COMO ODISSÉIA DA RAZÃO
Com História da loucura na idade clássica Foucault
inaugura uma série de análises históricas que
integram o momento da arqueologia. Este livro,
apesar do título, não pretende traçar um quadro
geral da loucura em seu devenir histórico, ou sua
clausura histórica chamada «idade clássica».
Também, ao contrário do que muitos possam
pensar, não é um livro de história de uma ciência, a
psiquiatria, apesar de poder-se encontrar aí uma
análise sobre o nascimento desta ciência bem como
uma descrição minuciosa e erudita da constituição
do discurso médico sobre a loucura como doença
mental. Contudo não é este o objetivo central da
obra.
História da loucura está centrado no que
Foucault chama de «idade clássica». Por idade
clássica ele entende o período compreendido entre
o fim do Renascimento (final do século XVI e início
do século XVII) e a Revolução Burguesa (séculoXVIII), ou seja, o longo período de transição para a
ordem capitalista na França.
Foucault confronta esta época com o fim da
Idade Média para a qual imagina uma situação de
predomínio de uma certa liberdade em relação à
experiência da loucura; liberdade que vai sendo
solapada em decorrência da constituição de uma
certa percepção que toma o louco como sábio e
demente. O confronto da idade clássica com o
período anterior visa assinalar com exatidão a
concepção «clássica» da loucura (as práticas de
enclausuramento, as relações dessas práticas e as
concepções forjadas no período) com um certo
«discurso da verdade da loucura», que se
desenvolve no seio do saber médico. No entanto,
apesar de ser um estudo minucioso da «idade
clássica», o objetivo de Foucault é dar conta de
como a loucura é vista na modernidade (século
XIX), quando então constitui-se uma ciência, a
psiquiatria, que se afirma como o «discurso da
verdade da loucura», sendo, assim, uma herdeira
das práticas de internamento da idade clássica.
Observa-se que Foucault encaminha
cuidadosamente seu argumento no sentido de
estabelecer as condições de possibilidades
históricas que tornam possível os discursos da
medicina e da psiquiatria e as práticas da internação
e da medicalização referentes ao louco enquanto
doente mental. Ele desmonta a concepção de que a
loucura sempre foi uma doença — para a qual há
um discurso apropriado — de origem mental — para
o que se recorre à psiquiatria. Mas se seu trabalho20
constituísse somente nisso, ele seria sem dúvida um
prisioneiro da atitude presente entre aqueles que
«cantam a cançoneta anti-repressiva», denunciada
por ele próprio. A ele, no entanto, o que interessa é
indicar os mecanismos de “patologização” do louco,
os mecanismos de constituição de um saber
científico.
Por isso, afirma-se que História da loucura
tem outro alcance: o de indicar as condições de
possibilidades históricas de um saber científico — o
da psiquiatria — como discurso que se quer
normativo e, portanto, verdadeiro. É aqui que se
encontra o principal mérito da obra de Foucault: a
explicitação de um «olhar arqueológico» que
ultrapassa os limites estabelecidos por uma
abordagem epistemológica clássica, que privilegia a
descontinuidade teórica.
O saber sobre a loucura, que se encerra no
discurso psiquiátrico, é extraído a partir de seu sitz
in Leben, o lugar de existência, a saber: as
instituições de controle do louco — família, igreja,
justiça, hospital, etc —, os saberes a elas
relacionados e as estruturas econômicas e culturais
da época. Este lugar de existência é o que constitui
para Foucault a episteme de uma época.
Que se observe bem uma distinção
fundamental. Fala-se de um saber — o saber
científico ou que se quer como tal — o saber da
psiquiatria. Este é um tipo de saber que Foucault
chama de conhecimento: uma elaboração teórica
sobre um objeto, segundo uma lógica própria,21
peculiar. Este conhecimento se distingue da
percepção. Percepção designa um conjunto de
modos de agir, de «visualizar» a loucura.
Exemplificando, o louco e a experiência da loucura
sempre foram, de algum modo, percebidos,
portanto, seu reconhecimento como tal não depende
de uma definição científica, de um conhecimento. As
diversas formas de se perceberem o louco e a
loucura dependem das instituições sociais, do
reconhecimento que estas empreendem sobre os
indivíduos como sujeitos sociais. O saber médico
sobre o louco é posterior à percepção do louco
como tal, e representa um modo de operar esta
percepção.
Quando Foucault elabora a história da
percepção da loucura, ele indica os vínculos não
muito nobres do conhecimento psiquiátrico. A partir
de então, pode-se dizer, a história da psiquiatria é a
história de uma repressão, estando essa ciência
vinculada à polícia, à justiça, à igreja, ao Estado,
mas também à família, às artes, à literatura, etc.
Desse modo, pois, ao desvendar esta relação entre
percepção e conhecimento, ou ao constituir este
«olhar arqueológico», Foucault desvela o caráter
obscuro de um certo «discurso da verdade da
loucura». Esse discurso que se quer científico não é
produto de «mentes abnegadas» — os cientistas —
e nem tampouco o simples produto de um
continente epistemológico que tem na cura e na
reabilitação do louco sua «vocação». Nada disso.
Este saber científico tem como tarefa conduzir os
homens, por meios de contínuas repressões, ao22
domínio da razão, e encontra seu sentido último
noutro lugar: na episteme de uma época.
Deste modo este saber funda uma
«positividade». Ele cria um lugar de expressão do
ser do homem, no caso a razão. É no advento dessa
visão de mundo que Foucault situa o motivo do
deslocamento que tornou os anti-sociais (os
ociosos, os libertinos, os parias, os loucos) objetos
de práticas de segregação. Esta população
heterogênea será alcançada por uma percepção da
razão e da moral, que organizam tudo e a todos
controlam. Neste sentido, como se verá mais à
frente, a internação e a medicalização do louco não
é uma resposta a uma injunção de natureza
econômica mas sim uma articulada defesa contra a
denegação do trabalho enquanto uma categoria
moral, e uma tentativa bem sucedida de disciplinar
os homens no interior de uma ratio: a razão
ocidental.
Os ociosos e os libertinos foram readmitidos na
ordem social em gestação; mas o louco, este será
mantido aprisionado. Não que ele representasse
uma força de trabalho inútil, ou um consumidor
desprezível, como já se aventou. O louco foi
aprisionado, retirado do convívio social e
domesticado porque representou, aos olhos de uma
certa percepção, a encarnação de um mal: a
irracionalidade. Assim, a loucura deixa de ser uma
experiência possível para se tornar uma maldição.
Maldição que extrai do homem sua natureza — a de
ser, por definição, racional, portador de razão. Ora,
sabe-se que a razão define a diferença do louco23
como um modo desarazoado de ser Outro — «nãohumano
». Em conseqüência dessa negação da
loucura enquanto possibilidade, dessa redução da
loucura a desrazão, o louco não pode mais estar
presente. Ele deve ser internado e policiado, para
que não escape; deve ser escondido, para que não
seja visto. O louco é aquele que ameaça os
qualificativos da razão.
