o islamismo despreza o cristianismo, tem mil razões para fazê-lo: o islamismo pressupõe homens...
Todo o esforço do mundo antigo em vão: não tenho palavras para descrever meu sentimento ante tal monstruosidade. – E, considerando o fato de que esse era um trabalho meramente preparatório, que com granítica autoconsciência lançou os fundamentos para um trabalho de milhares de anos, todo o significado da antiguidade desaparece!... Para que serviram os gregos? Para que serviram os romanos? – Todos os pré-requisitos para uma cultura sábia, todos métodos científicos já existiam; o homem já havia aperfeiçoado a grande e incomparável arte de ler bem – essa é a primeira necessidade para a tradição da cultura, para a unidade das ciências; as ciências naturais, aliadas às matemáticas e à mecânica, palmilhavam o caminho certo – o sentido dos fatos, o último e mais precioso de todos os sentidos, tinha suas escolas, e suas tradições possuíam séculos! Compreende-se isso? Tudo que era essencial ao começo do trabalho estava pronto; – e o mais essencial, nunca será demais repeti-lo, são os métodos, que também são o mais difícil de desenvolver e o que há mais tempo têm contra si os costumes e a indolência. O que hoje reconquistamos com uma inexprimível vitória sobre nós mesmos – pois certos maus instintos, certos instintos cristãos ainda habitam nossos corpos –, ou seja, o olhar afiado ante a realidade, a mão prudente, a paciência e a seriedade nas menores coisas, toda a integridade no conhecimento – tudo isso já existia há mais de dois mil anos! E mais, havia também bom gosto, um excelente e refinado tato! Não como um adestramento de cérebros! Não como a cultura “alemã”, com seus modos grosseiros! Mas como corpo, como gesto, como instinto – em suma, como realidade... Tudo em vão! Do dia para a noite tornou-se memória! – Os gregos! Os romanos! A nobreza do instinto, o gosto, a investigação metódica, o gênio para a organização e administração, a fé e a vontade para assegurar futuro do homem, um grandioso sim a todas as coisas, visível sob a forma de imperium romanum e palpável a todos os sentidos, um grande estilo que não era simplesmente arte, mas que havia se transformado em realidade, verdade, vida... – Tudo destruído de um dia para outro, e não por uma convulsão da natureza! Não pisoteado até a morte por teutônicos e outros búfalos! Mas vencido por vampiros velhacos, furtivos, invisíveis e anêmicos! Não conquistado – apenas consumido!... A vingança oculta, a inveja mesquinha, agora dominam! Tudo que é miserável, intrinsecamente doente, tomado por maus sentimentos, todo o mundo de gueto da alma estava subitamente no topo! – Leia-se qualquer agitador cristão, por exemplo, Santo Agostinho, para entender, para sentir o cheiro daquela gente imunda que subiu ao poder. – Seria um erro, entretanto, presumir que havia falta de compreensão por parte dos líderes do movimento cristão: – ah, eles eram espertos, espertos até à santidade, esses pais da Igreja! O que lhes faltava era algo bastante diferente. A natureza deixou – talvez esqueceu-se – de dotá-los, ao menos modestamente, de instintos respeitáveis, íntegros, limpos... Dito entre nós, eles não são sequer homens... Se o islamismo despreza o cristianismo, tem mil razões para fazê-lo: o islamismo pressupõe homens...
LX
O cristianismo nos fez perder todos os frutos da civilização antiga, e mais tarde nos fez perder os frutos da civilização islâmica. A maravilhosa cultura dos mouros na Espanha, que era fundamentalmente mais próxima aos nossos sentidos e gostos que Roma e Grécia, foi pisoteada (– não digo por que tipo de pés –). Por quê? Porque devia sua origem aos instintos nobres e viris – porque dizia sim à vida, e a com a rara e refinada luxuosidade da vida mourisca!... Mais tarde os cruzados combateram algo ante o qual seria mais apropriado que rastejassem – uma civilização que faria mesmo o nosso século XIX parecer muito pobre e “atrasado”. – O que queriam, obviamente, era saquear: o Oriente era rico... Coloquemos à parte os preconceitos! As cruzadas: pirataria em grande escala, nada mais! A nobreza alemã, que no fundo é uma nobreza de viking, estava em seu elemento com as cruzadas: a Igreja sabia muito bem como ganhar a nobreza alemã.... A nobreza alemã, sempre a “guarda suíça” da Igreja, estava ao serviço de todos maus instintos da Igreja – mas bem paga... Foi precisamente a ajuda das espadas, do sangue e do valor alemães que permitiu à Igreja fazer sua guerra de morte contra tudo que é nobre sobre a Terra! Aqui poderiam ser feitas perguntas bastante dolorosas. A nobreza alemã encontra-se fora da história das civilizações elevadas: a razão é óbvia... Cristianismo, álcool – os dois grandes meios de corrupção... Em suma, não havia mais escolha entre o islamismo e o cristianismo que há entre um árabe e um judeu. A decisão já foi tomada; não há mais liberdade de escolha aqui. Ou bem se é chandala ou bem se não é... “Guerra de morte a Roma! Paz e amizade com o islamismo!”: esse foi o sentimento, essa foi a ação do grande espírito livre, do gênio entre os imperadores alemães, Frederico II. Como? Será preciso que um alemão
seja gênio, espírito livre, para possuir sentimentos decentes? Não consigo imaginar como um alemão poderia sentir-se cristão...
