“Tudo tem ou bem um preço, ou bem
uma dignidade. Podemos substituir o que tem um preço por seu equivalente. Em
contrapartida, o que não tem preço, e, pois, não tem equivalente, é o que tem
dignidade. (apud. Dufour, 2005:20)”.
O
que significa, porém, “não ter preço e não ter equivalente”? A primeira resposta parece óbvia: dignidade
nem tem preço, nem equivalente porque não é uma mercadoria. Dizer, porém, que
uma coisa não é mercadoria é insuficiente para caracterizá-la como algo
possuidor de dignidade. Muitos objetos materiais, por exemplo, os que são
apenas usados e não trocados por equivalentes, não são mercadorias e, no
entanto, não dizemos que eles possuem dignidade. Dignidade, portanto, não é mercadoria, mas
também não é uma simples “coisa” não precificável. Dignidade é um valor, ou
seja, uma ideia que prescreve finalidades à existência humana, que desenha um
horizonte de sentido para nossas ações, pensamentos e sentimentos.
De forma clássica, os valores
dividem-se em estéticos, lógicos e éticos. Os estéticos são relativos à ideia
do Belo e do Feio; os lógicos, à ideia do Verdadeiro e do Falso, e, por fim, os
éticos, à ideia do Bem e do Mal. A dignidade, nesta classificação, se inclui no
nicho dos valores éticos. Ela é um Bem ao qual queremos ter acesso, para
gozarmos do respeito do outros e do auto-respeito. Ao nos referirmos a dignidade da família
estamos, assim, dizendo que esta instituição cultural não deve ser
instrumentalizada como peça de um sistema de idéias axiologicamente neutro.
Como e por quê a família veio a tornar-se um pedestal
deste ideal cultural? Para responder a pergunta, retomo, de modo breve, a
história da relação entre a família e os ideais éticos no Ocidente moderno.
1-
A virada ética da Modernidade.
O
surgimento das modernas sociedades ocidentais deu origem a um fato novo no
campo da ética. Após o cisma Protestante e as Guerras Religiosas, os princípios
éticos do catolicismo romano perderam o monopólio do sentido da existência. A
narrativa católica, com o fim da civilização medieval, foi substituída pela
narrativa política que instituiu o Estado moderno. Desde então, o dossel
religioso, que articulava em um só sentido o destino terreno e sobrenatural de
indivíduos e sociedades, foi desmembrado em duas esferas seculares: a esfera da
ética pública e a esfera da ética privada.
Tanto uma como outra traziam em germe contradições que vieram a se
manifestar plenamente nos dilemas da família atual.
Analisemos,
inicialmente, o caso da ética pública. A
nova realidade política postulava que o Bem Comum era um valor ao qual todos os outros valores,
religiosos ou não, deveriam se subordinar. Mas, se era assim, como conciliar a
diversidade de escolhas individuais, assegurada pelo direito à liberdade de
expressão, com o bem de todos? Os
inventores do Estado secular imaginaram, então, duas saídas. A primeira foi a
teoria do Interesse Geral. O Interesse Geral seria o resultado espontâneo da
soma dos interesses particulares. São as
famosas teses de que “vícios privados se convertem em virtudes públicas” ou de
que uma extraordinária “mão invisível” regularia a competição de todos contra
todos, na disputa pelo poder de comandar e fazer-se obedecer. A segunda saída,
de autoria de Rousseau, substituiu a noção de Interesse Geral pela de Vontade
Geral. Esta última é a que mais nos interessa pelo impacto que teve na
elaboração do ideal familiar.
Ao contrário dos filósofos dos
« interesses egoístas », como Hobbes ou Mandeville, Rousseau
argumentava que não há como fazer brotar o Bem Comum de interesses puramente
individualistas. A hipótese da heterogênese dos fins em relação aos meios,
dizia ele, era falaciosa. O egoísmo é
incompatível com o altruísmo, a menos que seja redescrito de modo a explicar
como sua natureza permite a emergência do segundo. Esta foi sua tarefa.