O escândalo de Foucault, o primeiro deles,
talvez resida no fato de que para ele a loucura pode
constituir-se um modo de ser do homem, uma das
formas pelas quais o homem pode experimentar a
vertigem de ser livre no mundo. Com efeito, em
«Verdade e Poder», publicado em Microfísica do
Poder, ele dirá, referindo-se ao caráter pérfido da
repressão, que quando escreveu História da
loucura:
supunha uma espécie de loucura viva,
volúvel e ansiosa que a mecânica do
poder tinha conseguido reprimir e
reduzir ao silêncio. (MP:7)
Em História da loucura pode-se de fato ler
uma apologia dessa experiência fundamental da
loucura:
Desde fins do século XVIII a vida do
desatino só se manifesta na fulguração
de obras como as de Hölderlin, Nerval,
Nietzsche ou Artaud — indefinidamente
irredutíveis a essas alienações que
curam, resistindo com sua força própria24
a esse gigantesco aprisionamento
moral que se está acostumado a
chamar de a libertação da doença por
Pinel e Tuke. (HL:503)
Para alguns esse modo de encarar a loucura
faz de Foucault um irracionalista. Esse é o caso, por
exemplo, de Luc Ferry e Alain Renaut (Ferry &
Renaut, 1988:95-149). Outros, como José
Guilherme Merquior, consideram que isso o torna
um niilista (Merquior, 1985). Me parece, no entanto,
que esse tipo de opinião decorre de uma leitura
posicional; uma leitura que não leva em
consideração o conjunto e os momentos de sua
obra, principalmente as obras referentes ao
momento da genealogia (esse é, claramente, o caso
de Ferry & Renaut) ou então é decorrente de uma
leitura situada em um lugar ideológico e político
diametralmente oposto ao de Foucault (que é o caso
de Merquior). Para uma crítica dessas posições
basta lembrar aqui os argumentos que Foucault
expressou em suas obras do momento da
genealogia. Nessas obras ele procura restabelecer
um lugar para a razão crítica, iluminista mesmo,
como o indica Sérgio Paulo Rouanet (Rouanet,
1987:200-29); uma razão que desmascara o
predomínio da razão cínica, degradada, cuja função
é servir ao poder; de uma razão que ultrapassa essa
razão funcionária do poder e que quer sempre
domesticar os saberes. Mas não é certo que
Foucault tenha chegado ao ponto de propor, em
torno disto, um programa. Ele não era disto. Mas,
sem dúvida alguma, ele foi um combatente da razão
cínica, a razão instrumental que, desde a idade25
clássica, enquadrou a loucura diante da razão como
uma experiência que:
está ao mesmo tempo do outro lado e
sob seu olhar. Do outro lado: a loucura
é diferença imediata, negatividade pura,
aquilo que se denuncia como não-ser,
numa evidência irrecusável; é uma
ausência total de razão, que logo se
percebe como tal, sobre o fundo das
estruturas do razoável. Sob o olhar da
razão, a loucura é individualidade
singular cujas características próprias, a
conduta, a linguagem, os gestos,
distinguem-se uma a uma daquilo que
se pode encontrar no não-louco; em
sua particularidade ela se desdobra
para uma razão que não é termo de
referência mas princípio de julgamento,
a loucura é então considerada em suas
estruturas do racional. (HL:184)
Por isso, no louco, o que se percebe não é
propriamente sua loucura, pois esta é deduzida e
afirmada, mas, sim, a ausência da razão.
Colocada a loucura diante da razão como
desrazão, e essa como monstruosidade (idade
clássica) ou doença mental (modernidade), tem-se,
então, que o louco e a loucura são, de certo modo,
produzidos. A loucura é produzida pela razão, que,
em sua normatividade, através de seus enunciados
discursivos, define como «loucura» tudo o que não
corresponde à imagem que a razão tem de si
mesma. Ora, esta é a questão que está na base do
discurso moderno, que toma o louco como um26
monstro-animal e o transforma em doente
mental/humano. A medicalização, por sua vez,
representa um momento mais sutil de privação da
experiência da loucura, na medida em que o
conceito de doença mental permitirá constituir a
noção de «sujeito juridicamente incapaz»,
«inofensivo» ou, então, «perigoso».
Tornando o louco um doente, a sociedade
moderna de fato evita o aprisionamento do louco,
mas o aliena de si mesmo, despoja-o de sua
humanidade, e, mais do que isso, de sua
humanidade social, isto é, de seus direitos. E isto se
realiza em função de um conceito básico que
antecede toda definição de doença: o conceito de
cidadão. Com a medicina, o louco é excluído da
comunidade da razão, da comunidade dos homens
como sujeito possuidor de direitos. Deste modo,
medicina e jurisprudência estão de mãos dadas,
forjando uma exclusão, de tal modo que, sem
exageros, pode-se dizer que, na sociedade
moderna, o «atestado do médico» é o “cacete” com
o qual se reprime o louco.
Contudo, não se deve concluir, a partir de tais
premissas, que não haja nenhuma diferença entre o
estado policial da Grande Internação e a posição do
médico e de sua medicina na idade moderna. Como
já disse anteriormente, o mesmo discurso normativo
que «cria» o louco «soluciona» a problemática da
loucura. Se a idade clássica enclausura e animaliza
o louco, a idade moderna o quer «libertar» e o
«humanizar» através da domesticação da loucura.
Essa domesticação, no caso, é um empreendimento27
«educativo», com vistas a levar o louco de novo ao
bom senso da verdade e da moral. E é esta, enfim,
a função «filantrópica», «libertadora» e
«humanizadora» de um Philippe Pinel e de um
William Tuke, os chamados pais da psiquiatria.
Com relação a isto, Foucault afirmará que a
medicalização quer:
substituir o terror livre da loucura pela
angústia fechada da responsabilidade.
(HL:179)
Para tanto, recorre à técnica do medo:
O medo (...) dotado de um poder de
desalienação, que lhe permite restaurar
uma conivência bem primitiva entre o
louco e o homem de razão. (HL:478)
Através dessa técnica, o louco estabelece uma
forma de coexistência subordinada com o «feitor»,
tornando-se, em si mesmo, um executor da vontade
desse guardião. Para quê? Para que se torne de
novo responsável, isto é, qualificado para a vivência
em sociedade de forma produtiva através do
trabalho? Nada disso. O medo é uma técnica de
desalienação mas cujo endereçamento não é
certamente a loucura do louco. Através dele a
psiquiatria revela uma face oculta: a de ser uma
ciência pedagógica cuja tarefa educativa é instruir
metaforicamente o transgressor. Metaforicamente,
sim, pois o que se visa não é tanto o louco, mas o
que ele representa. Não se trata, portanto, de
qualificar o louco para o trabalho, mas ensinar a28
necessidade do trabalho para todo e qualquer
homem. É por isso que se afirma que
no asilo, o trabalho será despojado de
todo valor de produção. (HL:480)
A readmissão do louco no mundo do trabalho
tem a ver com a regra moral da razão. Para tanto,
organiza-se uma rede, aparentemente paradoxal, de
ações e de palavras. De um lado, organizam-se
cerimônias onde o alienado é treinado a encenar os
ritos da vida social externa, comportando-se como
um «cavalheiro» sob o olhar vigilante do seu
guardião. De outro lado, despoja-se o louco de sua
maioridade, conformando-o a uma eterna vida
infantil, sob o olhar também vigilante do médico. Daí
dizer-se que a loucura é infância.
É assim, pois, que, partindo de uma análise
histórica e social, Foucault desmascara o
movimento que tornou possível um conhecimento da
loucura a tal ponto hegemônico que, no mundo
contemporâneo, não se possa pensar jamais a
loucura desacompanhada de sua ciência, sua
medicina, seus médicos, enfim, «seu discurso da
verdade». Dessa forma, Foucault irá concluir que:
somos obrigados a constatar que, ao
fazer a história do louco, o que fizemos
foi — não, sem dúvida, ao nível de uma
crônica das descobertas ou de uma
história das idéias, mas seguindo o
encadeamento das estruturas
fundamentais da experiência — a
história daquilo que tornou possível o29
próprio aparecimento de uma
psicologia. E por isto entendemos um
fato cultural próprio do mundo ocidental
desde o século XIX (...): o ser humano
não se caracteriza por um certo
relacionamento com a verdade, mas
detém a verdade, como algo que lhe
pertence de fato, simultaneamente
ofertada e ocultada, uma verdade.
(HL:522)
Que verdade será esta não nos é dado saber
por enquanto. Entretanto ela está certamente
vinculada com a experiência originária e
fundamental da loucura destituída de suas
fulgurações teóricas e práticas, de seu recobrimento
e ocultação pela razão instrumental. Ora, é a
percepção dessa loucura originária que permite o
lugar do discurso de Foucault; um lugar de onde ele
pode postular a «verdade» da psiquiatria, situá-la
dentro do movimento de implantação de uma ratio
que, se opondo a loucura como sua negação, não
logrou, contudo, destituí-la daquilo que ela possui de
mais escandaloso: ser uma experiência humana. A
loucura permanece aí, na experiência de indivíduos
como Hölderlin, Nietzsche, Goya, Artaud, entre
tantos, indicando que é possível ultrapassar a
episteme de cada época: do Renascimento e sua
visão da loucura como ilusão; da época clássica e
sua designação racionalista da loucura como erro e
maldição; e mesmo da modernidade, que, por
intermédio das ciências do homem, transforma a
experiência da loucura em doença mental e
alienação.30
Nesse sentido, a arqueologia pode nos dizer,
ao final, que o conceito da loucura como desrazão
está ainda aprisionado pelas categorias
classificatórias organizadas pela própria razão.
