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domingo, 21 de janeiro de 2018

1.1 - De coração para coração

Escrevo-te
estas mal traçadas linhas,
meu amor,
porque veio a sauadade
visitar meu coração.
Espero que desculpes
os meus erros por favor,
nas frases desta carta
que é uma prova de afeição...

Cartas íntimas são acervos pessoais, coleções de narrativas que retratam no papel sentimentos declarados e rompidos, satisfeitos ou sucumbidos; muitas vezes com folhas já amareladas pelo tempo, mas ainda portadoras de mensagens amorosas alimentadoras de sentimentos, que desfolham amores ou dissabores. Expõem uma complexidade de memórias e de significados, porque as palavras por si só não têm poder, nós é que lhes atribuímos significações e as valoramos, determinamos sua força a partir dos efeitos produzidos naquele e por aquele que as lê. O gênero textual carta íntima, de caráter dialógico, interativo e interlocutivo; instaurado pelas idas e vindas e troca de correspondências entre as pessoas, apresenta em seu funcionamento uma produção de linguagem capaz de situar socialmente aquele que a escreve e, por isso, circula em diversos ambientes e suportes, passando entre eles pela música e pelo romance. (BAKHTIN, 2000)

A carta íntima pode circular como um gênero primário cumprindo a função amorosa ou como gênero secundário em cações, romances e contos. Um exemplar, de gênero secundário é a composição "Você me acende" de Benil Santos e Raul Sampaio, que explora o tema da carta amorosa, datada de 1966 e interpretada por Erasmo Carlos. Canção posteriormente regravada no final da década de 1990 por Renato Russo no álbum duplo "Renato Russo - Série Bis", reafirma a força da palavra construtora de uma visão de amor partilhado, escritos em carta; carta esta com rasuras, algumas supressões ou deslocamentos, mais ainda assim é por meio da carta que um emaranhado de sentimentos é expresso imortalizando vivências.

Quem, entre tantos outros, tantos outros também cantou sobre amores e cartas foi Maria Bethânia, em seu disco de 1997, "Imitação da Vida"; um samba-canção, composição de Aldo Cabral e Cícero Nunes datada de 1946 e interpretada por Isaura Garcia no seu LP "Paixão e Romance". A música apresenta o retrato e a forma de organização da sociedade e o quanto uma carta de amor ou desamor era esperada.


Mensagem

Quando o carteiro chegou
e o meu nome gritou
com uma carta na mão
ante surpresa tão rude
nem sei como pude chegar ao portão

Lendo o envelope bonito
no seu sobrescrito eu reconheci
a mesma caligrafia
que me um dia
estou farto de ti

Porém não tive coragem
de abrir a mensagem
porque na incerteza
eu meditava e dizia

será de alegria
ou será de tristeza?
Quanta verdade tristonha
ou mentira risonha
uma carta nos traz?
E assim pensando rasguei
tua carta e queimei
para não sofrer mais

À composição original de "Mensagem", Bethânia ainda acrescentou um texto de Álvaro de Campos, um dos heterônimos mais conhecidos de Fernando Pessoa, para demonstrar as mudanças das escritas epistolares quando tratam de amor. Nelas o sentimento transpassa a vontade, a saudade, a inquietação, mas também dá mostras de negatividade, angústia e lacunas de insegurança; espectro do que um dia já encantou ao coração.

Todas as cartas de amor são ridículas
Todas as cartas de amor são
ridículas
Não seriam cartas de amor se não fossem
ridículas
Também escrevi no meu tempo cartas de amor,
como as outras
 ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
cartas de amor
é que são
ridículas.

Quem me dera o tempo em que escrevia
sem dar por isso
cartas de amor
ridículas.

A verdade é que hoje
as minhas memórias
dessas cartas de amor
é que são
ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
como os sentimentos esdrúxulos,
são naturalmente
ridículas).

