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quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

1.2 - Quando a palavra não cabe na escrita

Escreve-me com frequência, o que me é grato,
pois te mostras a mim pelo único meio de que dispões.
De cada vez que me chega carta tua, eis-me de imediato juntos.
Se ficamos felizes por possuir os retratos dos nossos amigos ausentes...
Quanto mais não nos alegra uma carta, pois traz vivas as marcas do ausente,
o cunho autêntico de sua pessoa. O traço de uma mão amiga, impressa nas páginas,
proporciona o que há de mai doce na presença: reconhecer", (Carta de Sêneca a um amigo)

Não é de hoje que a força do texto ultrapassa seu suporte e suas representações. Sêneca, por exemplo, foi capaz de perceber a mão amiga e reconhecer a presença do outro de imediato; era a ausência sendo desfeita para materializar-se pela escrita. Tinha, pois, a carta, não apenas linguagem verbal, mas muitas outras não abarcadas pela escrita.

Assim também aconteceu a partir da segunda metade do século XVII quando o Romantismo avulta-se como corrente estética e literária alimentando-se de tensões e polaridades e, traçando pela escrita muito mais do que a linguagem verbal é capaz de expressar. A ideologia romântica rompe com o sonho, o espaço e o tempo. Os românticos, desgostosos da realidade representaram pela literatura seus demônios e influenciaram muitas pessoas; trabalharam essa realidade a ponto de mudá-la e transformá-la, captando a atmosfera de uma época na qual o amor era absoluto. O Romantismo representou um período de desequilíbrio emocional, de agitação e de caos, devassou a interioridade humana e a serenidade; sua representação pela literatura repercutia para além da literatura, a ponto de as pessoas lerem o texto ficcional e perceberem-se nele; perceberem que aqueles escritos ressignificavam a própria vida, levando-os a assumirem o gesto do personagem.

Johann Wolfgang von Goethe, ícono e do Romantismo alemão, apesentou toda a força da palavra ficcional por meio de cartas literárias. Nelas, o amor romântico era mantido e sustentado pelas palavras; o amor era imbatível, próximo da perfeição; absoluto e não admitia trocas. E a carta, que já foi um dos meios de comunicação mais utilizados, serviu a Goethe para mover parte de uma geração ao suicídio, concretizando assim suas frustrações e impossibilidades.

O Romantismo, assim como uma obra de arte que requer o afastamento necessário para uma melhor visualização do todo, também pôde a partir do distanciamento pelo tempo ser estudado. Para Aguiar e Silva (1973, p.488) "O romantismo [...] impôs uma concepção histórica do homem e das suas atividades transferindo-os do espaço abstrato e permanente em que a ordem clássica os situava, para um espaço e um tempo concreto e mutável."

O romance "Os sofrimentos do jovem Werther", de Goethe, publicado originalmente, em 1774 e caracterizado por seu teor epistolar, marco do Romantismo alemão, movimento literário guiado pela idealização do amor e pela subjetividade, exemplifica como a força amorosa pode ser determinante na vida. De temática monofônica, o romance é um convite para adentrarmos nas emoções e nos sofrimentos de Werther, que traduz seu amor pela jovem Carlota, em cartas escritas ao amigo Wilhelm. Nelas são relatadas as desordens afetivas pelas quais passou o protagonista, suas inseguranças e fragilidades, bem como a evolução de suas reflexões acerca do conhecimento e da incapacidade de lidar com o sentimento que embotava sua razão.

Junho, 16
A razão por que eu não tenha escrito? [...]
Em duas palavras, conheci alguém que tocou o meu coração [...]
É um anjo!... Bolas! Já sei que todos dizem isso da sua amada, não é verdade?
Entretanto, é-me impossível dizer a você o quanto ela é perfeita. Só isto basta:
ela tomou conta de todo o meu ser. (1971, p.26)

O romance é linear, sequenciado pela datação das cartas, retrata os sentimentos paradoxais, oscilantes entre a ética e os costumes da época e o turbilhão emocional regido pelo acaso que arrasta os personagens de forma antagônica ora revelando, ora ocultando sentidos, significados e sentimentos, amalgamando almas e inibindo as ações. A heroína Carlota ilustra o ideal de mulher apresentado pela alta sociedade alemã e lhe era inconcebível agira de forma que maculasse sua dignidade, a moral ou os costumes vigentes e, oscilava entre o amor de Werther e o respeito ao padrão convencional permitido socialmente a uma moça comprometida pelo noivado.

