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quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 17]

- Recuperação do fósforo - explicou Henry em estilo telegráfico. - Durante o seu trajeto até ao fim da
chaminé, os gases sofrem quatro tratamentos distintos. Antigamente o P2 Os saía completamente da
circulação cada vez que se efetuava uma cremação. Atualmente, recupera-se mais de noventa por
cento. Mais de um quilo e meio por corpo adulto. O que representa, só para a Inglaterra, qualquer coisa
como quatrocentas toneladas de fósforo por ano. - Henry falava cheio de um orgulho feliz, regozijando-se
de todo o coração por tal resultado, como se este fosse devido a ele. - É uma bela coisa pensar que
podemos continuar a ser socialmente úteis mesmo depois de mortos. Para fazer crescer as plantas.
Lenina, entretanto, desviara os olhos e observava verticalmente, lá em baixo, a estação do monocarril.
- É uma bela coisa - concordou. - Mas é estranho que os Alfas e os Betas não façam crescer mais
plantas que esses ignóbeis pequenos Gamas, esses Deltas e esses Epsilões que estão lá em baixo.
- Todos os homens são físico-quimicamente iguais - disse, Henry sentenciosamente. - Além disso, os
próprios Epsilões desempenham funções indispensáveis.
- Mesmo um Epsilão... - Lenina recordou-se subitamente do momento em que, garotinha de escola,
tinha acordado no meio da noite e compreendido pela primeira vez o que era o murmúrio que enchia
todas as suas horas de sono. Reviu o luar, a fila de pequenas camas brancas; ouviu de novo a voz doce,
muito doce, que dizia (as palavras lá estavam inesquecidas, inesquecíveis, ao fim de tantas repetições
durante a noite): «Cada um trabalha para todos os outros. Não podemos prescindir de ninguém. Mesmo
os Epsilões são úteis. Não poderíamos prescindir dos Epsilões. Cada um trabalha para todos os outros.
Não podemos prescindir de ninguém ... » Lenina lembrou-se do seu primeiro sobressalto de medo e de
surpresa; as especulações do seu espírito durante a meia hora que esteve acordada, e depois, sob a
influência das repetições sem fim, acalmando-se pouco a pouco, a aproximação sedativa, acariciadora,
deslizando a passos aveludados, do sono... - Suponho que, no fundo, os Epsilões não se importam de
ser Epsilões - disse em voz alta.

