—Quanto pede o senhor por isto?
—Isto? Há de perdoar; quer saber quanto peço pelo meu rico Senhor D. Miguel?
Não peço muito, está um tanto encardido, mas ainda se lhe aprecia bem a figura.
Que soberba que ela é! Não é caro; dou-lhe pelo custo; se estivesse
encaixilhado, valeria uns quatro mil-réis. Leve-o por três.
O freguês tirou tranquilamente o
dinheiro do bolso, enquanto o velho enrolava o retrato, e, trocados um por
outro, despediram-se corteses e satisfeitos; o lojista, depois de ir até à
porta, tornou à cadeira do costume. Talvez pensasse no mal a que escapara, se
vendesse o retrato por dez tostões. Em todo caso, ficou a olhar para fora, para
longe, para onde há justiça eterna... Três mil-réis!
XXVI
A Luta dos retratos
A Luta dos retratos
Quase que não é preciso dizer o
destino dos retratos do rei e o convencional. Cada um dos pequenos pregou o seu
à cabeceira da cama. Pouso durou esta situação, porque ambos faziam pirraças às
pobres gravuras, que não tinham culpa de nada. Eram orelhas de burro, nomes
feios, desenhos de animais, até que um dia Paulo rasgou a de Pedro, e Pedro a
de Paulo. Naturalmente, vingaram-se a murro, a mãe ouviu rumor e subiu
apressada. Conteve os filhos, mas já os achou arranhados e recolheu-se triste.
Nunca mais acabaria aquela maldição de rivalidade? Fez esta pergunta calada,
atirada à cama, a cara metida no travesseiro, que desta vez ficou seco, mas a
alma chorou.
Natividade confiava na educação,
mas a educação, por mais que ela a apurasse, apenas quebrava as arestas ao
caráter dos pequenos, o essencial ficava; as paixões embrionárias trabalhavam
por viver, crescer, romper, tais quais ela sentira os dous no próprio seio,
durante a gestação...
E recordava a crise de então, acabando por maldizer da
cabocla do Castelo. Realmente, a cabocla devia ter calado; o mal calado não se
muda, mas não se sabe. Agora, pode ser que isto de não calar confirme a opinião
de que a Cabocla era mandada por Deus para dizer a verdade aos homens. E afinal
o que é que ela disse a Natividade? Não fez mais que uma pergunta misteriosa; a
predição é que foi luminosa e clara... E outra vez as palavras do Castelo
ressoaram aos ouvidos da mãe, e a imaginação fez o resto. Cousas futuras!
Hei-los grandes e sublimes. Algumas brigas em pequenos, que importa? Natividade
sorriu, ergueu-se, foi à porta, deu com o filho Pedro, que vinha explicar-se.
—Mamãe, Paulo é mau. Se mamãe ouvisse os horrores que ele solta pela boca fora,
mamãe morria de medo. Custa-me muito não ir à cara dele; ainda lhe não tirei um
olho...
—Meu filho, não fales assim, é teu irmão.
—Pois que não se meta comigo, não me aborreça. Que blasfêmias que ele dizia!
Como eu rezava por alma de Luís XVI, ele para machucar-me bem, rezava a
Robespierre; compôs uma ladainha chamando santo ao outro e cantarolava baixinho
para que papai nem mamãe ouvissem. Eu sempre lhe dei alguns cascudos...
—Aí está!
—Mas é que ele é que me dava primeiro, porque eu punha orelhas de burro em
Robespierre... Então, eu havia de apanhar calado?
—Nem calado, nem falando.
—Então, como? Apanhar sempre, não é?
—Não, senhor; não quero pancadas; o melhor é que esqueçam tudo e se queiram
bem. Você não vê como seus pais se querem? As brigas acabaram de todo. Não
quero ouvir rusgas nem queixas. Afinal que têm vocês com um sujeito mau que
morreu há tantos anos?
—É o que eu digo, mas ele não se emenda.