Junho, 19
[...] Todos os companheiros tinham adormecido. Carlota perguntou-me se eu não queria fazer o mesmo, dizendo-me que não me constrangesse por causa dela. [...] Assim, viajamos em excelentes disposições até a sua porta. A criada veio abri-la muito cautelosamente e respondeu a todas as perguntas de Carlota, informando que seu pais e as crianças estavam bem e dormiam ainda. Deixei-a então, pedindo que me permitisse ir vê-la naquele mesmo dia. Ela consentiu e eu voltei lá [...] (1971, p.36)

Werther, ao descobrir que amava Carlota tornou-se inquieto e lançou sobre sua própria alma a escuridão, tendo em vista que a moça era noiva e mesmo percebendo a reciprocidade de seus sentimentos, nada poderia fazer para dominar seus impulsos amorosos. Esta condição de cativo de um amor idealizado é o que segmenta a escrita de cartas. Nelas é possível acompanhar desde o nascimento deste amor, os obstáculos enfrentados por Werther, as angústias por ele sofridas, a tentativa de fuga deste sentimento, até o final trágico. O medo de expor esse amor ofuscava seus sentidos e o lançava à escuridão, pois não lhe era suficiente a apresentação estética, tanto é que escrevia para Wilhelm por possivelmente não querer se sentir só em meio aos desejos de amor que era incapaz de viver.

Werther deixava transparecer uma confusão interior que refletia imaturidade e insegurança nos traços de sua identidade, que aqui é entendida a partir da ótica de Candau (2010, p.45) "a identidade, é uma construção social, de uma certa maneira sempre acontecendo no quadro de uma relação dialógica com o outro... que perdura para além das trajetórias individuais..." E a trajetória de Werther narrada em suas cartas é marcada pela presença de outros. Esta prática de sociabilidade do protagonista registrada na escrita epistolar literária dá mostras de conexões feitas e deixa rastros dessas conexões que costuram e amalgamam à sua identidade.

Julho,8
Como somos criança! Como somo ávidos de um olhar! [...] Perdoe-me, se estou louco, mas queria que você visse aqueles olhos! [...] Eu buscava os olhos de Carlota, mas, ai de mim, eles iam de um lado para o outro, sem pousar em mim, que ali estava sem outro pensamento que não fosse para ela! [...] O carro partiu e uma lágrima rolou nos meus olhos. [...] via cabeleira de Carlota precipitar-se para fora da portinhola, vi que ela se voltava para olhar... Seria para mim? [...] Talvez ela se tenha voltado para me olhar! Talvez! [...] (1971, p.46-47)

A digressão aqui, se mostra pelo fluxo de consciência apresentado nas caras, no início da obra o personagem se mostra cético em relação ao amor e com uma visão bastante madura sobre a vida e as pessoas. Após passar por uma desilusão amorosa decide se privar desse sentimento e dedicar-se às viagens, como rota de fuga de si mesmo e à contemplação da natureza. Todavia, como mostra no fragmento acima, render-se aos encantos de Carlota não foi uma opção, mas optar detalhar seu amor nas cartas que escrevia ao amigo Wilhelm e como se sentia frene ao turbilhão de emoções que o cercava, Werther exemplificava pela escrita os padrões comportamentais de uma época. 

Agosto, 15
A coisa mais certa deste mundo que é o afeto, somente, torna o homem necessário. Sinto que Carlota ficaria triste se me perdesse e as crianças sequer chegariam a admitir que eu deixe de ir lá todos os dias [...] Ensino-lhes uma porção de coisas e fico admirado da impressão que tudo isso provoca neles.

O caráter utilitário que o personagem emprega ao sentimento revela a trajetória de construção de si mesmo, suas inquietudes sociais e a exposição de seu eu a partir da partilha de seus sentimentos. Pela escrita das cartas o personagem transcende limites de espaço e dá vazão aos mais variados assuntos, mostrando diferentes contextos, marcando a melancolia do ideal inatingível e instalando uma linguagem poética que transforma seu texto em outro texto; reconstruindo para o amigo Wilhelm pedaços de sua história e atribuindo significações para a leitura que fazia de sus infortúnios amorosos.

