Total de visualizações de página

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

A Política - Aristóteles - parte 3


O fim a que se propõe o comércio não tem limite determinado. Ele compreende todos os bens que se podem adquirir; mas é menos a sua
aquisição do que seu uso 0 objeto da ciência econômica; esta, portanto, está necessariamente restrita a uma quantidade determinada. Não ignoramos que neste ponto a teoria é desmentida pela prática. Todos, e
principalmente os comerciantes, amam o dinheiro, não julgam ter o suficiente e sempre acumulam. De um ao outro, é apenas um passo. O dinheiro serve-lhes para dois usos análogos e alternativos: um, para comprar as coisas e revendê-las mais caro; outro, para emprestar e retirar, após o prazo estabelecido, seu capital com juros. Estes dois ramos do seu tráfico não diferem, como se vê, senão porque um interpõe as coisas para aumentar o
dinheiro, enquanto o outro o faz servir imediatamente ao seu próprio aumento. Alguns acham que as duas operações convêm ao governo doméstico e que
é preciso não somente conservar o que se tem, mas também multiplicar o dinheiro ao infinito. O princípio desta disposição de espírito é que eles só
pensam em viver e não em bem viver', paixão que não tem limites e não refreia de modo algum a escolha dos meios.
Aqueles mesmos que desejam bem viver não deixam de procurar também os prazeres da vida animal e, como isso depende das faculdades pecuniárias, põem todo seu zelo em obtê-los. Este é o princípio de uma outra espécie de
tráfico cujos recursos só foram imaginados para o luxo.
Aqueles que considerações particulares impedem de correr atrás da fortuna através do comércio tentam consegui-la por outros meios, às vezes até pelo
mais monstruoso abuso de suas qualidades superiores e de suas faculdades. A coragem, por exemplo, não foi dada ao homem pela natureza para acumular bens, mas para proporcionar tranquilidade. Não é esse tampouco o objeto da profissão militar, nem o da medicina, tendo uma por objeto vencer, e outra curar. Converteram-nas, porém, em meios de obter riqueza: elas se tornam o único fim da maioria das pessoas que entram nessas carreiras e subordinam tudo à meta que se propuseram.
Vemos quais são os meios artificiais e não necessários de adquirir bens, e as causas que determinam que se recorra a eles; vemos também quais são os meios naturais e necessários que têm por objeto garantir a subsistência e que pertencem ao governo doméstico, gênero de aquisição que tem limites e é muito diferente daquele que não os tem. Apreciação dos Dois Modos de Aquisição
A questão pela qual começamos era saber se o governo, quer doméstico, quer político, compreende a tarefa de adquirir ou se ele não pressupõe já feitas
as aquisições. Pois, assim como a política não faz os homens, mas os recebe da natureza e se serve deles, assim também é preciso antes, para que a
economia possa administrá-los, que a natureza forneça nosso sustento, ou do seio da terra, ou do mar, ou de qualquer outra maneira. Um fabricante de tecidos
não faz a lã, mas serve-se dela; julga se ela é boa ou má e própria ou não aos seus fins. Caso contrário, poderíamos perguntar por que a preocupação com a fortuna
faria, mais do que a medicina, parte do governo doméstico. Se, com efeito, é preciso que a família tenha alimentos e outras coisas necessárias à vida, é preciso também que ela goze de saúde, mas se convém, sob alguns aspectos, que o chefe da família ou do Estado mantenha sob seus cuidados a saúde de seus protegidos, sob outros aspectos isto cabe mais ao médico do que a ele; igualmente, para o abastecimento e a abundância, este cuidado pode também caber a seus ministros.