—Há de emendar-se os estudos fazem esquecer criancices. Você também quando for
médico tem muito que brigar com as moléstias e a morte — é melhor que
andar dando pancada em seu irmão... Que e lá isso? Não quero arremessos, Pedro!
Sossegue, ouça-me.
—Mamãe é sempre contra mim.
—Não sou contra nenhum, sou por ambos, ambos são meus filhos. E demais gêmeos.
Anda cá, Pedro. Não penses que eu desaprovo as tuas opiniões políticas. Até
gosto e são as minhas, são as nossas. Paulo há de tê-las também. Na idade dele
aceita-se quanta tolice há, mas o tempo corrige. Olha, Pedro, a minha esperança
é que vocês sejam grandes homens, mas com a condição de serem também grandes
amigos.
—Estou pronto a ser grande homem, assentiu Pedro com ingenuidade, quase com
resignação.
—E grande amigo também.
—Se ele for, serei.
—Grandes homens! exclamou Natividade, dando-lhe dous abraços, um para ele,
outro para o irmão quando viesse.
Mas Paulo veio logo, e recebeu o
abraço inteiro e de verdade. Vinha também queixar-se, e sempre resmungou alguma
cousa, mas a mãe não quis ouvi-lo, e falou outra vez a linguagem das grandezas.
Paulo consentiu também em ser grande.
—Você será médico, disse Natividade a Pedro, e você advogado. Quero ver quem
faz as melhores curas, e ganha as piores demandas.
—Eu, disseram ambos a um tempo.
—Patetas! Cada um terá a sua carreira especial, a sua ciência diferente. Já
estão curados do nariz? Já; não há mais sangue. Agora o primeiro que ferir seu
irmão será degradado.
Foi um recurso hábil separá-los; um
ficava no Rio, estudando Medicina, outro ia para São Paulo, estudar Direito. O
tempo faria o resto, não contando que cada um casava e iria com a mulher para o
seu lado. Era a paz perpétua; mais tarde viria a perpétua amizade.
XXVII
De uma reflexão intempestiva
De uma reflexão intempestiva
Eis aqui entra uma reflexão da
leitora: "mas se duas velhas gravuras os levam a murro e sangue,
contentar-se-ão eles com a sua esposa? Não quererão a mesma e única
mulher?"
O que a senhora deseja, amiga
minha, é chegar já ao capítulo do amor ou dos amores, que é o seu interesse
particular nos livros. Daí a habilidade da pergunta, como se dissesse:
"Olhe que o senhor ainda nos não mostrou a dama ou damas que têm de ser
amadas ou pleiteadas por estes dous jovens inimigos. Já estou cansada de saber
que os rapazes não se dão ou se dão mal; é a segunda ou terceira vez que
assisto às blandícias da mãe ou aos seus ralhos amigos. Vamos depressa ao amor,
às duas, se não é uma só a pessoa..."
Francamente eu não gosto de gente
que venha adivinhando e compondo um livro que está sendo escrito com método. A
insistência da leitora em falar de uma só mulher chega a ser impertinente.
Suponha que eles deveras gostem de uma só pessoa; não Parecerá que eu conto o
que a leitora me lembrou, quando a verdade é que eu apenas escrevo o que
sucedeu e pode ser confirmado por dezenas de testemunhas? Não. senhora minha,
não pus a pena na mão, à espreita do que me vissem sugerindo. Se quer compor o
livro, aqui tem a pena, aqui tem papel, aqui tem um admirador; mas, se quer ler
somente, deixe-se estar quieta, vá de linha em linha; dou-lhe que boceje entre
dous capítulos. mas espere o resto. tenha confiança no relator destas
aventuras.
XXVIII
O Resto é certo
O Resto é certo
Sim, houve uma pessoa, mais moça
que eles, um a dous anos, que os agrilhou, à força de costume ou de natureza,
se não foi de ambas as cousas. Antes dessa, pode ser que houvesse outras e mais
velhas que eles, mas de tais: não rezam as notas que servem a este livro. Se
brigaram por elas, não ficou memória disso, mas é possível, dado que tivessem
tido as mesmas preferências; no caso contrário também, como sucedia aos
cavaleiros que defendiam a sua dama.