É válido lembrar que as cartas íntimas já imortalizaram vivências e sentimentos de casais apaixonados, com Dom Pedro I e Marquesa de Santos, Fernando Pessoa e Ofélia, Machado de Assis e Carolina, Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, além de tantos outros; aproximaram os apaixonados pela escrita, encurtaram distâncias, ofereceram-se muitas vezes como alicerces a futuros relacionamentos, por vezes tão sonhados, em muitos casos duradouros, e em outros tantos, ridículas; com significações muitas vezes incompreendidas por aqueles que desconhecem a representação do sentimento que perpassou a escrita no momento em que ela aconteceu.  O que se tem são usos e manipulações de vestígios de um passado que a história ressuscita, revitaliza e desloca contextos para apreendê-los num presente por vezes contraditório.

Pierre Nora (1993, p. 02), afirma em Les Lieux de Mémorie, traduzido para cátedra Seminário de História Argentina pelo professor Fenando Jumar, que 

La memoria es la vida... en evolucion permanente, abierta a la dialéctica del recuerdo y la amnésia inconsicente de sus deformaciones sucesivas, vulnerable a todas las utilizaciones u manipulaciones, suceptible a largas latências y repentinas revitalizaciones. La historia es la reconstrucción, siempe problemática e incompleta, de lo que ya no es. La memoria es un fenómeno siempre actúa un lazo vivido en presente eterno. la historia, una representación; ella se alimenta de recurdos vagos, globales... particulares o simbólicos...

Cartas, até mesmo as de amor, são documentos escritos, lugares de memória, vestígios de um acontecido e que merecem um olhar atento porque fornecem registros identificadores de uma cultura, porque reconstituem uma necessidade de memória, de tempo e de história.  O que também se aproxima do pensamento de Le Goff (2012, p.539-540) ao afirmar que:

Onde o homem passou, onde deixou qualquer marca da sua vida e da sua inteligência, aí está a história... Não há história sem documentos.  Há que tornar a palavra "documento" no sentido mais amplo, documento escrito, ilustrado, transmitido pelo som, a imagem, ou de qualquer outra maneira.

O sentimento pode até ser ilusório, efêmero, provisório, mas as palavras escritas, trocadas entre o casal podem, se isto teve algum valor para pelo menos uma das partes, tornarem-se permanentes, porque, acredita-se que, quem ama preserva aquilo que ama, pois os lugares de memória se oferecem como percurso de uma livre história. Mas, para o alemão Walter Benjamin (1995, p.84) "algumas vezes o choque de resgatar o passado seria tão destrutivo, que no exato momento, forçosamente deixaríamos de compreender nossa saudade"; o que seria preferível deixar no esquecimento a resgatar.

Em "Memória e Poder: dois movimentos", Mário de Souza Chagas (2002, p.32), expõe o que pensa sobre deixar no esquecimento ou preservar os percursos de história

[...] trata-se frequentemente de justificar a preservação pela iminência da perda e a memória pela ameaça do esquecimento, com isso, deixa-se de considerar que o jogo e as regras do jogo entre esquecimento e memória não são alimentados por eles mesmo e que a destruição não se opõem num duelo mortal, complementam-se e sempre estão a serviço de sujeitos que se constroem e são construídos através de práticas sociais.

Aqui, vale ressaltar que as cartas que sobrevivem ao tempo e aos jogos de poder entre preservação e destruição, perdem seus significados e outra função entra em jogo. A escrita é funcionalizada para atender a outras intenções e objetivos, tornando-se assim objeto de estudo, provocando o interesse de quem pesquisa e a curiosidade de quem se interessa pelo tema.

Na escrita íntima, intensa de sentimentos ou ressentimentos e repleta de sensibilidade, as palavras são a ligadura que dão vida aos sentimentos, alimentam o imaginário e suscita em seus usuários uma poesia muitas vezes capaz de alimentar almas, comover e conquistar. Em cartas, as narrativas sentimentais aparecem como instrumento para cimentar marcadores conversacionais, que são elementos verbais desempenhando funções participativas no discurso e, que segundo Marchuschi dividem-se em; simples, compostos, oracionais e prosódicos; assim como escolhas e posicionamentos, o que também pode ser observado nas missivas que circulam na literatura, demarcando a força do texto epistolar e representando as conversas de coração para coração.

Rosilda da Silva

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