Rousseau admitia que o egoísmo
dos interesses individuais é, sem dúvida, ineliminável no comportamento
humano. O amour de soi é uma paixão
primitiva, inata, anterior a qualquer outra, e da qual todas as outras são
apenas modificações” (Rousseau,1966 :275). Esta paixão nasce do desamparo
infantil, do instinto cego e maquinal, que nos faz buscar o que nos serve e
repelir o que nos prejudica (ibid :276). Entretanto, pelo fato de ser uma
paixão primitiva, não faz sentido condená-la como destrutiva. O amour de soi,
em si, é bom. Sua pretensa maldade é uma distorção retrospectiva, causada pela conversão do sentimento original em
em amour propre. O amour propre, contudo,
é um evento secundário na ordem natural. Ele é produto da influência da
sociedade corrompida pela vaidade, pela superstição e pela ignorância sobre os
indivíduos.
Para prevenir o risco de
transformação do amour de soi em amour
propre, bastaria educar corretamente a
criança. A boa educação consistiria na observância rigorosa de um princípio
moral e na consideração de um fato empírico. O princípio moral era o da
piedade. O educador deveria ensinar ao educando a tornar-se sensível ao sofrimento do outro. O fato
empírico concernia à sexualidade. O desejo sexual, pensava Rousseau, era um
impulso que pedia a presença do outro para se realizar. Por isso mesmo, levaria
os indivíduos à sociabilidade consentida.
A sexualidade bem orientada era o primeiro passo para a concórdia
social. Drenada para o amor do outro,
ela tornaria viável o que os teóricos dos interesses egoístas pensavam que só
poderia ser conseguido por meios da violência estatal. Em síntese, ensinando-se à criança a
sentir compaixão pela dor física e moral
do outro e à domesticar o ímpeto egoísta do sexo, a harmonia viria por
acréscimo. A Vontade Geral estava
naturalmente inscrita no amour de soi e
no amor ao outro, e não necessitava se apoiar no aparelhos repressivo do Estado
para se concretizar. Pela piedade e pela sexualidade seríamos capazes de
sintonizar o bem privado com as exigências do bem público.
É neste ponto do enredo
rousseauniano que entra o personagem da família. Por ser o primeiro agente da
educação infantil, a família veio a se
tornar o fermento e a estufa da metamorfose do interesse individual em
cooperação coletiva. Homens e mulheres, devidamente educados, se empenhariam
em buscar a complementaridade uns nos
outros e em transmitir aos filhos o mesmo valor. A sociedade justa de cidadãos
justos teria sua âncora no amor em
família.
2- A família e a ética da vida
privada.
A família, é claro, não foi eleita núcleo da ética privada, a
partir de Rousseau. No século XVI, a luta da Reforma protestante contra o
clericalismo e o ritualismo da Igreja católica havia aberto o caminho para sua
sacralização leiga, ao confinar o exercício da religião ao espaço doméstico. A
medida que a liturgia católica era desprestigiada, a ética cotidiana da família
e do trabalho ia sendo promovida ao lugar, por excelência, da prática das
virtudes cristãs. Todavia, a transformação luterano-calvinista da família só se
completou com o advento do Romantismo filosófico, político e literário do
século XVIII. O Romantismo intensificou
o movimento de concentração ética sobre a família originado na Reforma,
dando-lhe a definitiva coloração mundana exigida pela cultura secular.
A ética familiar dominante, antes
da revolução romântica, seguia o padrão da cultura aristocrática. Com exceção
dos burgueses recém-reformados, o
interesse estamental das casas e linhagens sobrepujava os interesses
individuais. Mesmo entre os príncipes protestantes, os códigos de etiqueta,
honra e reputação forneciam o modelo
ideal das condutas familiares. As
revoluções republicano-democráticas não alteraram muito este estado de coisas.
Os políticos, ideólogos, filósofos e juristas defensores da República estavam,
sobretudo, preocupados com a formação dos cidadãos. A instituição familiar era
foco de controle e vigilância apenas no que concernia á moralidade do trabalho
e ao imperativo da escolarização.
O surgimento do Romantismo
mudou de alto a baixo o panorama. Não apenas pela forte influência do
pensamento político-filosófico de Rousseau, mas também pelo combate explícito, programático,
do Romantismo ao ideário iluminista. Para os românticos, os ideais de justiça e
liberdade, proclamados pelo
Iluminismo, definiam com precisão os
direitos e deveres públicos, mas eram impessoais e insensíveis à beleza e à
autenticidade da vida sentimental. Além da equidade e a decência os indivíduos
deveriam ter direito à auto-realização, que só pode acontecer no plano das
singularidades pessoais. A família era o teatro sob medida das virtudes
privadas. Nela moravam a sinceridade e a
esperança da verdadeira felicidade.