Conjeturas tudo. Era natural que,
assim bonitos, iguais, elegantes dados à vida e ao passeio, à conversação e à dança,
finalmente herdeiros, era natural que mais de uma menina gostasse deles. As que
os viam passar a cavalo, praia fora ou rua acima, ficavam namoradas daquela
ordem perfeita de aspecto e de movimento. Os próprios cavalos eram iguaizinhos,
quase gêmeos, e batiam as patas com o mesmo ritmo, a mesma força, e a mesma
graça. Não creias que o gesto da cauda e das crinas fosse simultâneo nos dous
animais; não é verdade e pode fazer duvidar do resto. Pois o resto é certo.
XXIX
A Pessoa mais moça
A Pessoa mais moça
A pessoa mais moça não entra já
neste capítulo por uma razão valiosa, que é a conveniência de apresentar
primeiro os pais. Não é que se não possa vê-la bem sem eles — pode-se, os três
são diversos, acaso contrários, e, por mais especial que a acheis, não é
preciso que os pais estejam presentes. Nem sempre os filhos reproduzem os pais.
Camões afirmou que de certo pai só se podia esperar tal filho, e a ciência
confirma esta regra poética. Pela minha parte creio na ciência como na poesia,
mas há exceções, amigo. Sucede, às vezes, que a natureza faz outra cousa, e nem
por isso as plantas deixam de crescer e as estrelas de luzir. O que se deve
crer sem erro é que Deus é Deus; e, se alguma rapariga árabe me estiver lendo,
ponha-lhe Alá! Todas as línguas vão dar ao Céu.
XXX
A Gente Batista
A Gente Batista
A gente Batista conheceu a gente
Santos em não sei que fazenda da Província do Rio. Não foi Maricá, embora ali
tivesse nascido o pai dos gêmeos, seria em qualquer outro município. Fosse qual
fosse, ali é que se conheceram as duas famílias, e como morassem próximas em
Botafogo, a assiduidade e a simpatia vieram ajudando o caso fortuito.
Batista, o pai da donzela, era
homem de quarenta e tantos anos, advogado do cível, ex-presidente de província
e membro do Partido Conservador. A ida à fazenda tivera por objeto exatamente
uma conferência política para fins eleitorais, mas tão estéril que ele tordou
de lá sem, ao menos, um ramo de esperança. Apesar de ter amigos no governo, não
alcançara nada, nem deputação nem presidência. Interrompera a carreira desde
que foi exonerado daquele cargo "a pedido", disse o decreto, mas as
queixas do exonerado fariam crer outra cousa. De fato, perdera as eleições, e
atribuía a esse desastre político a demissão do cargo.
—Não sei o que é que ele queria que eu fizesse mais, dizia Batista falando do
ministro. Cerquei igrejas; nenhum amigo pediu polícia que eu não mandasse;
processei talvez umas vinte pessoas. Outras foram para a cadeia sem processo.
Havia de enforcar gente? Ainda assim houve duas mortes no Ribeirão das Moças.
O final era excessivo, porque as
mortes não foram obra dele; quando muito, ele mandou abafar o inquérito, se
pode chamar inquérito a uma simples conversação sobre a ferocidade dos dous
defuntos. Em suma, as eleições foram incruentas.
Batista dizia que por causa das
eleições perdera a presidência, mas corria outra versão, um negócio de águas,
concessão feita a um espanhol, a pedido do irmão da esposa do presidente. O
pedido era verdadeiro, a imputação de sócio é que era falsa. Não importa; tanto
bastou para que a folha da oposição dissesse que houve naquilo um bom
"arranjo de família", acrescentando que, como era de águas, devia ser
negócio limpo. A folha da administração retorquiu que, se águas havia, não eram
bastantes para lavar o sujo do carvão deixado pela última presidência liberal,
um fornecimento de palácio. Não era exato — a folha da oposição reviveu o
processo antigo e mostrou que a defesa fora cabal. Podia parar aqui, mas
continuou que, "como agora estávamos em Espanha", o presidente
emendou o poeta espanhol, autor daquele epitáfio:
Cunados y juntos:
Es cierto que están difuntos;
e emendou-o por não ser obrigado a
matar ninguém, antes deu vida a si e aos seus dizendo pela nossa língua:
Cunhados e cunhadíssimos;
E certo que são vivíssimos!