Ainda agora tal conceito afirma que:
a verdade da loucura é ser interior à
razão, ser uma de suas figuras, uma
força e como que uma necessidade
momentânea a fim de melhor certificarse
de si mesma. (HL:36)
Entretanto, para Foucault a loucura continua
sendo experiência humana inexprimível, originária,
que escapa a toda tentativa de classificação. Isso é
o que se pode depreender de uma afirmação como
a seguinte:
a loucura não mais indica um certo
relacionamento do homem com a
verdade — relacionamento que, ao
menos silenciosamente, implica sempre
a liberdade; ela indica apenas um
relacionamento do homem com sua
verdade. (HL:509)
Mas qual é a verdade do homem? Será a
loucura, enquanto uma experiência antropológica
originária, a manifestação da verdade do homem e
de sua liberdade? Creio que Foucault responderia
sim a estas indagações. [fim do primeiro capítulo]
A DEPOSIÇÃO DO HOMEM
Compreender, discutir e avaliar o pensamento de
Foucault implica apontar os aspectos relativos à sua
herança, isto é, àquele depósito de influências
intelectuais e práticas que conformam o próprio
lugar de possibilidade histórica do saber de
Foucault.
Esta tarefa é, no mínimo, difícil de ser
realizada, pois pressupõe a singularidade do homem
que se esconde por trás dessa figura de autor. O
próprio Foucault postula a impossibilidade de
empreendimentos dessa natureza, ou pelo menos a
sua inutilidade. Para ele, as idéias veiculadas por
um indivíduo só podem ser captadas quando
referidas ao conjunto de pensamentos possíveis a
uma época, fato que designa pelo nome de
episteme. É a episteme que torna exeqüível essa
individualidade a que se dá o nome de autor.
Por isso mesmo estaria de antemão
condenada ao fracasso toda tentativa de explicar o
«fenômeno» Foucault a partir de uma tradição32
como, por exemplo, àquela presente na «História
das Idéias».
Mas pode-se, talvez, experimentar o
próprio método arqueológico e perguntar quais são
as condições de possibilidades que faculta a
Foucault o seu discurso. Fica aí esta sugestão,
como um programa de estudos. Não vou me
aprofundar nesta via. Mas pode-se de antemão
imaginar por quais linhas de pensamento dever-seia
seguir. Talvez, por exemplo, a partir de duas
bases sólidas e perfeitamente definidas em seu
percurso: Nietzsche e Heidegger.
Heidegger foi sempre para mim o
filósofo essencial, toda minha formação
filosófica foi determinada por
Heidegger. Mas reconheço que foi
Nietzsche o mais importante. (Foucault,
1984, apud Ferry & Renaut, 1988:95)
Quer isso dizer que um estudo sólido de
Foucault exigiria primeiramente que se conhecesse
as obras de Heidegger e de Nietszche? O próprio
senso comum informa-nos ser isso desnecessário,
visto que esse mecanismo de influências gera uma
procura infinita das origens. Mas não se deve, por
isso, olvidar aquilo que é próprio do intelectual, que,
por um «acidente exterior», é conhecido pelo nome
de Foucault. A ele se deve indagar acerca de sua
singularidade. Me parece que Foucault reconheceria
sua singularidade na seguinte frase:
De que valeria a obstinação do saber se
ele assegurasse apenas a aquisição
dos conhecimentos e não, de certa
maneira, e tanto quanto possível, o33
descaminho daquele que conhece?
(UP:13)
Pensar diferentemente, para continuar a olhar
e a refletir, desencaminhar-se — este é o projeto
foucaultiano. Projeto levado até o fim, e de modo
radical, como se constatará aqui, a partir das
reflexões sobre essa obra tão necessária e tão
desconcertante, até no título: As palavras e as
coisas — uma arqueologia das ciências
humanas. Neste livro, Foucault vai longe. Chega
mesmo ao ponto de afirmar a morte do homem, do
homem que intentou pensar a si mesmo fora de si, e
que, doravante, deve reconhecer a impossibilidade
de pensar-se a si mesmo e então «matar-se» no
pensamento. No presente capítulo, pretendo
apresentar o modo como se constituiu esse
«pensamento do descaminho».
É comum pensar que Foucault, em As
palavras e as coisas, está primordialmente
interessado em dar uma resposta ao problema
clássico da filosofia, pelo menos depois de
Immanuel Kant, postulado nos seguintes termos:
«que é o Homem?» Ora, este problema, quando se
apresenta no texto, é ele objeto da reflexão
arqueológica, o que leva Foucault a concluir que a
questão tem como razão de ser a indagação sobre a
finitude humana e as possibilidades de o homem
encontrar, nessa existência finita, os alicerces de
todo saber.
A pergunta kantiana sobre a finitude tem a
ver com uma problemática muito recente;
problemática esta constituida a partir de certo34
habitus e que vem à tona em função de uma
necessidade de aclaramento acerca do lugar do
homem na ordem das coisas. Este habitus está
vinculado, para lembrar Max Weber, ao
«desencantamento do mundo», processo este
surgido recentemente, estando ainda incompleto, na
medida em que, tendo o homem eliminado Deus,
manteve na história um componente idolátrico, um
outro deus, isto é, ele mesmo, o homem. Homem
que intenta atribuir a si mesmo um valor
transcendental, na medida em que, por meio de um
artifício, ao empreender a constituição de um sujeito
dentro da história como fundamento para o saber, a
moral, a cultura, etc, faz com que, em torno dele
mesmo, se instituam novas «teologias» chamadas
ciências humanas, apologias do Si-Mesmo, tidas
como positivas, por serem consideradas científicas.
Neste sentido, lembrando Nietzsche, as ciências
humanas assumem para si a tarefa irrealizada de
explicar esse processo em que, tendo sido
concluído que «se há um Deus, como suportarei não
ser Deus?», o homem se indaga acerca de seu
lugar na ordem das coisas finitas. Esse homem vêse
como ser finito que se pretende dotado de um
sentido transcendente, mas cuja realização se
encontra ali, na não liberdade das suas escolhas
societais.
Foucault refere-se a esse empreendimento nos
seguintes termos:
Na medida, porém, em que as coisas
giram sobre si mesmas, reclamando
para seu devir não mais que o princípio
de sua inteligibilidade e abandonando o35
espaço da representação, o homem,
por seu turno, entra, e pela primeira
vez, no campo do saber ocidental.
Estranhamente, o homem — cujo
conhecimento passa a olhos ingênuos,
como a mais velha busca desde
Sócrates — não é, sem dúvida, nada
mais que uma certa brecha na ordem
das coisas, uma configuração, em todo
caso, desenhada pela disposição nova
que ele assumiu recentemente no
saber. Daí nascerem todas as quimeras
dos novos humanismos, todas as
facilidades de uma «antropologia»
entendida como reflexão geral, meio
positiva, meio filosófica, sobre o
homem. Contudo, é um reconforto e um
profundo apaziguamento pensar que o
homem não passa de uma invenção
recente, uma figura que não tem dois
séculos (...) e que desaparecerá desde
que houver encontrado uma forma
nova. (PC:12)
Foucault demonstra que essa pergunta sobre o
homem tem uma data, e indica que é muito recente.
Mas para chegar a essa conclusão, ele tem em
mente alguns passos preliminares, que poderiam
perfeitamente ter sido sugeridos por questões da
seguinte ordem: como nasceram e se
transformaram os saberes? Por que alguns saberes
foram excluídos? Por que certas formações
discursivas assumiram o caráter de ciência em
determinados momentos históricos? E em relação
ao homem, o que forjou essa necessidade de uma
ciência que tem como objeto o próprio homem? Por36
que o homem produziu uma ciência de si mesmo?
Estas perguntas instruíram a elaboração do
argumento básico de As palavras e as coisas,
onde se indicam as razões pelas quais certas
respostas são fornecidas para, logo a seguir,
desaparecerem.
Estas respostas são elementos constitutivos de
uma episteme, o campo no qual, em um
determinado momento, instituiram-se os a priori
históricos, as condições de possibilidade de
determinados discursos ou saberes e os princípios
de ordenação desses saberes. Ele submete a essa
análise exclusivamente os acontecimentos
discursivos, daí falar-se que nesta obra Foucault se
atém ao nível intradiscursivo. Mas um
acontecimento intradiscursivo depende da episteme;
quando esta se «esvai», certamente também
modifica-se a natureza do discurso. Mas o que se
pode falar acerca desse caráter transitório da
episteme?
