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quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 18]

E no entanto, mesmo encerrada numa proveta e apesar dessa segunda
dose de soma, Lenina não se esqueceu de tomar todas as precauções anticoncepcionais prescritas pelos
regulamentos. Anos de hipnopedia intensiva e, dos doze aos dezessete anos, os exercícios maltusianos
três vezes por semana, tinham tornado a prática dessas precauções quase tão automática como o
pestanejar.
- Oh, isto faz-me lembrar uma coisa... - disse ela, saindo da casa de banho. - Fanny Crowne gostava de
saber onde foi que comprou este delicioso cinto de pseudomarroquim verde que me ofereceu.
Às quintas-feiras, de quinze em quinze dias, era o dia das Cerimônias de Solidariedade de Bernard.
Após um rápido jantar no Aphroditaeum (de que Helmholtz tinha sido recentemente eleito sócio, ao
abrigo do artigo II do regulamento), despediu-se do seu amigo e, chamando um táxi no terraço,
ordenou ao condutor que se dirigisse para o Palácio de Cantos em Comum de Fordson. O aparelho
elevou-se a perto de duzentos metros e dirigiu-se para leste. Enquanto efetuava a viragem, apareceu
perante os olhos de Bernard, gigantescamente belo, o palácio. Iluminados pelos projetores, os seus
trezentos e vinte metros de pseudomármore branco de Carrara brilhavam numa alva incandescência por
cima de Ludgate Hill; em cada um dos quatro ângulos do seu terraço para helicópteros um T imenso
luzia, vermelho, contra o céu noturno. Pelos alto-falantes de vinte e quatro enormes trombetas de ouro
vibrava uma solene música sintética.
- Mau, estou atrasado - murmurou Bernard quando avistou o Big Henry(*), o relógio do palácio. E,
com efeito, quando pagava o táxi, Big Henry deu a hora exacta. «Ford», berrou uma formidável voz de
baixo, saindo de todas as trombetas de ouro: «Ford, Ford, Ford, ... » Nove vezes. Bernard correu para o
ascensor.