Batista acudiu depressa ao mal,
declarando sem efeito a concessão, mas isso mesmo serviu à oposição para novos
arremessos: "Temos a confissão do réu!" foi o título do primeiro
artigo que rendeu à folha da oposição o ato do presidente. Os correspondentes
tinham já escrito para o Rio de Janeiro falando da concessão, e o governo
acabou por demitir o seu delegado. Em verdade, só os políticos cuidaram do
negócio. D. Cláudia apenas aludia à campanha da imprensa, que foi
violentíssima.
—Não valia a pena sair daqui, disse Natividade.
—Lá isso não, baronesa!
E D. Cláudia afirmou que valia.
Sofre-se, mas paciência. Era tão bom chegar à província! Tudo anunciado, as
visitas a bordo, o desembarque, a posse, os cumprimentos... Ver a magistratura,
o funcionalismo, a oficialidade, muito calva, muito cabelo branco, a flor da
terra, enfim, com as suas cortesias longas e demoradas, todas em angulo ou em
curva, e os louvores impressos. As mesmas descomposturas da oposição eram
agradáveis. Ouvir chamar tirano ao marido, que ela sabia ter um coração de
pomba, ia bem à alma dela. A sede de sangue que se lhe atribuía, ele que nem
bebia vinho, o guante de ferro de um homem que era uma luva de pelica, a
imoralidade, a desfaçatez, a falta de brio, todos os nomes injustos, mas
fortes, que ela gostava de ler, como verdades eternas, onde iam eles agora? A
folha da oposição e??sa a primeira que D. Cláudia lia em palácio. Sentia-se
vergastada também e tinha nisso uma grande volúpia, como se fosse na própria
pele, almoçava melhor. Onde iam os látegos daquele tempo? Agora mal podia ler o
nome dele impresso no fim de algumas razões do foro, ou então na lista das
pessoas que iam visitar o imperador.
—Nem sempre, explicou D. Cláudia; Batista é muito acanhado; vai de longe em
longe a S. Cristóvão, para não parecer que se faz lembrado, como se isto fosse
crime; ao contrário, não ir nunca é que pode parecer arrufo. Note que o imperador
nunca deixou de recebê-lo com muita benevolência, e a mim também. Nunca
esqueceu o meu nome. Já deixei de lá ir dous anos, e quando apareci,
perguntou-me logo: "Como vai, D. Cláudia?"
Afora essas saudades do poder, D.
Cláudia era uma criatura feliz. A viveza das palavras e das maneiras, os olhos
que pareciam não ver nada à força de não pararem nunca, e o sorriso benévolo, e
a admiração constante, tudo nela era ajustado a curar as melancolias alheias.
Quando beijava ou mirava as amigas era como se as quisesse comer vivas, comer
de amor, não de ódio, metê-las em si, muito em si, no mais fundo de si.
Batista não tinha as mesmas
expansões. Era alto, e o ar sossegado dava um bom aspecto de governo. Só lhe
faltava ação, mas a mulher podia inspirar-lha, nunca deixou de consultá-la nas
crises da presidência. Agora mesmo, se lhe desse ouvidos, já teria ido pedir
alguma cousa ao governo, mas neste ponto era firme, de uma firmeza que nascia
da fraqueza: "Hão de chamar-me, deixa estar", dizia ele a D. Cláudia,
quando apareceu alguma vaga de governo provincial. Certo é que ele sentia a necessidade
de tornar à vida ativa. Nele a política era menos uma opinião que uma sarna;
precisava coçar-se a miúdo e com força.
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