O governo, como já dissemos, pressupõe a existência de todas essas coisas: cabe à natureza fornecer o alimento aos seres que gera e, de ordinário, o pai o dá aos filhos. Nada de mais natural do que o cuidado em colher frutos ou nutrir o gado para o uso. Assim, das duas maneiras de adquirir e de se enriquecer, uma pela economia e pelos trabalhos rústicos, outra pelo comércio, a primeira é
indispensável e merece elogios; a segunda, em contrapartida, merece algumas censuras: nada recebe da natureza, mas tudo da convenção. O que há de mais odioso, sobretudo, do que o tráfico de dinheiro, que
consiste em dar para ter mais e com isso desvia a moeda de sua destinação primitiva? Ela foi inventada para facilitar as trocas; a usura, pelo contrário, faz
com que o dinheiro sirva para aumentar-se a si mesmo; assim, em grego, lhe demos o nome de tokos, que significa progenitura, porque as coisas geradas se
parecem com as que as geraram. Ora, neste caso, é a moeda que torna a trazer moeda, gênero de ganho totalmente contrário à natureza. Algumas Maneiras Práticas de Adquirir O que dissemos basta para a teoria. Agora é preciso dar à prática alguns desenvolvimentos, pois, se a discussão da teoria tem sua liberdade, a prática
também tem sua necessidade.  A atenção deve concentrar-se principalmente no conhecimento das coisas
antes que elas próprias sejam adquiridas: saber quais são as melhores, onde se encontram, e qual é a maneira mais vantajosa de obtê-las; por exemplo, quais são os melhores cavalos, os melhores bois, os melhores carneiros ou outros animais, em que regiões eles se dão bem (pois nem todas as regiões são igualmente próprias para criá-los), e como podemos tê-los. O mesmo ocorre para a agricultura: é preciso conhecer os diversos tipos de terrenos virgens ou
plantados; igualmente, ainda, para as abelhas, os animais aquáticos e as aves de galinheiro: devemos saber que proveito podemos tirar deles. Quanto às maneiras de adquirir por troca, a principal é o comércio, que se
divide em três partes: navegação, transporte por terra e venda no próprio local. Estas partes diferem entre si, sendo umas mais seguras, outras mais lucrativas.
Depois do comércio, vem o tráfico de espécies metálicas.
Seguem-se os trabalhos mercenários, dos quais alguns dependem de alguma arte, enquanto outros só requerem o trabalho corporal. Uma quarta maneira, que fica entre a terceira e a primeira (pois é em parte natural, em parte comercial), diz respeito às coisas que se tiram da terra e não são frutos, mas têm sua utilidade, como a exploração da madeira, a das minas, que se subdivide por sua vez em muitas partes, pois há várias espécies de
minas, cujos detalhes aqueles que as exploram devem conhecer, mas seria cansativo enumerar aqui.
Dentre estes diversos trabalhos, os mais excelentes pela arte são os que menos devem ao acaso; os mais baixos, os que mais sujam o rosto e as mãos;
os mais servis, aqueles em que o corpo trabalha mais do que o espírito; os mais ignóbeis, os que não requerem nenhuma espécie de virtude. Existem escritores que se ocuparam desses diversos assuntos, tais como
Carés de Paros, Apolodoro de Lemnos, autores de tratados sobre a cultura dos campos e dos pomares, e outros ainda, sobre outras matérias. Os curiosos
devem consultá-los. Também será bom recolher as máximas esparsas que serviram a alguns
para enriquecer, como o que se conta de Tales de Mileto. Trata-se de uma das especulações gerais para alcançar a fortuna, mas atribuída a ele por causa de
sua sabedoria. Como o censuravam pela pobreza e zombavam de sua inútil filosofia, o conhecimento dos astros permitiu-lhe prever que haveria abundância
de olivas. Tendo juntado todo o dinheiro que podia, ele alugou, antes do fim do inverno, todas as prensas de óleo de Mileto e de Quios. Conseguiu-as a bom
preço, porque ninguém oferecera melhor e ele dera algum adiantamento. Feita a colheita, muitas pessoas apareceram ao mesmo tempo para conseguir as
prensas e ele as alugou pelo preço que quis. Tendo ganhado muito dinheiro, mostrou a seus amigos que para os filósofos era muito fácil enriquecer, mas que
eles não se importavam com isso. Foi assim que mostrou sua sabedoria.  Em geral, o monopólio é um meio rápido de fazer fortuna. Assim, algumas cidades, quando precisam de dinheiro, usam desse recurso. Reservam-se a si mesmas a faculdade de vender certas mercadorias e, por conseguinte, de fixar seus preços como querem.