Foucault afirma que a episteme não é sempre
a mesma em todas as épocas, e, nem tampouco, o
produto de suas transformações progressivas; uma
episteme constitui uma estrutura, um sistema
localizado em um tempo, que se realiza nele, que se
constitui nele. Como, então, captar analiticamente
essa estrutura?
Não é fácil estabelecer o estatuto das
descontinuidades para a história em
geral. Menos ainda, sem dúvida, para a
história do pensamento. Pretende-se
traçar uma divisória? Todo limite não é37
mais talvez que um corte arbitrário num
conjunto indefinidamente móvel.
Pretende-se demarcar um período?
Tem-se, porém, o direito de
estabelecer, em dois pontos do tempo,
rupturas simétricas, para fazer aparecer
entre elas um sistema contínuo e
unitário? A partir de que, então, ele se
constituiria e a partir de que, em
seguida, se desvaneceria e se
deslocaria? A que regime poderiam
obedecer ao mesmo tempo sua
existência e seu desaparecimento? Se
ele tem em si seu princípio de
coerência, donde viriam o elemento
estranho capaz de recusá-lo? Como
pode um pensamento esquivar-se
diante de outra coisa que ele próprio?
Que quer dizer, de um modo geral, não
mais poder pensar um pensamento? E
inaugurar um pensamento novo? O
descontínuo — o fato de que em alguns
anos, por vezes, uma cultura deixa de
pensar como fizera até então e se põe a
pensar outra coisa e de outro modo —
dá acesso, sem dúvida, a uma erosão
que vem de fora, a esse espaço que,
para o pensamento, está do outro lado,
mas onde, contudo, ele não cessou de
pensar desde a origem. Em última
análise, o problema que se formula é o
das relações do pensamento com a
cultura: como sucede que um
pensamento tenha um lugar no espaço
do mundo, que aí encontre como que
uma origem, e que não cesse, aqui e
ali, de começar sempre de novo?
(PC:65)38
Em As palavras e as coisas, depois de
estabelecer cuidadosamente essas premissas
gerais em torno das propriedades dos a priori
históricos que condicionam todas as manifestações
do saber de uma época, Foucault se empenha em
demonstrar a episteme dos principais períodos já
assinalados: o fim do Renascimento, a «idade
clássica» e o limiar da modernidade, agora pensada
como um período situado na virada do século XVIII
e XIX. Em outras palavras, ele procura demonstrar
como cada época «se representa» ao nível de sua
estrutura.
Como se nota, Foucault trata de estabelecer as
maneiras pelas quais cada época experimenta a
proximidade das coisas e como organiza esse
complexo heteróclito de elementos fora do homem;
como cada época estabelece o quadro de seus
parentescos e a ordem segundo a qual é preciso
percorrê-los, Foucault procura detectar como se dão
os processos de estabelecimento de equivalências,
das relações de similitude, de diferenças, de ordem,
de classificação e de nomeação, e de designação
de palavras. Para isso, ele explora as linhas gerais
do desenvolvimento de certas formas de saber que
se fazem representar como ciências. Mas ele dirige
seu olhar sobretudo para as obras daqueles autores
menos conhecidos, daquelas pessoas que
escreveram sobre literatura, gramática, economia e
ciências naturais, pessoas que, a seu ver, indicam
os níveis mais internos, «estruturais», da episteme
de uma época.39
Os indícios mais latentes das diferenças entre
uma época e outra Foucault encontra na relação
entre as palavras e as coisas, isto é, naquilo que se
manifesta no âmbito da empiria e das suas
enunciações ao nível da linguagem. Com isso,
Foucault procura explicar as razões subjacentes ao
processo de agrupamento de certos enunciados em
unidades, processo que transforma tais enunciados
em uma «formação discursiva»; ele quer saber a
propósito daquelas grandes famílias de enunciados
que se impõem aos nossos hábitos e que são
designadas como Biologia, Economia e Gramática,
entre tantas, e em que se baseia sua pretensa
unidade.
Ele quer descobrir, também, de modo
particular, qual é o princípio de ordenação e
unificação da esfera que abarca aquelas zonas
discursivas obscuras, tais como a alquimia, a magia,
etc, todas essas «filosofias» que entulham as
literaturas, as artes, as ciências, etc; filosofias
obscuras que foram «convidadas» a se retirarem, na
época moderna, para os lugares da não-ciência, do
não-saber. Em outras palavras, Foucault procura
evidenciar as condições de emergência dos
enunciados, a lei de sua coexistência com outros
enunciados, a forma específica do seu modo de ser,
os princípios com base nos quais eles subsistem,
transformam-se e desaparecem.
Este projeto possui claramente um tom
estruturalista que tem sua razão de ser no fato de
que Foucault aí se encontra diante de um fenômeno
que possui suas leis próprias de determinação e40
reprodução — o nível intradiscursivo. Por isso
mesmo ele é cuidadoso em afirmar que sua
investigação arqueológica:
mostrou duas grandes
descontinuidades na episteme da
cultura ocidental: aquela que inaugura a
idade clássica (por volta dos meados do
século XVII) e aquela que, no início do
século XIX, marca o limiar de nossa
modernidade. (PC:12)
Concluindo, então, que:
a ordem sobre cujo fundamento
pensamos não tem o mesmo modo de
ser que a dos clássicos (...) No nível
arqueológico, vê-se que o sistema das
positividades mudou de maneira maciça
na curva dos séculos XVIII e XIX. Não
que a razão tenha feito progressos: mas
o modo de ser das coisas e da ordem
que, distribuindo-as, oferece-as ao
saber, é que foi profundamente
alterado. (...) Os conhecimentos
chegam talvez a se engendrar, as
idéias a se transformar e a agir umas
sobre as outras (mas como? até o
presente os historiadores não no-lo
disseram); uma coisa, em todo o caso,
é certa: a arqueologia, dirigindo-se ao
espaço geral do saber, a suas
configurações e ao modo de ser das
coisas que aí aparecem, define
sistemas de simultaneidade, assim
como a série de mutações necessárias
e suficientes para circunscrever o limiar41
de uma positividade nova. Assim, a
análise pode mostrar a coerência que
existiu durante toda a idade clássica,
entre a teoria da representação e as da
linguagem, das ordens naturais, da
riqueza e do valor. É esta configuração
que, a partir do século XIX, muda
inteiramente; a teoria da representação
desaparece como fundamento geral de
todas as ordens possíveis; a linguagem,
por sua vez, como quadro espontâneo e
quadriculado primeiro das coisas, como
suplemento indispensável entre a
representação e os seres, desvanecese;
uma historicidade profunda penetra
no coração das coisas, isola-as e as
define na sua coerência própria, impõelhes
formas de ordem que são
implicadas pela continuidade do tempo;
a análise das trocas e da moeda cede
lugar ao estudo da produção, a do
organismo toma dianteira sobre a
pesquisa dos caracteres taxionômicos;
e, sobretudo, a linguagem perde seu
lugar privilegiado e torna-se, por sua
vez, uma figura da história coerente
com a espessura de seu passado.
(PC:12-3)
Disso se pode concluir que, em As palavras e
as coisas, Foucault demonstra que cada período da
cultura tem seu a priori histórico, sobre o qual se
ergue todo um conjunto de ciências, artes,
literaturas, formas de representação que
condicionam o pensamento e a atividade dos
homens. Ele usa o termo episteme para designar o
campo particular, o espaço da ordem no qual, em42
dada época, forma-se tal a priori histórico. Em cada
época histórica a episteme é única, e implica a
sujeição da totalidade do pensamento possível
àquele período de vigência. Uma episteme é
essencialmente uma estrutura, sendo, além disso,
um sistema fechado em si mesmo, pelo que não é
possível a passagem, em forma de transição, de
uma episteme a outra. Segue-se, então, um
revezamento de estruturas ao longo do devir
histórico.
Desse modo, os períodos históricos são
percebidos pela arqueologia foucaultiana como
processos de rupturas que finalizam uma episteme e
dá lugar a outra, no âmbito de determinações muitas
vezes clandestinas, visto que raramente se tornam
explícitas ao nível das consciências dos sujeitos
históricos. Assim, por exemplo, a diferença entre a
episteme do século XVI e a do período seguinte, a
Idade Clássica, está virtualmente contida na
passagem de uma linguagem entendida como sinal
natural das coisas para uma linguagem entendida
como representação e discurso; esta passagem, no
entanto, não pode ser captada desse modo pelos
sujeitos históricos de cada época: esses, os
indivíduos de cada época, expressam e reproduzem
essa linguagem, mas não «pensam» essa
linguagem, tomam-na como elemento «natural».