Werther constrói, por meio de sua escrita, imagens que comunicam e justificam suas angústias, bem como direcionam o amigo a captar em seus escritos as lacunas propositais, como silêncios que arquitetam novas investidas e futuras transposições.

Agosto, 22
Sou muitíssimo desgraçado, Wilhelm! Minhas faculdades perderam o equilíbrio, dando lugar a um misto de indolência e agitação. Não posso ficar desocupado e, no entanto, nada posso fazer. Não tenho mais imaginação, nem sentimento da natureza, e os livros só me inspiram tédio.  Tudo nos falta quando estamos em falta conosco mesmos! [...] (1971, p,67)

As cartas de Werther para Wilhelm , conforme os excertos acima, apresentam o vazio que sucumbiu a existência do protagonista e fixam suas narrativas, assim como sua necessidade de se comunicar, registrando exemplos de comportamentos diante às regras imputadas pela sociedade vigente.

Narrativas que apresentam emoções, reflexões acerca da vida, do tempo, da morte, do mundo e tantas outras podem também ser aplicáveis/comparadas ao nosso tempo, pois por vezes nos é difícil definir situações ou expressar sentimentos que nos parecem confusos, como também, entender as tantas fugas existenciais, a complexidade do ser humano em relação ao outro, suas dúvidas, seus anseios e a busca de um sentido para a vida, porque o ser humano é em muitas vezes um desconhecido para si mesmo se não perceber como constructo de suas práticas linguísticas e dos discursos que dela faz, se não conhecer como produto da história. (FOUCAULT, 1995, p. 237)

Durante a leitura de cartas, sejam elas literárias ou não, é possível muitas vezes pensá-las como guardadoras de memórias, hábitos e costumes; linguajar, ideologias, hierarquias sociais. As cartas pessoais registam pedaços de vida, de histórias, de tempos, de comportamentos. Suscitam os serás. Será que assim como descritos eram os comportamentos? Será que o sujeito da carta não era exceção a regra em relação à sociedade em que vivia? Qual teria sido o tom de voz, a intensidade do olhar ou a expressão facial caso a mensagem ao invés de escrita tivesse sido oralizada? Teriam sido as cartas pessoais um conglomerado de intenções, interações, um conjunto de ideias, informações, de distâncias físicas e afetivas? Será que no uso de cartas pessoais como fonte e guardadoras de memórias a nostalgia de um passado distante pode ser mais forte do que as imagens construídas a partir da reposição memorialística?

Sobre o memorialismo, Philipe Artiéres (1998), diz que arquivar a própria vida é se colocar frente a frente com o espelho e enxergar uma imagem mais nítida de si mesmo, confrontando o social com o íntimo e, construindo assim uma prática de resistência, pois para o autor, arquivar é isto, conservar e se construir a partir das tramas feitas com as imagens-rastros refletidas. 

Poucos são os acontecimentos que não deixam um registro escrito, um vestígio de história e, escrever cartas para arquivar momentos, acontecimentos e vivências já foi uma prática bastante usual outrora; prática esta valorizada e disseminada pela alta sociedade e pelos costumes vigentes nos séculos passados. A costura feita pela escrita do passado no presente arquiva tendências de épocas, impulsos amorosos, pedaços de histórias e acarreta a legitimação de uma exigência do arquivamento de si, que para Artiéres (1998) precisa ter função constante e nada deve ser deixado ao acaso, pois manter arquivos para recordar e tirar lições passadas, além de preparar para o futuro permite o reconhecimento de identidade e dá suporte para o presente.

Cabe salientar então, que as cartas emergem como fontes guardadoras de memórias e, além disso, a escrita epistolar em alguns/muitos casos se mostra como uma mescla de arte e técnica, pois o bem escrever pode ser desenvolvido, praticado, exercitado, até o ponto de transformar-se se não em arte, mas em técnica. Nas cartas, é possível encontrarmos o que encanta, mas também agride; o que ilude, mas também revela. Por vezes uma prática deletéria; em outras, verdadeiras mostras de pusilanimidade que agudizam os sentimentos e desmazelam a razão. Talvez, aqui caiba lembrar o poeta João Cabral de Melo Neto, quando diz que "um galo sozinho não tece uma manhã", pois para que as cartas pessoais cumpram com sua função social é necessário haver troca. São as trocas entre o que se lê e o que se escreve; entre o que se sente e o que consegue expressar que constroem o tecido que estrutura o entendimento entre os pares ou as rupturas que fissuram esse componente chave entre eles.