O cristianismo nos fez perder todos os frutos da civilização antiga, e mais tarde nos fez perder os frutos da civilização islâmica. A maravilhosa cultura dos mouros na Espanha, que era fundamentalmente mais próxima aos nossos sentidos e gostos que Roma e Grécia, foi pisoteada (– não digo por que tipo de pés –). Por quê? Porque devia sua origem aos instintos nobres e viris – porque dizia sim à vida, e a com a rara e refinada luxuosidade da vida mourisca!... Mais tarde os cruzados combateram algo ante o qual seria mais apropriado que rastejassem – uma civilização que faria mesmo o nosso século XIX parecer muito pobre e “atrasado”. – O que queriam, obviamente, era saquear: o Oriente era rico... Coloquemos à parte os preconceitos! As cruzadas: pirataria em grande escala, nada mais! A nobreza alemã, que no fundo é uma nobreza de viking, estava em seu elemento com as cruzadas: a Igreja sabia muito bem como ganhar a nobreza alemã.... A nobreza alemã, sempre a “guarda suíça” da Igreja, estava ao serviço de todos maus instintos da Igreja – mas bem paga... Foi precisamente a ajuda das espadas, do sangue e do valor alemães que permitiu à Igreja fazer sua guerra de morte contra tudo que é nobre sobre a Terra! Aqui poderiam ser feitas perguntas bastante dolorosas. A nobreza alemã encontra-se fora da história das civilizações elevadas: a razão é óbvia... Cristianismo, álcool – os dois grandes meios de corrupção... Em suma, não havia mais escolha entre o islamismo e o cristianismo que há entre um árabe e um judeu. A decisão já foi tomada; não há mais liberdade de escolha aqui. Ou bem se é chandala ou bem se não é... “Guerra de morte a Roma! Paz e amizade com o islamismo!”: esse foi o sentimento, essa foi a ação do grande espírito livre, do gênio entre os imperadores alemães, Frederico II. Como? Será preciso que um alemão
seja gênio, espírito livre, para possuir sentimentos decentes? Não consigo imaginar como um alemão poderia sentir-se cristão...
LXI
Neste momento faz-se mister evocar uma memória cem vezes mais dolorosa aos alemães. Os alemães impediram a Europa de colher os últimos grandes frutos de cultura – a Renascença. Compreende-se finalmente, será que por fim compreende-se o que era a Renascença? A transmutação dos valores cristãos – uma tentativa com todos os meios, todos os instintos e todos os recursos do gênio para fazer triunfarem os valores opostos, os valores mais nobres... Até ao presente essa foi a única grande guerra; nunca houve uma questão mais crítica que a da Renascença – que é minha questão também –; nunca houve uma forma de ataque mais fundamental, mais direta, mais violentamente desferida por toda uma frente contra o centro do inimigo! Atacar no lugar decisivo, no próprio assento do cristianismo, e lá entronar os valores nobres – isto é, introduzi-los nos instintos, nas necessidades e desejos mais fundamentais dos que ocupavam o poder... Vejo diante de mim a possibilidade de um encantamento supraterreno: – parece-me que cintila com todas vibrações de uma beleza sutil e refinada, dentro da qual há uma arte tão divina, tão diabolicamente divina, que em vão se procuraria através dos milênios por semelhante possibilidade; vejo um espetáculo tão rico em significância e ao mesmo tempo tão maravilhosamente paradoxal que daria a todas as divindades do Olimpo o ensejo de irromper numa imortal gargalhada – César Bórgia como Papa!... Compreendem-me?... Pois bem, essa teria o sido a espécie de vitória que hoje somente eu desejo –: com ela o cristianismo teria sido abolido! – Que sucedeu? Um monge alemão, Lutero, chegou a Roma. Esse monge, com todos os instintos vingativos de um padre malogrado no corpo, levantou uma rebelião contra a Renascença em Roma...
Neste momento faz-se mister evocar uma memória cem vezes mais dolorosa aos alemães. Os alemães impediram a Europa de colher os últimos grandes frutos de cultura – a Renascença. Compreende-se finalmente, será que por fim compreende-se o que era a Renascença? A transmutação dos valores cristãos – uma tentativa com todos os meios, todos os instintos e todos os recursos do gênio para fazer triunfarem os valores opostos, os valores mais nobres... Até ao presente essa foi a única grande guerra; nunca houve uma questão mais crítica que a da Renascença – que é minha questão também –; nunca houve uma forma de ataque mais fundamental, mais direta, mais violentamente desferida por toda uma frente contra o centro do inimigo! Atacar no lugar decisivo, no próprio assento do cristianismo, e lá entronar os valores nobres – isto é, introduzi-los nos instintos, nas necessidades e desejos mais fundamentais dos que ocupavam o poder... Vejo diante de mim a possibilidade de um encantamento supraterreno: – parece-me que cintila com todas vibrações de uma beleza sutil e refinada, dentro da qual há uma arte tão divina, tão diabolicamente divina, que em vão se procuraria através dos milênios por semelhante possibilidade; vejo um espetáculo tão rico em significância e ao mesmo tempo tão maravilhosamente paradoxal que daria a todas as divindades do Olimpo o ensejo de irromper numa imortal gargalhada – César Bórgia como Papa!... Compreendem-me?... Pois bem, essa teria o sido a espécie de vitória que hoje somente eu desejo –: com ela o cristianismo teria sido abolido! – Que sucedeu? Um monge alemão, Lutero, chegou a Roma. Esse monge, com todos os instintos vingativos de um padre malogrado no corpo, levantou uma rebelião contra a Renascença em Roma...
Nenhum comentário:
Postar um comentário