Desse modo Foucault então escreverá que:
toda episteme da cultura ocidental se
acha modificada em suas disposições
fundamentais. E em particular o
domínio empírico onde o homem do43
século XVI via ainda estabelecerem-se
os parentescos, as semelhanças e as
afinidades e onde se entrecruzavam
sem fim a linguagem e as coisas —
todo esse campo imenso vai assumir
uma configuração nova. Podemos, se
quisermos, designá-lo pelo nome de
«racionalismo»; podemos, se não
tivermos na cabeça senão conceitos
prontos, dizer que o século XVII marca
o desaparecimento das velhas crenças
supersticiosas ou mágicas e a entrada,
enfim, da natureza na ordem científica.
Mas o que cumpre apreender e tentar
restituir são as modificações que
alteraram o próprio saber, neste nível
arcaico, que tornam possíveis os
conhecimentos e o modo de ser daquilo
que se presta ao saber. Essas
modificações [foram constituídas pela]
substituição da hierarquia analógica
pela análise; no século XVI, admitia-se
de início o sistema global de
correspondências (a terra e o céu, os
planetas e o resto, o microcosmo e o
macrocosmo), e cada similitude singular
vinha alojar-se no interior dessa relação
de conjunto; doravante, toda
semelhança será submetida à prova da
comparação, isto é, só será admitida
quando for encontrada, pela medida, a
unidade comum, ou mais radicalmente,
pela ordem, a identidade e a série das
diferenças. Ademais, o jogo das
similitudes era outrora infinito; era
sempre possível descobrir novas
similitudes e a única limitação vinha da
ordenação das coisas, da finitude de44
um mundo comprimido entre o
macrocosmo e o microcosmo. (PC:69-
70)
Mas o século XVIII apresenta um novo modo
de apreender as coisas por meio das palavras:
Essa nova disposição implica o
aparecimento de um novo problema até
então desconhecido: com efeito,
perguntava-se como reconhecer que
um signo designasse realmente aquilo
que ele significava; a partir do século
XVII, perguntar-se-á como um signo
pode estar ligado àquilo que ele
significa. Questão à qual a idade
clássica responderá pela análise da
representação; e à qual o pensamento
moderno responderá pela análise do
sentido e da significação. Mas, por isso
mesmo, a linguagem não será nada
mais que um caso particular da
representação ou da significação. A
profunda interdependência da
linguagem e do mundo se acha
desfeita. O primado da escrita está
suspenso. Desaparece, então, essa
camada uniforme onde se
entrecruzavam indefinidamente o visto
e o lido, o visível e o enunciável. As
coisas e as palavras vão separar-se. O
olho será destinado a ver e somente
ver; o ouvido somente a ouvir. O
discurso terá realmente por tarefa dizer
o que é, mas não será nada mais do
que o que ele diz. Imensa
reorganização da cultura de que a45
idade clássica foi a primeira etapa, a
mais importante talvez, posto ser ela a
responsável pela nova disposição na
qual estamos ainda presos — posto ser
ela que nos separa de uma cultura onde
a significação dos signos não existia,
por ser absorvida na soberania do
Semelhante; mas onde seu ser
enigmático, monótono, obstinado,
primitivo, cintilava numa dispersão
infinita. Nada mais há em nosso saber,
e nem em nossa reflexão, que nos traga
hoje a lembrança desse ser. Nada mais,
salvo talvez a literatura — e ainda de
um modo mais alusivo e diagonal que
direto. Pode-se dizer, num certo
sentido, que a «literatura», tal como se
constituiu e assim se designou no limiar
da idade moderna, manifesta o
reaparecimento, onde era inesperado,
do ser vivo da linguagem. Nos séculos
XVII e XVIII, a existência própria da
linguagem, sua velha solidez de coisa
inscrita no mundo, foi dissolvida no
funcionamento da representação.
(PC:59)
Naturalmente deve-se dar atenção ao modo
pelo qual Foucault constrói seus enunciados, isto é,
seu «estilo»; este pode-se constituir a fascinação ou
a decepção do leitor de Foucault. Seu texto aqui
estudado traz, no prefácio, a citação de Borges; no
capítulo I, o estudo do quadro de Velásquez, «Las
Meninas»; e no capítulo II, a referência é ao Dom
Quixote de Cervantes. Como bem indicou Renato
Janine Ribeiro (Ribeiro, 1985), são três referências
ao mundo hispânico, que, no imaginário francês,46
representa o Outro, isto é, o exótico, a «experiência
fundamental» do ser que, por mais paradoxal que
possa parecer, ultrapassa o nível estabelecido pelo
paradigma cartesiano, alcançando talvez aí uma
relação afetivo-intelectual com Rousseau.
Mas aí há também uma espécie de alegoria
que se deve reter. Velásquez realiza o
empreendimento de representar a representação.
Nele, superou-se o elemento da descrição.
Velásquez é um típico representante da idade
clássica. Sua arte constitui já a primeira separação
entre o objeto e sua percepção. Já Dom Quixote,
de Cervantes, retém o elemento de crise implícito no
processo de substituição da episteme do mundo
quinhentista, quando então o mundo do pensamento
deixou-se mover no elemento da semelhança.
Dom Quixote desenha o negativo do
mundo do Renascimento; a escrita
cessou de ser a prosa do mundo; as
semelhanças e os signos romperam
sua antiga aliança; as similitudes
decepcionam, conduzem à visão e ao
delírio; as coisas permanecem
obstinadamente na sua identidade
irônica: não são mais do que o que são;
as palavras erram ao acaso, sem
conteúdo, sem semelhança para
preenchê-las; não marcam mais as
coisas; dormem entre as folhas dos
livros, no meio da poeira. (PC:62)
E Borges, qual é o seu significado? Borges é
convocado ao texto para assumir o lugar das
diferentes possibilidades de pensar — de pensar até47
mesmo a impossibilidade de pensar o pensamento.
Paradoxos que Borges elabora de modo
excepcional, sobretudo em Busca de Averóis
(Borges, 1983). Isto leva Foucault a assinalar logo
no Prefácio de As palavras e as coisas o seguinte:
Este livro nasceu de um texto de
Borges. Do riso que, com sua leitura,
perturba todas as familiaridades do
pensamento — do nosso: daquele que
tem nossa idade e nossa geografia —
abalando todas as superfícies
ordenadas e todos os planos que
tornam sensata para nós a profusão
dos seres, fazendo vacilar e
inquietando, por muito tempo, nossa
prática milenar do Mesmo e do Outro.
Esse texto cita «uma certa enciclopédia
chinesa» onde está escrito que «os
animais se dividem em: a) pertencentes
ao imperador, b) embalsamados, c)
domesticados, d) leitões, e) sereias, f)
fabulosos, g) cães em liberdade, h)
incluídos na presente classificação, i)
que se agitam como loucos, j)
inumeráveis, k) desenhados com um
pincel muito fino de pelo de camelo, l) et
cetera, m) que acabam de quebrar a
bilha, n) que de longe parecem
moscas». No deslumbramento dessa
taxionomia, o que de súbito atingimos, o
que, (...) nos é indicado como o
encanto exótico de um outro
pensamento, é o limite do nosso: a
impossibilidade patente de pensar isso.
(PC:5)48
Assim, por analogia, é impossível pensar isso,
ou seja, o homem em sua irredutibilidade cognitiva.
Que é o homem?, ou, quem sou eu — eu, que
penso que sou? Para estas perguntas há respostas
inesgotáveis ou nenhuma resposta. Para Foucault
só restou como alternativa realizar esse
descentramento antropológico, ou melhor, essa
«desantropologização», que tem como tarefa
reconduzir o homem à sua quimera. À pergunta
kantiana, «o que é o Homem?», Foucault dará a
resposta arqueológica: o homem é um
acontecimento histórico, finito portanto, mas que se
considera «transhistórico» — porque transcendente
— e eterno, seja no pensamento ou nas utopias.
O reconhecimento da finitude, imposto pela
própria pergunta kantiana, que funda a emergência
da consciência do homem como sujeito da história,
também é um elemento da ordem do acontecimento
e se reporta ao momento em que se fundam os
saberes sobre a vida, o trabalho e a linguagem. Não
vou fazer aqui a exegese dessa reflexão densa de
Foucault, que ocupa em As palavras e as coisas
todo um conjunto de capítulos (VII a X). Para o
entendimento dessa problemática remeto os
interessados para a densa e pedagógica análise
empreendida por Hilton Japiassu (Japiassu, 1977).