E, se assim o for, é possível definir a escrita como instrumento de perenidade, como "lugar de memória" e, portanto como aporte para sujeitos que se constroem pelas conexões que fazem. A escrita é o fio que costura, firmando pedaços de vida e de história, na grande colcha que se forma pelos rastros que podem ser ligados e combinados e, que cambiantes que são se associam aos novos e outros rastros para produzirem novos e outros sentidos naquele e para aquele que lê.

Refletindo de modo semelhante, Bakthin (2010) que vê a língua como fenômeno social de interação verbal por meio do enunciado, afirma que a comunicação se efetiva através do diálogo e mediada pela palavra, portanto, é possível dizer que as memórias guardadas em cartas íntimas são os elementos fortalecedores dos discursos e carregam em si manifestações e influência das multiplicidade de interações sofridas pelo missivista.

E, sobre enunciado, Bakthin define-o como produto da interação entre o que se fala e o que se ouve e que a palavra proferida serve tanto ao falante quanto ao seu interlocutor, pois é segundo o autor, por meio da lavra que nos definimos em relação ao outro e à coletividade. (BAKTHIN, 2010, p. 34) Além do que, para o teórico (2010, p. 325) "...o enunciado sempre cria algo que existia antes dele, absolutamente novo e singular", o que pode ser entendido como constructo realizado a partir das conexões estabelecidas socialmente, é a enunciação sendo construída a partir da enunciação de outrem, que deixa como rastro a heterogeneidade dos sujeitos na hibridização de seus discursos; pois "o enunciado é apenas um reflexo, uma expressão de algo já existente fora dele, dado e acabado... Todo o dado se transforma em criado." (BAKTHIN, 2010, p. 326)

E, nessa perspectiva, em Memória e Identidade, Candau também reflete sobre enunciado, mas preocupa-se especialmente com os julgamentos exteriores feitos por aqueles que não pertencem ao grupo ou ao sujeito que produziu tal enunciado, pois para o autor quem não vê germinar o que foi produzido pode correr o risco de um julgamento errôneo manifestando olhares estrangeiros a uma comunicação estabelecida anterior a sua presença. (CANDAU 2011)

Cartas íntimas, contudo, que guardam tantas narrativas, ultrapassam o tempo e (des)invisibilizam seus missivistas frente à impossibilidade física de retorno ao passado, oferecem por meio de seus escritos uma forma de recuperar como memória o que o tempo nos relegou; são vozes que reconstituem um passado distante, nas quais, na grande maioria das vezes, as palavras não cabem na escrita, mas apresentam possibilidades de recuperar imagens que o tempo apagou. E, a escrita epistolar se mostra como o fio que costura passado e presente, ligando-os ao mesmo pedaço de história e reconstruindo a grande colcha que juntos formam. Entretanto, lembrando Nora (1993) e Candau (2011) a história é a reconstrução, sempre problemática e incompleta, do que já não existe, e o olhar lançado, ainda que atento, pode produzir dúvidas onde nunca existiu; mas ainda assim, "desde que haja rastro, distância, mediação, não estamos mais dentro da verdadeira memória, mas dentro da história." NORA (2011 p. 08)

A partir dessa perspectiva, o gênero textual carta íntima pode ser considerado rastro. Possui caráter dialógico, interativo e interlocutivo; instaurado pelas idas e vindas e troca de correspondências entre as pessoas, apresenta em seu funcionamento uma produção de linguagem capaz de situar socialmente aquele que a escreve. (BAKTHIN, 2010)

Todavia, a carta íntima vem se transformando com o avanço dos meios eletrônicos, pois, com o surgimento da internet os usuários desta prática têm cada vez mais se distanciado deste tipo de escrita e optado por outros meios; mais rápidos e supostamente mais seguros, como os e-mails, as redes sociais e até mesmo sites de relacionamentos.

Rosilda da Silva

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