Na Sicília, um homem que obtivera vários depósitos de dinheiro apoderou-se dos ferros das forjas. Quando os mercadores vieram de todas as partes para obtê-los, só ele pôde vendê-los, contentando-se com o dobro, de
maneira que o que lhe custara cinqüenta talentos vendia por cem. Dionísio, o tirano, informado do caso, não confiscou seu lucro, mas ordenou-lhe que saísse
de Siracusa por ter imaginado, para enriquecer, um expediente prejudicial aos interesses do chefe de Estado. Aquele homem tivera a mesma idéia que Tales:
ambos do monopólio fizeram uma arte.
É bom que os que governam os Estados conheçam esse recurso, pois é preciso dinheiro para as despesas públicas e para as despesas domésticas, e o Estado está menos do que ninguém em condições de dispensá-lo. Assim, o
capítulo das finanças é quase o único a que alguns prestam atenção. Dos Poderes Marital e Paternal
Mais acima, dividimos o governo doméstico em três poderes: o do senhor, de que acaba de se tratar, o do pai e o do marido. O pai de família governa sua
mulher e seus filhos como a seres livres, mas cada um de um modo diferente: sua mulher como cidadã, seus filhos como súditos. Na ordem natural, a menos que, como em certos lugares, isto tenha sido derrogado por alguma consideração particular, o macho está acima da fêmea e
o mais velho, quando atinge o termo de seu crescimento, está acima do mais jovem, que ainda não alcançou sua plenitude.
Na ordem política, tal como ela existe na maior parte dos povos, obedece-se e comanda-se alternadamente. Todos  os homens livres são considerados iguais
por natureza e todas as diferenças se eclipsam; tanto que se torna preciso distinguir os que comandam dos seus inferiores por marcas exteriores, os hábitos e as dignidades, como disse Amasis, falando de sua bacia
transformada em deus". Quanto ao sexo, a diferença é indelével: qualquer que seja a idade da
mulher, o homem deve conservar sua superioridade.
A autoridade dos pais sobre os filhos é uma espécie de realeza; todos os títulos ali se encontram: o da geração, o da autoridade afetuosa e o da idade. É
até mesmo o protótipo da autoridade real; foi o que fez com que Homero dissesse de Zeus: É o pai imortal dos homens e dos deuses e, por conseguinte, o rei de todos eles. Pois um rei, se recebeu da natureza alguma superioridade sobre seus súditos, continua a ter o mesmo gênero que eles, como os velhos com relação aos jovens e como um pai com relação a seus filhos.
As Virtudes Próprias aos Diversos Membros da Família
Segue-se do precedente que o governo doméstico exige atenções muito diferentes para o sustento das pessoas e para a posse das coisas inanimadas, para seus costumes e para a acumulação de riquezas, para as pessoas livres e
para os escravos. Primeiramente, podemos exigir dos escravos, além de seus serviços e de suas funções materiais, um mérito mais eminente, por exemplo, a prudência, a coragem, a justiça ou outros hábitos semelhantes? Não basta que eles cumpram
suas funções? A resposta é difícil de ambos os lados. Se exigirmos deles que tenham virtudes, em que diferirão das pessoas livres? Mas, se não precisarem
delas, isto chocará a razão, de que participam como todos os homens. A mesma questão pode ser colocada a respeito das mulheres e das crianças. Devemos exigir delas certas virtudes? Por exemplo, deve uma mulher
ser sábia, corajosa e justa? Deve uma criança ter contenção e sobriedade? Em geral, são necessárias as mesmas virtudes nos que comandam e nos
que obedecem, ou então outras? Se as mesmas qualidades lhes são necessárias, por que então o mando cabe a um e a obediência a outro? A diferença entre os dois não é do mais para o menos, mas sim específica e
produz efeitos essencialmente diversos. Não menos estranho seria exigir virtudes de um lado e não de outro. Se quem comanda não é nem justo, nem
moderado, como é possível que comande bem? Se aquele que obedece carece dessas virtudes, qual não será a obediência de um corrompido e de um mau? É preciso, pois, que ambos tenham virtudes, mas que suas virtudes
tenham caracteres diferentes, da mesma variedade que se observa nos seres nascidos para obedecer.