Depois de reconhecer a si mesmo nos seus
produtos, o homem se descobre possuído de uma
«natureza específica», que limita tudo aquilo que ele
faz ou fala: «Quem sou eu, que...? Eu sou o que
penso que sou; minha existência está aí, contida no
meu pensamento, em minhas possibilidades de49
articular meu próprio pensamento, que, por sua vez,
limita minha capacidade de compreender a finitude».
Ou, nas palavras de Foucault:
Toda episteme moderna — aquela que
se formou por volta do fim do século
XVIII e serve ainda de solo positivo ao
nosso saber, aquela que se constitui o
modo de ser singular do homem e a
possibilidade de conhecê-lo
empiricamente — toda essa episteme
está ligada ao desaparecimento do
discurso e de seu reino monótono, ao
deslizar da linguagem para o lado da
objetividade e ao seu reaparecimento
múltiplo. (PC:402-3)
Daí Foucault dizer que o homem compôs sua
própria figura nos interstícios de uma linguagem em
fragmentos; que o homem não é o mais velho
problema do próprio homem, nem o mais constante.
O homem é uma invenção cuja recente
data a arqueologia de nosso
pensamento mostra facilmente. E talvez
o fim próximo. (PC:404)
Finalizo este capítulo lembrando a grande
performance alegórica que em As palavras e as
coisas representa «Las Meninas» de Velásquez.
Nesse quadro estão simultaneamente
representados o Outro e o Mesmo, isto é, as coisas
e as palavras, ou a imagem do homem e o próprio
homem.
Velásquez conseguiu inserir, no seu quadro, as
figuras diante de si, a si próprio e também o50
observador do quadro, que, ao se postar diante
dele, «entra» na composição do cenário. Este é o
«jogo dos espelhos», que, ao nível do discurso
foucaultiano, significa a possibilidade de
transgressão do discurso: o discurso que nomeia os
objetos, as palavras, e o homem do discurso; que
projeta para frente a possibilidade de que tudo se
torne elemento de representação, signos. Neste
sentido, o homem de fato não existe, ele «aparece».
[fim do capítulo 2]
---------------------------------
Capítulo 3
O ELOGIO DO DISCURSO
A arqueologia do saber é uma obra singular noitinerário foucaultiano. Representa seu «discurso do
método», a tentativa de estabelecer alguns
argumentos justificadores, ou, em outras palavras,
representa um balanço da produção até então
realizada pelo autor.
Entretanto, apesar de Foucault ter afirmado em
As palavras e as coisas que escreveria um livro
sobre os procedimentos metodológicos de sua
arqueologia, tal como ela foi desenvolvida nas obras
antecedentes, não se tem em A arqueologia do
saber a realização dessa promessa. A arqueologia
do saber é antes uma obra que gira em torno de
algumas questões suscitadas pelos argumentos
contidos, e contestados por críticos, em dois outros
textos seus: «Resposta a uma Questão» e
«Resposta ao Círculo Epistemológico». Esses dois
textos são respostas a questões levantadas por
alguns de seus colegas, alunos e leitores da revista
Esprit, onde o autor publicara os textos
supracitados. As críticas, de um modo geral,
orbitavam em torno da vinculação do autor e de sua
arqueologia ao estruturalismo.
52
Sem dúvida alguma, A arqueologia do saber
representa o recomeço de uma relfexão até então
empreendida «às cegas», como afirmará Dominique
Lecourt (Lecourt, 1980). Pressente-se, ou mesmo
detecta-se, nas obras anteriores, um certo ecletismo
metodológico, uma variação extraordinária na
definição e uso dos conceitos. Daí falar-se muitas
vezes que Foucault não possue ou não desenvolveu
um sistema metodológico propriamente dito, que
seu método é construído em função do objeto, e
vice-versa. Em A arqueologia do saber, Foucault
procura justificar e corrigir esse pretenso ecletismo.
Pretenso porque de fato o que há mesmo é uma
extraordinária capacidade de construir a
compreensão do «objeto» a partir de sua percepção,
isto, é, a partir da constituição mesma do objeto.
Foucault realizou também uma nova percepção
desse «objeto», diría mesmo que o constituiu. A
mesma coisa pode-se afirmar da análise que
empreende em O nascimento da clínica sobre o
«olhar» médico que constitui a doença, limita-a,
define-a, estabelece seu espaço de ação e,
conseqüentemente, sua terapêutica. A análise
foucaultiana do olhar clínico é, então, uma análise
que «descreve» a «geografia» da doença e de seu
saber. Ora, do mesmo modo, a obra As palavras e
as coisas indica a «geografia» da representação,
da relação entre coisas e palavras.
A arqueologia do saber, esta obra
desconcertante à primeira vista por causa do seu
estilo sistemático, representa o «discurso do
método» foucaultiano. Nela está contida, de modo53
bastante claro, a tentativa de tornar explícita as
regras de análise aceitas e empreendidas até então.
Penso, no entanto, que não é esse o único
propósito de Foucault. É provável que seu objetivo
fosse o de afirmar o primado do discurso. Afinal,
esse é o seu novo conceito-chave, que estabelece a
ponte entre as obras arqueológicas e aquelas que
escreverá a partir dos anos 70, e que constituem a
fase da genealogia.
De fato, o discurso é a categoria fundamental
de A arqueologia do saber. Mas o que é o
discurso? Em As palavras e as coisas discurso
significava a linguagem clássica reduzida à
categoria de representação. Mas em A arqueologia
do saber adquire outro significado. É oportuno
lembrar aqui a questão colocada na introdução
deste livro: o discurso é um empreendimento de
quem, feito para quem, e por quem? De quem? De
um sujeito — um autor? Em As palavras e as
coisas Foucault não destruíra a categoria de
sujeito? O que resta então? Será o discurso um
objeto? Também não. O discurso não é um saber
que se refere a alguma coisa enquanto objeto, pois
este se constitui no próprio momento de sua
enunciação. Será o discurso um empreendimento
das instituições? Sim, desde que se tome as
instituições como elementos de uma estrutura. Mas
quem leu A arqueologia do saber poderá contrapor
o argumento de que Foucault reintroduz, nesta obra
e, portanto, em seu pensamento, a categoria de
sujeito, quando afirma que o discurso é uma prática,
o que invalidaria os argumentos apresentados até
aqui. Se o discurso é uma prática, política, portanto,54
ele é, então, a prática de um sujeito. Constitui-se,
desse modo, como que um paradoxo que é
necessário elucidar.
Diz-nos Dominique Lecourt, em um dos seus
capítulos dedicados à análise do pensamento
epistemológico, que a grande novidade de A
arqueologia do saber reside numa ausência: a da
noção de episteme, pedra angular dos trabalhos
anteriores e a base sobre a qual Foucault realizou
suas interpretações claramente estruturalistas
(Lecourt, 1980:81ss). O que teria levado Foucault a
abandonar esse conceito, ou pelo menos a modificálo?
Para compreender a questão, é necessário
lembrar que o uso estruturalista da categoria de
episteme tinha como objetivo estabelecer uma
posição singular frente às perspectivas humanistas,
que traziam consigo, como um elemento central de
seus argumentos, a categoria de sujeito. Como foi
indicado no capítulo anterior, essa categoria
descrevia as configurações do saber como grandes
camadas que obedeciam a leis estruturais, não
sendo possivel, portanto, pensar a história das
formas de percepção (os marxistas poderiam dizer
isto de outro modo: poderiam falar de «formações
ideológicas») a não ser como rupturas, de certo
modo enigmáticas, que ocorreriam a partir de
mudanças bruscas de uma episteme para outra.
Mas, em A arqueologia do saber, Foucault
ultrapassa este nível de abordagem; de certo modo
ele rompe com esta noção de mudanças
«estanques» ou abruptas. Rompe, portanto, com o55
que poderia se chamar de herança estruturalista,
sem, contudo, cair numa perspectiva humanista. E
isto fica bem evidenciado com a introdução do
conceito de história, logo no início do livro, e de uma
noção de história que rejeita não somente a idéia de
continuidade do sujeito mas também de
descontinuidade estrutural.
Para que se entenda melhor essa
problemática, é necessário aqui reportar a uma
discussão fundamental da teoria social
contemporânea. Certa feita, Marx e Engels
escreveram duas frases que engendraram
tremendas discussões filosóficas e tremendos
dilemas políticos. Uma primeira frase apareceu no O
Dezoito Brumário de Luiz Bonaparte e dizia o
seguinte:
Os homens fazem sua história, mas não
a fazem como querem; não a fazem sob
as circunstâncias de sua escolha e sim
sob aquelas com que se defrontam
diretamente, ligadas e transmitidas pelo
passado. A tradição de todas as
gerações mortas oprime como um
pesadelo o cérebro dos vivos. (Marx &
Engels, s.d:203)
Essa concepção de história como objetividade
e exterioridade aparentemente relativizava a idéia
de que o homem se constituía o sujeito da história.
Entretanto, alguns anos antes, na obra destinada a
combater os filósofos idealistas alemães, A Sagrada
Família, eles entendiam de modo inteiramente
distinto o lugar do sujeito na história: os homens56
eram os produtores da história. Afirmaram isso com
as seguintes palavras:
A história não faz nada, «não possui
uma riqueza imensa», «não dá
combates», é o homem, o homem real
e vivo que faz tudo isso e realiza
combates; estejamos seguros de que
não é a história que se serve do homem
como de um meio para atingir — como
se ela fosse um personagem particular
— seus próprios fins; ela não é mais do
que a atividade do homem que
persegue os seus objetivos. (Marx &
Engels, apud Fernandes, 1983:48)
Foucault, nesse momento, acompanhando
uma tradição vinculada ao pensamento marxiano
explicitado em O Dezoito Brumário, entenderá que
não são os sujeitos que fazem a história, mas esta
faz-se a si mesma por intermédio deles e neles.
Foucault entenderá também que a descontinuidade
histórica é função da percepção que os homens têm
de sua ação prática no mundo. Se estou certo, é
possível, então, afirmar que Foucault se identificava
com a tradição marxista que nas décadas de 60 e
70 se opôs à tradição ortodoxa, e que apresentou
uma interpretação da história e de suas
transformações como um processo sem sujeito,
estruturado por leis que se situam para além da
vontade dos homens. Falo aqui de Althusser,
Poulantzas, entre outros.
Mas em A arqueologia do saber Foucault,
além do fato de retomar sua posição crítica em
relação à questão do sujeito, passa também a57
criticar certa noção de história, chamada por ele de
noção humanista e neo-hegeliana:
o que se lamenta com tanta intensidade
não é de modo algum a supressão da
história, mas, sim, o desaparecimento
dessa forma de história que estava
secretamente, mas totalmente, referida
à atividade sintética do sujeito. (AS:17)
Então, agora tem-se um Foucault que valoriza
a história? Sim e não. Porque aqui é necessário
relativizar o conceito de história, lembrando Claude
Lévi-Strauss, pois quando se fala de história podese
falar do devir histórico, ou da história enquanto
percepção da duração, ou mesmo da disciplina
chamada História. Foucault inicia desse ponto, ou
seja, da percepção que se tem da história como
disciplina científica. Seu argumento tem como base
a chamada «História das Idéias», disciplina que trata
dos discursos a que normalmente se dá o nome de
saber científico. Mas aí, na «História das Idéias», ele
se depara com um a priori, que antecede o labor
científico daqueles que produzem o saber dessa
disciplina. Refiro-me à noção de continuidade.
O exame do fazer dessa disciplina permite
observar que ela assume duas funções: por um lado
ela está envolvida com aquele tipo de saber que
ficou às margens do sistema científico — os
conhecimentos chamados de imperfeitos, que não
lograram atingir foros de cientificidade como a
alquimia, a frenologia, a teoria atomística, etc — e,
por outro lado, essa disciplina atribui a si mesma o
objetivo de narrar o itinerário das disciplinas 58
científicas existentes, a partir de sua «gênese» e
sua «continuidade». Quanto à gênese de uma
ciência, a «História das Idéias» considera que ela é
representada pelos indivíduos ou por uma
coletividade de indivíduos, reinscrevendo, desse
modo, o sujeito na produção do saber. Com relação
à questão da continuidade, a referida disciplina
procura indicar a unidade de objetos, de temas, de
argumentação, de método.
Foucault, ao contrário, procura pensar as leis
que orientam a história das ciências e das nãociências
sem se referir contudo ao sujeito. Ele
também evita adotar a perspectiva das rupturas
estruturais presente na noção de continuidade e
descontinuidade. A análise das ciências e das nãociências
permite que Foucault compreenda, por sua
vez, a questão da relação diferencial entre, por
exemplo, a alquimia e a química.
Sobre isso, é importante assinalar que a
perspectiva arqueológica torna completamente inútil
a orientação tradicional que via a química como um
produto natural de uma fase lógica e racional do
intelecto humano em oposição à alquimia, que seria
representante de uma fase pré-lógica e
supersticiosa. Ela também permite estabelecer a
diferença radical entre esses dois saberes e indicar
que a alquimia, por não ser ciência também não é
uma «ideologia»; desse modo é elucidada a
diferença entre o saber científico e a ideologia. Por
fim, evita que se perceba, ainda utilizando o
exemplo acima, uma ruptura epistemológica entre
os procedimentos da alquimia e da química, pelo 59
menos no período clássico, quando, então, um
saber se colocou ao lado do outro. O saber
alquímico não foi suplantado pelo saber químico —
deixou de ser ciência por condições estruturais e
não por uma decorrência da racionalidade do saber
da química. São essas condições estruturais, os a
priori históricos, que tornam a química um
acontecimento discursivo; acontecimento que tem
uma historia, portanto, um começo e, quem sabe,
um fim. Este conceito dará subsídios para novas
questões colocadas por Foucault, como a da
negação do sujeito e o do rompimento com as
noções estruturalistas de períodos estanques da
história. Foucault escreveu:
Uma vez que se surpreenderam todas
as formas imediatas de continuidade,
liberta-se completamente um domínio.
Um domínio imenso, mas que se pode
definir: é constituído por um conjunto de
enunciados efetivos (tenham eles sido
falados ou escritos), dispersos
enquanto acontecimentos e na instância
específica de cada um. Antes de se
tratar com uma ciência, ou com
romances, ou com discursos políticos,
ou com a obra de um autor ou mesmo
com um livro, o material que se deve
trabalhar na sua neutralidade primitiva é
constituído por uma população de
acontecimentos no espaço de um
discurso em geral. (AS:38)
Por «população de acontecimentos
discursivos» Foucault entende o conjunto sempre
finito e limitado das sequências linguísticas que 60
foram formuladas. Assim, por exemplo, quando
enunciamos uma frase, compomos esse
acontecimento discursivo. Mas esse enunciado está
fora de qualquer referência à consciência de um ou
mais autores. Na verdade, o que enunciamos são
possibilidades de arranjos que dependem de
determinadas relações pré-estabelecidas, já dadas
àquele que enuncia. Foucault indicará que estas
relações estão presentes em um «regime de
materialidade». Desse modo, pois, ao reportar-se
aos chamados objetos da psicopatologia, Foucault
pode levantar as seguintes questões:
Pode-se saber a partir de que sistema
não dedutivo estes objetos se puderam
justapor e se sucedem para constituir o
campo fragmentado da psicopatologia?
Qual foi o seu regime de existência
enquanto objetos do discurso? (AS:47)
Foucault também procura detectar como se
constituem os discursos historicamente variados.
Para ele, uma possibilidade de apreensão desse
processo é dada pela noção de enunciado:
Chamaremos de discurso um conjunto
de enunciados, na medida em que se
apóiam na mesma formação discursiva.
[O discurso] não forma uma unidade
retórica ou formal, indefinidamente
repetível e cujo aparecimento ou
utilização poderíamos assinalar na
história; é constituído de um número
limitado de enunciados para os quais
podemos definir um conjunto de 61
condições de existência. O discurso,
assim entendido, não é uma forma ideal
e intemporal que teria, além do mais,
uma história; o problema não consiste
em saber como e por que ele pode
emergir e tomar corpo num determinado
ponto do tempo; é, de parte a parte,
histórico — fragmento de história,
unidade e descontinuidade na própria
história, que coloca o problema de seus
próprios limites, de seus cortes, de suas
transformações, dos modos específicos
de sua temporalidade, e não de seu
surgimento abrupto em meio às
cumplicidades do tempo. (AS:135-6)
O regime de materialidade, por sua vez, não é
apenas uma condição entre outras; ele é
constitutivo, não sendo, simplesmente, um princípio
de variação, modificações de critérios de
reconhecimento, ou determinação de conjuntos
lingüísticos; o regime de materialidade é constitutivo
do próprio enunciado, sendo indispensável,
portanto, que um enunciado tenha uma substância,
um suporte, um lugar e uma data. Sobre isso dirá
Foucault que:
o regime de materialidade a que
obedecem necessariamente os
enunciados é, pois, mais da ordem da
instituição do que da localização
espaço-temporal (...) O enunciado não
se identifica com um fragmento de
matéria; mas sua identidade varia de
acordo com um regime complexo de
instituições materiais. (AS:118) 62
Os acontecimentos discursivos, então, apesar
de se tornarem «fatos históricos» no processo de
sua enunciação, não estão vinculados
exclusivamente ao lugar e ao tempo de sua
enunciação. Na verdade, eles estão ligados às
instituições nas quais se tornam acontecimentos, se
tornam eventos. Desse modo, concordando com
Dominique Lecourt,
Surge a necessidade de refletir sobre a
história dos acontecimentos discursivos
como estruturada pelas relações
materiais que se encarnam em
instituições. (Lecourt, 1980:90)
É em função desse aspecto, isto é, do vínculo
entre discurso e instituição, que Foucault é levado a
apresentar a seguinte definição de discurso:
o discurso não é uma estreita superfície
de contato, ou de confronto, entre uma
realidade e uma língua, o intricamento
entre um léxico e uma experiência (...)
mas práticas que formam
sistematicamente os objetos de que
falam. (AS:56)
O discurso não pode ser definido fora das
relações que o constituem. Daí Foucault também
falar de «relações discursivas» e de «regularidades
discursivas», mais do que de discurso
simplesmente. Ao adotar em suas obras a categoria
de prática discursiva Foucault assume a perspectiva
de jamais tomar o discurso fora do sistema das
relações materiais que o estrutura e o constitui. Mas 63
prática aqui não subentende a atividade de um
sujeito. Designa, antes, a existência objetiva e
material de certas regras a que o sujeito está
submetido desde o momento em que «enuncia» um
discurso. Foucault já havia feito uma referência a
essa submissão do sujeito no capítulo intitulado «O
Homem e seus Duplos» de As palavras e as
coisas.
Nas palavras de Dominique Lecourt:
as relações discursivas não são
internas ao discurso, não são ligações
que existem entre os conceitos e as
palavras, frases ou proposições; mas
também não lhe são igualmente
externas, não são «circunstâncias»
exteriores que fariam pressão sobre o
discurso; pelo contrário, elas
determinam o feixe de relações que o
discurso deve efetuar para poder
discorrer sobre certos objetos, para os
poder trabalhar, nomear, analisar,
classificar, explicar, etc. (Lecourt,
1980:91)
Para Foucault essas relações caracterizam não
a língua que o discurso utiliza, nem as
circunstâncias em que esse discurso se desenvolve,
mas o próprio discurso enquanto prática. A partir
dessas relações é que se institui a noção de regra e
regularidade discursivas.
De tudo o que afirmei, fica subentendido que
há um elemento que perpassa os discursos, que os 64
torna passíveis e possíveis de serem designados
como tais. Isto é o que Foucault chama de saber:
Um saber é aquilo de que podemos
falar em uma prática discursiva (...): o
domínio constituído pelos diferentes
objetos que irão adquirir ou não um
status científico (o saber da psiquiatria,
no século XIX, não é a soma do que se
acreditava fosse verdadeiro; é o
conjunto das condutas, das
singularidades, dos desvios de que se
pode falar no discurso psiquiátrico); um
saber é, também, o espaço em que o
sujeito pode tomar posição para falar
dos objetos de que se ocupa em seu
discurso (neste sentido, o saber da
medicina clínica é o conjunto das
funções de observação, interrogação,
decifração, registro, decisão, que
podem ser exercidas pelo sujeito do
discurso médico). Um saber é também
o campo de coordenação e de
subordinação dos enunciados em que
os conceitos aparecem, se definem, se
aplicam e se transformam (neste nível,
o saber da História Natural, no século
XVIII, não é a soma do que foi dito,
mas, sim, o conjunto dos modos e das
posições segundo as quais se pode
integrar ao já dito qualquer enunciado
novo). Finalmente, um saber se define
por possibilidades de utilização e de
apropriação oferecidas pelo discurso
(assim, o saber da economia política,
na época clássica, não é a síntese das
diferentes teses sustentadas, mas o 65
conjunto de seus pontos de articulação
com outros discursos ou outras práticas
que não são discursivas). Há saberes
que não são independentes das
ciências (que não são nem seu esboço
histórico, nem o avesso vivido); mas
não há saber sem uma prática
discursiva definida, e toda prática
discursiva pode definir-se pelo saber
que ele forma. (AS:206-7)
Um saber, portanto, é um campo de
coordenação e de subordinação dos enunciados
onde os conceitos aparecem, se definem, se
aplicam e se transformam. Desse modo, pois, o
saber é, verdadeiramente, o a priori da ciência e, ao
mesmo tempo, seu «objeto». A ciência:
sem se identificar com o saber, mas
sem apagá-lo ou excluí-lo, nele se
localiza, estrutura alguns de seus
objetos, sistematiza algumas de suas
enunciações, formaliza alguns de seus
conceitos e de suas estratégias.
(AS:209-10)
Por isso mesmo Foucault não aceita a falsa
dicotomia entre ciência e ideologia. Ele considera
que a ideologia também é um saber:
A ideologia não exclui a cientificidade
(...) Corrigindo-se, retificando seus
erros, condensando suas
formalizações, um discurso não anula
forçosamente sua relação com a
ideologia. O papel da ideologia não 66
diminui à medida que cresce o rigor e
que se dissipa a falsidade. (AS:210-1)
Por isso, o problema da relação entre ideologia
e ciência não é o das situações ou das práticas que
a ideologia reflete de uma forma mais ou menos
consciente; não é, também, o da sua utilização
eventual ou dos maus usos que dela se podem
fazer; é, sim, o problema de sua existência enquanto
prática discursiva e o seu funcionamento em relação
a outras práticas. Decorrem dessas proposições
questões tais como:
Quem fala? Quem, no conjunto de
todos os sujeitos falantes, tem boas
razões para ter esta espécie de
linguagem? Quem é seu titular? Quem
recebe dela sua singularidade, seus
encantos, e de quem, em troca, recebe
se não sua garantia, pelo menos a
presunção de que é verdadeira? Qual é
o status dos indivíduos que têm —
apenas eles — o direito regulamentar
ou tradicional, juridicamente definido ou
espontaneamente aceito, de proferir
semelhante discurso? O status do
médico compreende critérios de
competência e de saber; instituições,
sistemas, normas pedagógicas;
condições legais que dão direito — não
sem antes lhes fixar limites — à prática
e à experimentação do saber (...) A fala
médica não pode vir de quem quer que
seja; seu valor, sua eficácia, seus
próprios poderes terapêuticos e, de
maneira geral, sua existência como fala 67
médica não são dissociáveis do
personagem definido pelo status, que
tem o direito de articulá-lo,
reivindicando para si o poder de
conjurar o sofrimento e a morte.
(AS:57-8).
Pode-se, enfim, pressentir o surgimento do
tema do poder relacionado com o saber. Tomando
aqui como exemplo o saber do médico, pergunta-se:
qual o status do médico senão aquele dado pelo
«seu» saber? Mas quem lhe outorga esse status
senão uma instância extradiscursiva — as
instituições relacionadas ao «ofício»: o Estado, a
escola, o hospital, etc? São as instituições que dão
corpo à profissão e esta instância confere ao
discurso que se desenvolve em torno dela, e ao
indivíduo que a encarna, poder. Este poder, que
doravante vai-se expressar na prática discursiva do
médico, é estabelecido antes mesmo do sujeito,
entre instituições, processos econômicos e sociais,
formas de comportamento, sistemas de normas,
técnicas, tipos de classificação, modos de
caracterização, etc.
Concluindo, pode-se dizer então que, ao
pensar a categoria de discurso, e de discurso como
prática, Foucault empreende de fato o balanço de
sua produção intelectual, até aquele momento, e dá
a senha para a elucidação de seus projetos futuros.
Ao mesmo tempo que faz o elogio do discurso, do
próprio — quem sabe? [fim do capítulo 3]
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