No final do século XIX, aproximadamente, o
manequim cultural da família estava pronto, e, até hoje, inspira grande parte
de nossas ideais. Seu perfil era o de uma instituição vagamente cristã e
fortemente romântica, na qual se cultivava
o amor para com os próximos e a solidariedade para
com os concidadãos. O enaltecimento do romantismo amoroso; o fascínio pelas
sutilezas da vida íntima; o gosto pelas fantasias sentimentais ; a
exaltação da convivência terna entre cônjuges e entre pais e filhos; o
retraimento da espiritualidade cristã para o interior dos lares ; as
regras de civilidade etc, são os efeitos mais visíveis deste longo processo de
consolidação da família nuclear, que, posta neste patamar, tornou-se a célula
da sociedade, da Pátria e da Nação.
Donde sua dignidade.
As nódoas no espelho da
perfeição.
Entretanto, o que ocorreu com a
ética pública ocorreu com a privada. O cenário idílico da família tinha seus
sótãos e porões. É importante
assinalá-los, pois, foi nas brechas da perfeição idealizada que vieram a se
enxertar os atuais dispositivos ideológicos de desagregação familiar.
Dois aspectos na formação da
família democrático-burguesa permaneceram problemáticos. O primeiro
relaciona-se aos ideais de
igualdade ; o segundo, aos de felicidade.
Vejamos o primeiro. Os ideais de igualdade foram concebidos para aplicar-se á vida
cívica. A vida privada continuou sendo percebida como o lugar das desigualdades
e diferenças. Em matéria de direitos e deveres, por exemplo, pais não poderiam
ser iguais aos filhos, adultos às
crianças, homens às mulheres e assim por diante.
Os mentores do regime
democrático, para resolverem a incongruência, forjaram numerosos artifícios
ideológicos, entre os quais, os mais conhecidos são as teorias supostamente
« científicas » sobre a inferioridade da mulher em face do
homem ; das pessoas denominadas negras em face das denominadas
brancas ; dos sujeitos homoeroticamente inclinados em face dos
heteroeroticamente inclinados, além de outras, como as da perversão instintiva
infantil etc. Todas estas teorias, hoje
vistas como preconceituosas, foram alinhavadas para tornar aceitáveis as
dissimetrias de poder no coração moral da
sociedade igualitária. A
desigualdade era um resto social recalcitrante, reinscrito à força na gramática simbólica do igualitarismo.
Acontece que o
« resto », apesar de amordaçado, não perdeu a voz. Desde cedo, em
pleno apogeu da cultura burguesa
oitocentista, os indivíduos, em
particular as mulheres e os sujeitos com preferências sexuais minoritárias,
passaram a reivindicar os mesmos direitos e o mesmo respeito devido aos
«iguais ». Como, perguntavam eles, podemos experimentar e conhecer o princípio da piedade, se a conduta do homem branco, pai e heterossexual é o exato
oposto da retórica da sensibilidade para com o sofrimento do outro ? A família, de abrigo num mundo sem compaixão
passou, paulatinamente, a ser percebida
como um reduto de opressão.
O problema foi agravado, além
disso, pelo fato da ética privada não estar sujeita ao escrutínio público, na
maioria dos casos e dos fatos. Os litígios intrafamiliares não podiam ser
tratados como o eram as dissidências de ordem cívica. O critério para a
resolução de tais conflitos era o apelo à « autoridade ». Autoridade,
porém, é, fundamentalmente, uma força de
exceção. Ela interfere nos negócios
humanos justamente onde o braço da justiça não chega. A autoridade, em
casos de rotina, não age em função da letra da lei, mas dos costumes morais
estabelecidos. E, em casos imprevistos, é solicitada a criar normas ad hoc, sujeitas
à recusa ou à aceitação, igualmente ad
hoc, daqueles cujas condutas são o objeto da regulação pretendida. O único
aval da
autoridade é a confiança de que ela goza junto aos que a aceitam por
livre consentimento. Se a autoridade perde a capacidade de encantar, persuadir
ou despertar admiração e reverência, vê-se obrigada a empregar a violência
física, a intimidação moral ou, o que é pior, a recorrer à coação dos
dispositivos legais, para preservar a hierarquia da ordem que ela representa.
Nos três casos, assina a confissão de
sua impotência.
A família, em função disso,
sofreu, desde o nascimento, as dores de
uma fratura moral de difícil cura. Como instância extra-legal encarregada de
impor normas éticas, sua fonte de legitimação era o papel de guardiã do princípio da piedade e da solidariedade
que reservou para si. Mas, como
instância disciplinar, posta à serviço
das ideologias burguesas dos séculos XVIII e XIX, contrariava suas finalidades explícitas e
minava suas próprias fundações.
No registro dos ideais de
felicidade, a instituição familiar também veio a sofrer as sequelas de sua
idealização ética. Todavia, o que estava em jogo, aqui, não era o embate pelo direito à igualdade,
como nas infrações do patriarcado ao princípio da piedade, mas a relação dos
indivíduos com eles mesmos, diante das exigências de felicidade. Os sujeitos,
levados a introjetar os ideais de auto-realização moral, sexual, profissional,
social, espiritual etc, começaram a dar sinais de que a carga que portavam era
excessiva. O processo de subjetivação tornou-se sinônimo de consciência de
culpa e de vergonha. Ser adulto passou a significar sentir-se permanentemente
acossado por sentimentos de vergonha
pelos malogros nas tentativas de
realizar a identidade socialmente aprovada ou de culpa pelas transgressões
cometidas no trajeto do aperfeiçoamento
moral recomendado.
A família foi, desta maneira,
onerada com um duplo trabalho, para atingir suas finalidades éticas :
formar cidadãos iguais, a partir de pessoas desiguais, e formar sujeitos realizados, a partir de
consciências infelizes. A dignidade
familiar assentou-se em alicerces precários, e dessa precariedade surgiu seu
mal-estar contemporâneo.
A família assediada
Em torno dos anos 60 do século
anterior, a situação cultural da família era constrangedora. As críticas á sua existência e modo de funcionamento
multiplicavam-se e vinham de todos os lados. O pensamento libertário da
contra-cultura e o pensamento revolucionário de filiação marxista iniciaram o
assalto intelectual contra a cidadela familiar. Acusava-se a família burguesa
de ser repressiva, individualista, racista, sexista e politicamente atrelada ao
conservadorismo cultural. Em paralelo, proliferavam os ataques vindos dos
especialistas em sanidade mental, para os quais a família era inconpetente para
estimular o desenvolvimento afetivo de seus membros, em especial, das crianças.
Pais e adultos, desnorteados,
viram-se coagidos a reforçar o
conservadorismo de que eram acusados ou a reduplicar os sentimentos de culpa e
vergonha de que padeciam cronicamente. O estado de desequilíbrio pendeu em
favor dos constestadores. As famílias foram expropriadas do saber que possuíam
e sucumbiram, em bloco, à máquina de conhecimento pretensamente científico e
revolucionário que as apresentava como ineptas ou lesivas à ao amadurecimento
afetivo ou imaginativo de seus componentes.
Nos anos 80, o bombardeio prosseguiu com o movimento feminista e os
movimentos de minorias sexuais, e, finalmente, veio o golpe de
misericórdia : a moral do consumismo e do espetáculo lançaram-se sobre
seus despojos, reciclando ideológica e economicamente o que sobrou.
Os dois últimos fenômenos,
comparados aos anteriores, são os mais inquietantes, por deslocarem o assédio à
família da arena dos embates éticos para a arena da manipulação instrumental.
Explicitando, enquanto as críticas ideológicas citadas visavam a destituir a família de sua antiga dignidade para propor outro tipo de interação ética entre o público e o privado, as morais do
consumismo e do espetáculo visam apenas a reduzi-la à matéria prima de lucro e
reprodução ideológica do status quo. Os efeitos culturais e psicológicos destes
ataques são, por isso, mais perniciosos
e merecem serem levados à sério.
A moral do consumismo consiste,
em linhas gerais, na alteração profunda dos vínculos de sentido que, outrora,
ligavam a aquisição de bens materiais à história familiar. Ou seja, a prática
social e psicológica do consumismo faz
da posse de objetos um ato desprovido de significação moral. Reitero esta opinião, para enfatizar que o
consumismo não se resume apenas em tratar os objetos como coisas descartáveis.
Este é seu lado mais evidente, porém, o mais inocente. O que existe de inédito e preocupante no consumismo atual
é que os compradores já não dispõem de
critérios para distinguir o que é ou não verdadeiramente inútil.
O mecanismo ideológico da compulsão ao consumo opera da
seguinte maneira. A indústria, o
comércio e a propaganda instigam os indivíduos a definirem suas identidades
pela ostentação de inovações tecnológicas ou pela acumulação perdulária de bens
e serviços tradicionais. Uma vez convertidos a este estilo de vida, os
indivíduos deixam de ver nos objetos signos de suas inclinações ou escolhas
pessoais, para vê-los como prova de que são cidadãos de primeira classe. O
resultado é o rebaixamento moral do uso dos objetos.
Explico o sentido da afirmação. Um dos traços típicos da família burguesa e
democrática foi o de utilizar objetos industriais para enriquecer a intimidade
doméstica e dar suporte material a seu
passado social e afetivo. Os pais
legavam aos filhos aquilo que eles legariam aos netos e assim por diante. Os
objetos tinham um futuro potencial
inscrito no ato de sua aquisição.
Eles um índice da reverência que os descendentes tinham por seus ascendentes e
da preocupação com que olhavam o futuro dos que deles descenderiam. Cada
objeto evocava episódios sociais, afetivos e espirituais dignos de
rememoração, como nascimentos, batizados, casamentos, aniversários, bodas, formaturas, funerais etc. A memória da família não dependia apenas da
fugacidade das lembranças individuais para se imortalizar. Ela permanecia
gravada na materialidade de objetos que enraizavam o presente no passado e
mostravam o respeito e a gratidão que as novas gerações tinham por aqueles que
lhes antecederam. A moral do consumismo corroeu por dentro esta expectativa,
condenando à irrelevância e á
decadência o que deveria ser duradouro.
A moral do espetáculo é uma
expressão derivada do conceito de « sociedade do espetáculo » criado
por Guy Debord(Jappe, 1999 ; Costa, 2004). De forma sucinta, o conceito
alude à visão de mundo estruturada na linguagem auto-referente dos meios de
comunicação de massa. Dito de outro modo, os meios de comunicação de massa, por
deterem, praticamente, o monopólio da informação, tornaram-se o principal
mediador simbólico entre a consciência da realidade e a experiência da
realidade. A mediação, entretanto, não se mostra como «mediação », isto é,
como uma interpretação possível de eventos que estão fora de sua grade interpretativa, e sim como um processo autônomo de produção
de sentido dos acontecimentos do mundo. As leituras midiáticas da realidade,
em vez de apontar para aquilo que excede
seus limites, amarram a consciência individual nas malhas de seu
próprio tecido, reenviando-a sempre a uma
outra leitura com a mesma sintaxe e de igual nível analítico. Assim, negam e
ocultam a pluralidade de ações e interesses que formam o estofo da experiência
pessoal ou coletiva do mundo comum, e integram, quase de forma exaustiva, o
consumismo e a moralidade familiar no universo do espetáculo.
O consumismo é incluído na moral
do espetáculo pela rapidez com que torna obsoletos os objetos de compra. O encurtamento da vida útil das coisas faz
com que o mundo material ganhe a aparência de um pano de fundo opaco onde
desfilam novidades comerciais passageiras, e no qual o indivíduo se sente
transitando como um turista ou um pária
em terra estrangeira. Para entender sua posição neste mundo e diminuir o efeito
de estranhamento, o indivíduo é, então, obrigado a recorrer à versão midiática
da realidade, que nada mais é do que uma apologia sem disfarces da cultura do
mercado.
A manipulação dos ideais
familiares pela moral do espetáculo, por seu turno, dá-se de duas principais maneiras : pela
fantasia da felicidade sensorial e pelo estupor da saturação de entretenimento. A fantasia da felicidade sensorial baseia-se
na promessa feita aos sujeitos de que o
minucioso cuidado com o corpo físico é capaz de proporcionar-lhes
satisfação emocional e reconhecimento social.
O que chamamos de culto ao corpo ou de abuso da exploração de sensações
corporais, como nos casos de dependências químicas de drogas legais e ilegais,
ilustra este tópico. Os cuidados compulsivos com a forma física, a saúde e a juvenilidade
terminam por ocupar boa parte do tempo
anteriormente dedicado pela família ao aperfeiçoamento sentimental,
cívico ou espiritual de seus membros. Ter um corpo conforme as injunções da
moda passou a ser mais importante do que conduzir-se como cidadãos, pais,
filhos, adultos ou crianças exemplares.
A ideologia do entretenimento é
especialmente virulenta, por se expandir
às custas da crise de autoridade
familiar mencionada. A moral do
espetáculo, valendo-se da crise da autoridade familiar, aborda problemas éticos
como se fossem questão de gosto individual. E, como gosto não se discute, a gravidade e a seriedade daquelas questões é
diluída em textos e imagens de ficção, fazendo da vida moral um arremedo de
novelas, seriados, enlatados ou entrevistas para tardes de ócio. A mídia, a pretexto de superar preconceitos e comportamentos
conservadores, na verdade, cria uma moralidade farsesca, votada a perecer no mesmo ritmo em que as
novidades mercadológicas perecem. Pois,
o que, de fato, comanda as discussões morais no universo midiático é o objetivo
de cativar a audiência e manter o patrocínio das empresas. Neste sentido, qualquer expediente é bom, desde que o
espectador, ouvinte ou leitor não se entendie e garanta a hegemonia de tal ou
qual órgão de informação sobre os concorrentes na disputa pela preferência do
público. Brutalidades ;
grosserias ; exploração indecorosa do voyeurismo, sadismo, masoquismo ou
exibicionismo latente em todos nós ; estímulo á indolência
intelectual ; abuso do sentimentalismo e das fraquezas emocionais dos mais
humildes ; exploração do medo urbano da violência delinquente, vale tudo,
contanto que a audiência se divirta momentaneamente e esqueça rapidamente o que
viu, ouviu ou leu. O ideal é que as pessoas não tenham memória moral e estejam
prontas a trocar de crenças éticas como quem troca de camisa ou de marca de
dentifrício.
Ao contrário da autoridade,
porta-voz da tradições e suas contradições, o arauto da ideologia do
entretenimento é a celebridade. A celebridade é a « autoridade » em
morais triviais e provisórias. Em seu reino, tudo é possível, tudo é devorável, à condição de que seja leve, divertido, alto
astral. Em virtude disto, estamos fabricando uma geração de brasileiros
hipnotizada pelo mito da celebridade e
indiferente ou hostil à autoridade dos adultos que não participam do
clube do entretenimento. Mais que isso, como o único requisito para que alguém
se torne uma celebridade é o de ter visibilidade, a notoriedade dissociou-se do mérito. O
reconhecimento social não mais depende
do valor moral, o que leva o admirador a ter uma relação ambígua com a
celebridade. De um lado ele inveja seu prestígio
social ; de outra despreza seu quilate moral, pois, de uma ou de outra
forma, sabe que ela usurpa o direito à admiração devido aos que verdadeiramente
têm talento.
Seja como for, hoje em dia, a
força simbólica da autoridade familiar tem de lutar encarniçadamente para
impor-se ao brilho publicitário das celebridades. Os próprios adultos, muitas
vezes, colaboram para a perpetuação da ideologia do entretenimento, ao
mostrarem aos jovens a puerilidade com que idealizam os ídolos midiáticos e o
menosprezo com que tratam suas próprias vidas e valores éticas. Mas, mesmo
quando se mostram críticos, têm grandes dificuldades em fazer ver à crianças e
adolescentes a pobreza moral, intelectual e cívica dos heróis culturais da
informação de massa.
Em conclusão, para que possamos
restituir à família a legítima dignidade que, historicamente, lhe foi
outorgada, é preciso colocar em perspectiva seus impasses, procurando reforçar
o que ela tem de melhor e vencer a inércia do que ela tem de pior.
Obviamente, não existe receita
para esta operação de resgate. Até porque, no ideário democrático-republicano,
nem existem nem devem existir normas universais de auto-realização.
Considerado este aspecto, podemos assinalar dois pontos de
estrangulamento que exigem reflexão.
O primeiro concerne ao domínio da
vida pública, do Bem Comum. É preciso que os adultos evitem transmitir às
crianças descrédito ou desdém pela atividade política. Bem-entendido, não falo
de política partidária. Os partidos são apenas um dos mediadores entre a
sociedade civil e o Estado. Falo da importância de proteger do escárnio os
ideais de liberdade, igualdade e fraternidade que são nossos credos morais
básicos. Não se pode construir uma sociedade mais justa e decente, ensinando-se
às crianças e aos jovens que a lei do cinismo e do oportunismo são meios que se
possa usar sem escrúpulos para « subir na vida ». Isto não é
moralismo ; é moralidade. Tolerância em relação à falhas pessoais de
caráter não é o mesmo que complacência sistemática em relação à quebra de
princípios.
Esta prática nefasta, que se
difundiu entre nós como uma epidemia,
vem destruindo a crença de que o meio aprovado de ascensão social é o
trabalho e a educação.
O segundo concerne à órbita da
vida privada. É preciso estarmos atentos às
armadilhas da moral do consumismo e do espetáculo. No que tange ao
consumismo, é importante reafirmar que o apreço que podemos ter por coisas que
têm preço, não significa que sejamos todos zumbis « consumidores ».
Existe um abismo ético que não devemos ignorar entre adquirir objetos que
atendam nossas demandas físicas, afetivas, artísticas, intelectuais,
espirituais etc, e comportar-se como
criaturas vorazes, insensatas, que se
precipitam às cegas sobre qualquer quinquilharia imposta pela violência
simbólica da sedução midiática ou do conformismo social.
No que concerne à moral do espetáculo, duas atitudes culturais
correntes exigem atenção redobrada. A primeira é a distância que devemos ter da
ilusão midiática da felicidade sensorial. Se quisermos assumir compromissos
familiares, não podemos deixar-nos infantilizar por um modo de vida cujo
sentido resume-se em partir do corpo
para chegar ao corpo. Esta montagem imaginária é a porta de entrada para o
esfacelamento de qualquer laço moral e afetivo com o grupo de pessoas que
compõem o núcleo familiar. Adultos obcecados com o desempenho físico, alheios a
qualquer aspiração moral que se estenda além dos limites do próprio bem-estar,
não podem exigir dos outros uma responsabilidade e uma solidariedade que se
recusam a praticar.
A segunda atitude está
relacionada ao culto às celebridades. A restauração da autoridade familiar só
será possível se começarmos a reagir à invasão da vida privada pela moral do
entretenimento. Pais e adultos que se mostram atoleimados ou paralisados diante
das celebridades midiáticas, são os sabotadores mais eficientes da autoridade.
Estes personagens não são exemplos de virtudes políticas, cívicas, espirituais,
intelectuais, científicas ou artísticas que se deva imitar. São marionetes fadadas a caducar, tão logo a
lei do espetáculo determine. Temos de convencer-nos de que a família, malgrado
todas as limitações, ainda é a instituição cultural responsável pelo acolhimento
das novas gerações, e que sua pedra de toque é a confiança na autoridade. Se
pais e adultos renunciam ao respeito que devem ter por sua
função cultural, nada nem ninguém poderá ocupar este lugar. E não precisamos persistir atados ao regime
da vergonha e da culpa, para exercer o papel de responsabilidade que nos é
exigido. Responsabilidade implica sentir-se concernido, sentir-se como
partícipe de um problema e parte da solução. Isto nada tem a ver com
auto-culpabilização ou auto-flagelação emocional.
Talvez pareça exorbitante pedir
um esforço a mais a quem se sente exausto. Mas, em matéria de ética, o ganho em dignidade compensa o esforço.
Bibliografia.
COSTA, Jurandir Freire. O
vestígio e a aura – Corpo e consumismo na moral do espetáculo. Rio. Garamond.
2004.
DUFOUR, Dany-Robert. A arte de
reduzir cabeças – Sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal.
Rio.Companhia de Freud. 2005.
JAPPE, Anselm. Guy Debord.
Petrópolis. Editora Vozes. 1999.
ROUSSEAU. Émile ou de
l´éducation. Paris. Garnier-Flammarion. 1966.
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