- É claro que não se importam. Como poderiam importar-se? Eles nem sequer imaginam o que é ser
outra coisa. Nós sofreríamos, naturalmente. Mas também fomos condicionados de outra maneira. Além
disso, começamos com uma hereditariedade diferente.
- Estou contente por não ser uma Epsilão - disse Lenina com convicção.
- Se fosse uma Epsilão - disse Henry -, o seu condicionamento tê-la-ia tornado não menos contente por
não ser uma Alfa ou uma Beta.
Embraiou a hélice propulsora e dirigiu o aparelho para Londres. Atrás deles, a oeste, o carmim e o
alaranjado tinham quase desaparecido; um sombrio aglomerado de nuvens aparecera no zénite. Voando
por cima do crematório, o helicóptero subiu verticalmente na coluna de ar quente que saía das
chaminés, para tornar a descer, também subitamente, logo que chegou à corrente de ar frio e
descendente que se lhe seguia.
- Que maravilhosa montanha russa! - Lenina riu, encantada.
Mas o tom da resposta de Henry foi, por momentos, melancólico.
- Sabe o que é esta montanha russa? - perguntou. - É a desaparição final e definitiva de algum ser
humano. A subida num jacto de gases quentes. Seria curioso saber quem era: um homem ou uma
mulher, um Alfa ou um Epsilão... - Suspirou. Depois, num tom resolutamente alegre, concluiu: - Em
todo o caso, há uma coisa de que podemos estar certos: quem quer que fosse, foi feliz enquanto viveu.
Actualmente, toda a gente é feliz.
- Sim, actualmente toda a gente é feliz - disse Lenina como Um eco.
Eles tinham ouvido essas palavras repetidas cento e cinquenta vezes todas as noites durante doze anos.
Descendo no terraço da casa de apartamentos, de quarenta andares, que Henry habitava, em
Westminster, desceram directamente para a sala de jantar. Aí, em companhia de pessoas barulhentas e
alegres, comeram uma excelente refeição. Com o café serviram soma. Lenina tomou dois comprimidos
de meioO grama e Henry três. Às nove e vinte, atravessaram a rua para irem ao cabaré recentemente
aberto na Abadia de Westminster. Estava uma noite quase sem nuvens, sem lua e estrelada. Mas Lenina
e Henry não tiveram, felizmente, consciência desse facto, bastante deprimente. Os anúncios luminosos
em pleno céu, apagavam vitoriosamente a obscuridade exterior. CALVINO STOPES E OS SEUS
DEZESSEIS SAXOFONISTAS. Na fachada da nova abadia, letras gigantescas dardejavam o seu
brilho convidativo...
O MELHOR ÓRGÃO DE PERFUMES E CORES DE LONDRES. A MAIS RECENTE MÚSICA
SINTÉTICA.
Entraram. O ar parecia quente e sufocante, de tal maneira estava carregado pelo perfume de âmbar
cinzento e de sândalo. No tecto da sala, em cúpula, o órgão de cores tinha momentaneamente pintado
um pôr-do-sol tropical. Os dezasseis saxofonistas tocavam um motivo popular: Não há no Mundo que
nos,, Rodeia Outra como Tu, Proveta Amada. Quatrocentos pares dançavam um five-step sobre o chão
encerado. Lenina e Henry depressa se tornaram o par quatrocentos e um. Os saxofones gemeram como
gatos melodiosos ao luar, lamuriaram nos registos alto e tenor como se estivessem desmaiando.
Aumentado por uma riqueza prodigiosa de harmônicas, o seu coro balbuciante subia para uma altura
mais sonora, sempre mais sonora. até que, por fim, com um gesto da mão, o chefe da orquestra
desencadeou a nota final no fragor retumbante de música de ondas, expulsando de toda a existência os
dezasseis assopradores simplesmente humanos. Tempestade em lá bemol maior. E então, quase num
silêncio, numa meia obscuridade, seguiu-se um abaixamento gradual, em diminuendo descendente,
deslizando gradualmente, em quartos de tom, até um acorde dominante fracamente murmurado, que
se arrastava ainda (enquanto os ritmos de cinco-quatro continuavam os seus compassos no
contrabaixo), carregando os obscurecidos segundos com uma intensa espera. E, enfim, a espera foi
satisfeita. Houve um súbito e explosivo nascer de Sol e, simultaneamente, os dezasseis entoaram a
canção: Proveta adorada, foi a ti que amei!
Proveta adorada, porque me decantei?
Dentro de ti o céu é puro, E o tempo é sempre suave.
Ah! Não há no mundo que nos rodeia Outra como tu, proveta adorada!
Evolucionando ao som do five-step em torno da Abadia de Westminster com os outros quatrocentos
pares, Lenina e Henry dançavam, entretanto, num outro mundo, - mundo cheio de calor, de cores vivas,
o mundo infinitamente benevolente do soma. Como toda a gente era bela, boa, deliciosamente
divertida! Proveta adorada, foi a ti que amei! ... Mas Lenina e Henry possuíam aquilo que amavam ...
Estavam no interior nesse momento e nesse lugar, em segurança no interior, com o tempo doce, o céu
puro e a luz velada. E quando, esgotados, os dezasseis descansaram os seus saxofones e o aparelho de
música sintética começou a tocar o que havia de mais recente em blues maltusianos lentos, eles tinham-se
tornado embriões gémeos, embalados docemente nas vagas de um oceano de pseudo-sangue em
proveta.
"Boa noite, queridos amigos. Boa noite, queridos amigos. "
Os alto-falantes velavam as suas ordens sob uma delicadeza bonacheirona e musical. "Boa noite,
queridos amigos ... "
Obedientes, como todos os outros, Lenina e Henry abandonaram o estabelecimento. As deprimentes
estrelas tinham percorrido um bom caminho nos céus. Mas, ainda que o fulgor dos anúncios luminosos
que as separava dos seus olhares se tivesse consideravelmente atenuado, os dois jovens continuavam
mergulhados na sua felicidade, insensíveis à noite.
Uma segunda dose de soma que tinham tomado meia hora antes do encerramento erguia uma
impenetrável parede entre o universo real e os seus espíritos. Foi numa proveta que eles atravessaram a
rua, numa proveta que tomaram o ascensor para subirem ao quarto de Henry, no vigésimo oitavo andar.

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