A grande sala de audições para as cerimônias do Dia de Ford e outras celebrações de cantos em comum
situava-se no andar térreo do edifício. Por cima, à razão de cem por andar, eram as sete mil salas que
serviam para os Grupos de Solidariedade aí terem as suas reuniões quinzenais. Bernard desceu ao
trigésimo terceiro andar, enfiou precipitadamente pelo corredor, ficou hesitante um momento em frente
da sala 3210 e depois, tomando uma resolução, abriu a porta e entrou.
Ford seja louvado! Não era o último. Das doze cadeiras dispostas em volta da mesa circular, três
estavam ainda por ocupar. Sentou-se na mais próxima, tentando tornar-se o menos possível notado, e
dispôs-se a acolher de sobrolho franzido os retardatários que chegassem.
- A que jogou esta tarde? - perguntou-lhe, voltando-se para ele, a rapariga que estava à sua esquerda. -
Ao Golf de obstáculos ou ao electromagnético?
Bernard olhou-a (Ford! Era Morgana Rothschild), e teve de confessar, corando, que não tinha praticado
nenhum desses jogos. Morgana olhou-o com espanto. Houve um silêncio, embaraçoso.
Depois, intencionalmente, virou-lhe as costas e dirigiu-se ao homem mais desportivo que tinha à sua
esquerda.
«Bonito princípio para uma cerimônia de solidariedade! », pensou, contrafeito, Bernard, tendo o
pressentimento de que falharia mais uma vez no seu esforço para realizar a comunhão de pensamento.
Se ao menos tivesse tido o cuidado de olhar à sua volta antes de se precipitar sobre a cadeira mais
próxima! Teria podido sentar-se entre Fifi Bradlaugh e Joana Diesel. Em vez disso, tinha ido enfiar-se
às cegas ao lado de Morgana. Morgana! Ford! Essas sobrancelhas negras, ou, antes, essa sobrancelha,
pois uniam-se por cima do nariz! Ford! E à sua direita estava Clara Deterding. Sem dúvida, as
sobrancelhas de Clara não se uniam. Mas ela era pneumática em demasia, enquanto Fifi e Joana eram
exatamente como convinha. Gorduchas, louras, não muito grandes ... E era esse pesadão do Tom
Kawaguchi que estava agora sentado entre elas.
(*) Charge do autor ao Big Ben, o grande relógio da torre do Parlamento de Westminster. Sendo Ben
um diminutivo inglês, o autor substituiu-o por enry, de Henry Ford. (N. do T.)
A última a chegar foi Sarojini Engels.
- Está atrasada - disse severamente o Presidente do Grupo. - Que isto não se repita.
Sarojini desculpou-se e tomou o seu lugar entre jim Bokanovski e Herbert Bakunin. O grupo está
completo, o círculo de solidariedade estava perfeito e sem falhas. Um homem, uma mulher, um
homem, num círculo alternado e sem fim, em volta da mesa. Eram doze prontos a reunirem-se em um,
esperando aproximarem-se, fundirem-se, perderem-se num ser maior que as suas doze identidades
distintas.
O Presidente levantou-se, fez o sinal de T e, pondo a tocar a música sintética, desencadeou um rufar de
tambores doce e infatigável e um coro de instrumentos - percussão e supercordas -, que repetiram
vigorosamente, muitas e muitas vezes, a melodia breve e obcecante do Primeiro Cântico de
Solidariedade. Mais, mais. E não era já o ouvido que entendia o ritmo martelado, era o diafragma; o
gemido e a vibração dessas harmonias repetidas obcecavam não o espírito, mas as entranhas, criando
um ardente desejo de compaixão.
O Presidente fez um novo sinal de T e sentou-se. A cerimônia começara. Uma porção de comprimidos
de soma estava colocada no centro da mesa. A taça da amizade, cheia de soma em gelado de morangos,
foi passada de mão em mão e, com a fórmula «Bebo pelo meu aniquilamento», foi doze vezes levada
aos lábios. Depois, com acompanhamento de orquestra sintética, foi cantado o Primeiro Cântico de
Solidariedade:
Nós somos doze, Ó Ford! Oh! Faz de nós apenas um,
Como gotas caindo no Rio Social;
Ah! Faz-nos correr sempre unidos,
Mais velozes que a tua fulgurante Carripana!
Doze estrofes de ardor delirante. Em seguida a taça da amizade foi novamente passada de mão em mão.
«Bebo ao Ser Maior», tal era agora a fórmula. Todos beberam. Infatigavelmente, a música continuava.
Os tambores rufavam. Os sons plangentes e atroadores das harmonias conservavam-se em estado de
obsessão nas entranhas comovidas. Cantou-se o Segundo Cântico de Solidariedade:
Vem, ó Ser Maior, ó Amigo Social,
Amalgamando Doze em Um,
Todos queremos estar perto da morte, para quando chegar o fim
Começar então a nossa vida maior!
De novo doze estrofes. Quando chegaram a esse ponto, o soma tinha começado a agir. Os olhos
estavam brilhantes, os rostos corados, a luz interior do bem-querer universal transbordava de cada cara
em sorrisos felizes e amigáveis. O próprio Bernard se sentia um pouco enternecido. Quando Morgana
Rothschild se voltou para ele com um sorriso radioso, fez o melhor que pôde para lho retribuir. Mas a
sobrancelha, essa negra duas-em-uma, diabo, lá estava ela; Bernard não podia deixar de vê-la, não
podia, por mais esforços que fizesse. A ternura não tinha penetrado muito nele. Talvez se estivesse
sentado entre Fifi e Joana... Pela terceira vez, a taça da amizade circulou. Ela bebeu e passou-a a
Bernard. «Bebo pela iminência da Sua Vinda», repetiu ele, com um sincero esforço para sentir que a
Vinda estava iminente. Mas a sobrancelha continuava a obcecá-lo e a Vinda, quanto a ele, estava
terrivelmente distante. Bebeu e estendeu a taça a Clara Deterding. «É outro falhanço - pensou -, não há
dúvida.» Mas continuou a fazer o possível para conseguir um sorriso radiante.
A taça da amizade tinha terminado o circuito. Erguendo a mão, o Presidente fez um sinal. O coro
entoou o Terceiro Cântico de Solidariedade:
Senti a Vinda do Grande Ser!
Regozijai-vos, morrei com esse regozijo!
Uni-vos ao som dos tambores!
Pois eu sou vós e vós sois eu.
À medida que uma estrofe se sucedia às outras, as vozes vibravam numa superexcitação cada vez mais
intensa. O sentimento da iminência da Vinda era como uma tensão eléctrica no ar.
O Presidente parou a música com uma torção no interruptor. A seguir à última nota da última estrofe
houve um silêncio absoluto, o silêncio da espera tensa, vibrando e ofegando numa vida galvânica. O
Presidente estendeu a mão. E subitamente uma voz, uma voz forte e profunda, mais musical que
qualquer voz simplesmente humana, mais cheia, mais quente, mais vibrante de amor, de ansioso desejo
e de compaixão, uma voz maravilhosa, misteriosa, sobrenatural, falou-lhes, por cima das cabeças,
muito lentamente: «Oh, Ford, Ford, Ford!», disse ela, atenuando-se e descendo de tom. Uma sensação
de doce calor espalhava-se por todo o corpo daqueles que escutavam, do plexo solar a cada uma das
extremidades. Lágrimas chegavam-lhes aos olhos. Parecia-lhes que o coração, as entranhas, se moviam
nas cavidades do corpo, como se estivessem animados de uma vida independente. «Ford!» Eles
fundiam-se. «Ford!» Estavam fundidos. Depois, noutro tom, subitamente, fazendo-os sobressaltar:
"Escutai! - trovejou a voz. - Escutai!" Eles escutaram. Após uma interrupção, decrescendo até não ser
mais que um murmúrio, mas um murmúrio inexplicavelmente mais penetrante que o mais sonoro grito:
" Os pés do Grande Ser - disse. E repetiu as mesmas palavras: - Os pés do Grande Ser. - O murmúrio
tornou-se quase imperceptível. - Os pés do Grande Ser estão na escada. " E de novo houve um silêncio.

Um comentário:

Emissário Cléber Efrayim disse...

Boa noite.
Você entendeu essa parte? Entendeu esse ritual esquisito com a "soma"?