Isto se vê imediatamente nas faculdades da alma. Dentre estas, uma há que por sua natureza comanda - é aquela que participa da razão - e outras que obedecem: são as que não participam dela. Cada uma tem um tipo de virtude que lhe é próprio. O mesmo ocorre com os seres distintos. Assim como neles se encontram diversas espécies de superioridade e de subordinações determinadas pela natureza, há também várias formas de comando. A maneira de comandar não é
a mesma do homem livre ao seu escravo, do marido à mulher, do homem adulto a seu filho. Todos têm uma alma dotada das mesmas faculdades, mas de modo
diferente: o escravo não deve de modo algum deliberar; a mulher tem direito a isso, mas pouco, e a criança, menos ainda.
Seguem suas virtudes morais a mesma gradação: todos devem possuías, mas somente tanto quanto convém a seu estado. Quem comanda deve possuí-Ias todas no mais alto grau. Sua função é como a do arquiteto, isto é, a
da própria razão; as dos outros se regulam pela conveniência. Todos têm, portanto, virtudes morais, mas a temperança, a força, a justiça não devem ser,
como pensava Sócrates, as mesmas num homem e numa mulher. A força de um homem consiste em se impor; a de uma mulher, em vencer a dificuldade de
obedecer. O mesmo ocorre com as demais virtudes.
Quanto mais refletirmos, mais nos convenceremos disto. É ilusório contentar-se com generalidades sobre esta matéria e dizer vagamente que a virtude consiste nos bons hábitos da alma, ou então no bem agir ou outras
fórmulas do gênero. Mais vale, como Górgias, estabelecer a lista das virtudes do que se deter em semelhantes definições e imitar, no mais, a precisão do poeta
que disse que um modesto silêncio é a honra da mulher
ao passo que não fica bem no homem.
Sendo a criança imperfeita e não podendo ainda encontrar em si mesma a regra de suas ações, sua virtude é ser dócil e submissa ao homem maduro que
cuida de seu acompanhamento. O mesmo acontece com o escravo relativamente a seu senhor: é em bem
fazer o seu serviço que consiste a sua virtude; virtude bem pequena que se reduz a não faltar aos seus deveres nem por má conduta, nem por covardia. Se o que acabamos de dizer é verdade, os artesãos a que muitas vezes
ocorre trocar o trabalho pela farra devem precisar de virtude. Mas ela será de uma espécie muito diferente, pois o escravo vive conosco. O artesão, pelo contrário, está separado, e sua virtude não nos importa senão quando está a nosso serviço. A este respeito, um profissional está numa espécie de servidão limitada; mas a natureza que faz os escravos não faz os sapateiros, nem os
outros artesãos. Quando os empregamos, não é a vontade de quem os ensinou a trabalhar, mas a do senhor que encomenda a obra que eles devem seguir.
Ademais, seria erro proibir, mesmo aos escravos, todo raciocínio e fazer deles, como alguns fazem, simples máquinas de obedecer; é preciso mostrar-lhes seu dever com indulgência ainda maior do que para com as
crianças.
Quanto ao homem e à mulher, ao pai e aos filhos, quais são as virtudes próprias a cada um deles? Qual deve ser a maneira de viverem juntos? O que devem buscar ou evitar? Como devem praticar tal coisa e abster-se de  outra? É o que é indispensável examinar quando tratamos da política. Todos eles fazem parte da família, e a família faz parte do Estado. Ora, o mérito da parte deve
referir-se ao mérito do todo. A educação das mulheres e das crianças deve ser da alçada do Estado, já que importa à felicidade do Estado que as mulheres e
as crianças sejam virtuosas.

Nenhum comentário: