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segunda-feira, 3 de março de 2014

Esaú e Jacó - Machado de Assis [parte 5]

Se não fosse a necessidade de pôr os meninos em pé , crescidos e homens, espraiava este capítulo. Realmente, o espetáculo, posto que comum, era belo. Os peraltas nutriam-se ao contrário dos pais, sem as artes do cozinheiro, nem a vista das comidas e bebidas, todas postas em cristais e porcelanas para emendar ou colorir a dura necessidade de comer. A eles nem se lhes via a comida; a boca ligada ao peito não deixava aparecer o leite. A natureza mostrava-se satisfeita pelo riso ou pelo sono. Quando era o sono, cada uma levava o seu menino ao berço, e ia cuidar de outra cousa. Este cotejo dar-me-ia três ou quatro páginas sólidas.
Uma página bastava para os chocalhos que embelezavam os pequenos, como se fosse a própria música do céu. Eles sorriam, estendiam as mãos, alguma vez zangavam-se com as negaças, mas tanto que lhos davam, calavam-se, e se não podiam tocar não se zangavam por isso. A propósito de chocalhos, diria que esses instrumentos não deixam memória de si; alguém que os veja em mãos de crianças, se parecer que lhe lembram os seus, que logo no engano, e adverte que a recordação há de ser mais recente, alguma arenga do ano passado, se não foi a vaca de leite da véspera.
A operação de desmamar, podia fazer-se em meia linha, mas as lástimas das amas, as despedidas, as bichas de ouro que a mãe deu a cada uma delas, como um presente final, tudo isso exigia uma boa página ou mais. Poucas linhas bastariam para as amas-secas, por quanto não diria se eram altas nem baixas, feias ou bonitas. Eram mansas, zelosas do ofício, amigas dos pequenos, e logo uma da outra Cavalinhos de pau, bandeirolas, teatros de bonecos, barretinas e tambores, toda a quinquilharia da infância ocuparia muito mais que o lugar de seus nomes.

Tudo isso restrinjo só para não enfadar a leitora curiosa de ver os meus meninos homens e acabados. Vamos vê-los, querida. Com pouco, estão crescidos e fortes. Depois, entrego-os a si mesmos; eles que abram a ferro ou língua, ou simples cotovelos, o caminho da vida e do mundo.

 XVIII
De como vieram crescendo
 
Hei-los que vêm crescendo. A semelhança, sem os confundir já, continuava a ser grande. Os mesmos olhos claros e atentos, a mesma boca cheia de graça, as mãos finas, e uma cor viva nas faces que as fazia crer pintadas de sangue. Eram sadios; excetuada a crise dos dentes, não tiveram moléstia alguma, porque eu não conto uma ou outra indigestão de doces, que os pais lhes davam, ou eles tiravam às escondidas. Eram ambos gulosos, Pedro mais que Paulo, e Paulo mais que ninguém.
Aos sete anos eram duas obras-primas, ou antes uma só em dous volumes, como quiseres. Em verdade, não havia por toda aquela praia, nem por Flamengos ou Glórias, Cajus e outras redondezas, não havia uma, quanto mais duas crianças tão graciosas. Nota que eram também robustos. Pedro com um murro derrubava Paulo; em compensação, Paulo com um pontapé deitava Pedro ao chão. Corriam muito na chácara por aposta. Alguma vez quiseram trepar às árvores, mas a mãe não consentia; não era bonito. Contentavam-se de espiar cá de baixo a fruta.
Paulo era mais agressivo, Pedro mais dissimulado, e, como ambos acabavam por comer a fruta das árvores, era um moleque que a ia buscar acima, fosse a cascudo de um ou com promessa de outro. A promessa não se cumpria nunca; o cascudo, por ser antecipado, cumpria-se sempre, e às vezes com repetição depois do serviço. Não digo com isto que um e outro dos gêmeos não soubessem agredir e dissimular; a diferença é que cada um sabia melhor o seu gosto, cousa tão óbvia que custa escrever.
Obedeciam aos pais sem grande esforço, posto fossem teimosos. Nem mentiam mais que outros meninos da cidade. Ao cabo, a mentira é alguma vez meia virtude. Assim é que, quando eles disseram não ter visto furtar um relógio da mãe, presente do pai, quando eram noivos, mentiram conscientemente, porque a criada que o tirou foi apanhada por eles em plena ação de furto. Mas era tão amiga deles! e com tais lágrimas lhes pediu que não dissessem a ninguém, que os gêmeos negaram absolutamente ter visto nada. Contavam sete anos. Aos nove, quando já a moça ia longe, é que descobriram, não sei a que propósito, o caso escondido. A mãe quis saber por que é que eles calaram outrora; não souberam explicar-se, mas é claro que o silêncio de l878 foi obra da afeição e da Piedade, e daí a meia virtude, porque é alguma cousa pagar amor com amor. Quanto à revelação de 1880 só se pode explicar pela distancia do tempo. Já não estava presente a boa Miquelina; talvez já estivesse morta. Demais, veio tão naturalmente a referência...
        —Mas, por que é que vocês até agora não me disseram? teimava a mãe.
Não sabendo mais que razão dessem, um deles, creio que Pedro, resolveu acusar o irmão:
        —Foi ele, mamãe!
 —Eu? redarguiu Paulo. Foi ele, mamãe, ele é que não disse nada.
        —Foi você!
        —Foi você! Não minta!
        —Mentiroso é ele!
Cresceram um para o outro. Natividade acudiu prestemente, não tanto que impedisse a troca dos primeiros murros. Segurou-lhe os braços a tempo de evitar outros, e, em vez de os castigar ou ameaçar, beijou-os com tamanha ternura que eles não acharam melhor ocasião de lhe pedir doce. Tiveram doce; tiveram também um passeio, à tarde, no carrinho do pai.
Na volta estavam amigos ou reconciliados. Contaram à mãe o passeio, a gente da rua, as outras crianças que olhavam para eles com inveja, uma que metia o dedo na boca, outra no nariz, e as moças que estavam às janelas, algumas que os acharam bonitos Neste último ponto divergiam, porque cada um deles tomava para si só as admirações, mas a mãe interveio:
        —Foi para ambos. Vocês são tão parecidos, que não podia senão para ambos. E sabem por que é que as moças elogiaram vocês? Foi por ver que iam amigos, chegadinhos um ao outro. Meninos bonitos não brigam, ainda menos sendo irmãos. Quero vê-los quietos e amigos, brincando juntos sem rusga nem nada. Estão entendendo?
Pedro respondeu que sim; Paulo esperou que a mãe repetisse a pergunta, e deu igual resposta. Enfim, porque esta mandasse, abraçaram-se, mas foi um abraçar sem gosto, sem força, quase sem braços; encostaram-se um ao outro, estenderam as mãos às costas do irmão, e deixaram-nas cair.
De noite, na alcova, cada um deles concluiu para si que devia os obséquios daquela tarde, o doce, os beijos e o carro, à briga que tiveram, e que outra briga podia render tanto ou mais. Sem palavras, como um romance ao piano, resolveram ir à cara um do outro, na primeira ocasião. Isto que devia ser um laço armado à ternura da mãe, trouxe ao coração de ambos uma sensação particular, que não era só consolo e desforra do soco recebido naquele dia. mas também satisfação de um desejo íntimo, profundo, necessário. Sem ódio, disseram ainda algumas palavras de cama a cama, riram de uma ou outra lembrança da rua, até que o sono entrou com os seus pés de lã e bico calado, e tomou conta da alcova inteira.


XIX
Apenas duas – Quarenta anos. Terceira Causa

Um dos meus propósitos neste livro é não lhe pôr lágrimas. Entretanto, não posso calar as duas que rebentaram certa vez dos olhos de Natividade depois de uma rixa dos pequenos. Apenas duas, e foram morrer-lhe aos cantos da boca. Tão depressa as verteu como as engoliu, renovando às avessas e por palavras mudas o fecho daquelas histórias de crianças: "entrou por uma porta, saiu por outra, manda el-rei nosso senhor que nos conte outra". E a segunda criança contava segunda história, a terceira terceira, a quarta quarta, até que vinha o fastio ou o sono. Pessoas que datam do tempo em que se contavam tais histórias afirmam que as crianças não punham naquela fórmula nenhuma fé monárquica, fosse absoluta, fosse constitucional; era um modo de ligar o seu Decameron delas, herdado do velho reino português, quando os reis mandavam o que queriam, e a nação dizia que era muito bem.
Engolidas as duas lágrimas, Natividade riu da própria fraqueza. Não se chamou tola, porque esses desabafos raramente se usam, ainda em particular; mas no secreto do coração, lá muito ao fundo, onde não penetra olho de homem, creio que sentiu alguma cousa parecida com isso. Não tendo prova clara, limito-me a defender a nossa dama.
Em verdade, qualquer outra viveria a tremer pela sorte dos filhos, uma vez que houvera a rixa anterior e interior. Agora as lutas eram mais frequentes, as mãos cada vez mais aptas, e tudo fazia recear que eles acabassem estripando-se um ao outro... Mas aqui surgia a ideia da grandeza e da prosperidade, — cousas futuras! — e esta esperança era como um lenço que enxugasse os olhos da bela senhora. As Sibilas não terão dito só do mal, nem os Profetas, mas ainda do bem, e principalmente dele.
Com esse lenço verde enxugou ela os olhos, e teria outros lenços, se aquele ficasse roto ou enxovalhado; um, por exemplo, não verde como a esperança, mas azul, como a alma dela. Ainda lhes não disse que a alma de Natividade era azul. Aí fica. Um azul celeste, claro e transparente, que alguma vez se embruscava, raro tempestuava, e nunca a noite escurecia.
Não, leitor, não me esqueceu a idade da nossa amiga; lembra-me como se fosse hoje. Chegou assim aos quarenta anos. Não importa; o céu é mais velho e não trocou de cor. Uma vez que lhe não atribuas ao azul da alma nenhuma significação romântica, estás na conta. Quando muito, no dia em que perfez aquela idade, a nossa dona sentiu um calefrio. Que passara? Nada, um dia mais que na véspera, algumas horas apenas. Toda uma questão de número, menos que número, o nome do número, esta palavra quarenta, es o mal único. Daí a melancolia com que ela disse ao marido, agradecendo o mimo do aniversário: "Estou velha, Agostinho!" Santos quis esganá-la brincando.
Pois faria mal se a esganasse. Natividade ainda tinha as formas do tempo anterior à concepção, a mesma flexibilidade, a mesma graça miúda e viva. Conservava o donaire dos trinta. A costureira punha em relevo todos os pensamentos restantes da figura, e ainda lhe emprestava alguns do seu bolsinho. A cintura teimava em não querer engrossar, e os quadris e o colo eram do mesmo estofador antigo.
Há dessas regiões em que o verão se confunde com o outono, como se dá na nossa terra, onde as duas estações só diferem pela temperatura. Nela nem pela temperatura. Maio tinha o calor de janeiro. Ela, aos quarenta anos, era a mesma senhora verde, com a mesmíssima alma azul.
Esta cor vinha-lhe do pai e do avo, mas o pai morreu cedo, antes do avô, que chegara aos oitenta e quatro. Nessa idade cria sincera mente que todas as delícias deste mundo, desde o café de manhã até os sonos sossegados, haviam sido inventados somente para ele O melhor cozinheiro da terra nascera na China para o único fim de deixar família, pátria, língua, religião, tudo, e vir assar-lhe as costeletas e fazer-lhe o chá. As estrelas davam às suas noites um aspecto esplêndido, o luar também, e a chuva, se chovia, era para que ele descansasse do sol. Lá está agora no cemitério de S. Francisco Xavier; se alguém pudesse ouvir a voz dos mortos, dentro das sepulturas, ouviria a ele, bradando que é tempo de fechar a porta ao cemitério, e não deixar entrar ninguém, uma vez que ele já lá descansa para todo sempre. Morreu azul; se chegasse aos cem anos, não teria outra cor.
Ora, se a natureza queria poupar esta senhora, a riqueza dava a mão à natureza, e de uma e de outra saía a mais bela cor que alma de gente pode ter. Tudo concorria assim para lhe secarem os olhos depressa, como vimos atrás. Se ela bebeu aquelas duas lágrimas solitárias, pudera ter bebido outras pela idade adiante, e isto é ainda uma prova daquele matiz espiritual; mostrará assim que as tem poucas, e engole-as para poupá-las.
Mas há ainda uma terceira causa que dava a esta senhora o sentimento da cor azul, causa tão particular que merecia ir em capítulo seu, mas não vai, por economia. Era a isenção, era o ter atravessado a vida intacta e pura. O Cabo das Tormentas converteu-se em Cabo da Boa Esperança, e ela venceu a primeira e a segunda mocidade, sem que os ventos lhe derribassem a nau, nem as ondas a engolissem. Não negaria que alguma lufada mais rija pudera levar-lhe a vela do traquete, como no caso de João de Melo, ou ainda pior, no de Aires, mas foram bocejos de Adamastor. Consertou a vela depressa e o gigante ficou atrás cercado de Tétis, enquanto ela seguiu o caminho da índia. Agora lembrava-se da viagem próspera. Honrava-se dos ventos inúteis e perdidos. A memória trazia-lhe o sabor do perigo passado. Es aqui a terra encoberta, os dous filhos nados, criados e amados da fortuna.

XX
A Joia

Os quarenta e um anos não lhe trouxeram arrepio. Já estava acostumada à casa dos quarenta. Sentiu, sim, um grande espanto; acordou e não viu o presente do costume, a "surpresa" do marido ao pé da cama. Não a achou no toucador, abriu gavetas, espiou, nada Creu que o marido esquecera a data e ficou triste; era a primeira vez! Desceu olhando; nada. No gabinete estava o marido, calado, metido consigo, a ler jornais, mal lhe estendeu a mão. Os rapazes, apesar de ser domingo, estudavam a um canto; vieram dar-lhe o beijo do costume e tornaram aos livros. A mãe ainda relanceou os olhos pelo gabinete, a ver se achava algum mimo, um painel, um vestido, foi tudo vão. Embaixo de uma das folhas do dia que estava na cadeira fronteira à do marido podia ser que... Nada. Então sentou-se, e, abrindo a folha, ia dizendo consigo: "Será possível que não se lembre do dia de hoje? Será possível?" Os olhos entraram a ler à toa, saltando as notícias, tornando atrás...
Defronte o marido espreitava a mulher, sem absolutamente importar-lhe o que parecia ler. Assim se passaram alguns minutos. De repente, Santos viu uma expressão nova no rosto de Natividade; os olhos dela pareciam crescer, a boca entreabriu-se, a cabeça erguesse, a dele também, ambos deixaram a cadeira, deram dous passos e caíram nos braços um do outro, como dous namorados desesperados de amor. Um, dous, três, muitos beijos. Pedro e Paulo, espantados, estavam ao canto, de pé. O pai, quando pôde falar, disse-lhes:
        —Venham beijar a mão da Senhora Baronesa de Santos.
Não entenderam logo. Natividade não sabia que fizesse; dava a mão aos filhos, ao marido, e tornava ao jornal para ler e reler que do despacho imperial da véspera o Sr. Agostinho José dos Santos fora agraciado com o título de Barão de Santos. Compreendeu tudo. O presente do dia era aquele; o ourives desta vez foi o imperador.
        —Vão, vão, agora podem ir brincar, disse o pai aos filhos.
E os rapazes saíram a espalhar a notícia pela casa. Os criados ficaram felizes com a mudança dos amos. Os próprios escravos pareciam receber uma parcela da liberdade e condecoravam-se com ela: "Nhã Baronesa!" exclamavam saltando. E João puxava Maria, batendo castanholas com os dedos: "Gente, quem é esta crioula? Sou escrava de Nhã Baronesa!"
Mas o imperador não foi o único ourives. Santos tirou do bolso uma caixinha, com um broche em que a coroa nova rutilava de brilhantes. Natividade agradeceu-lhe a jóia e consentiu em pô-la, para que o marido a visse. Santos sentia-se autor da jóia, inventor da forma e das pedras; mas deixou logo que ela a tirasse e guardasse, e pegou das gazetas, para lhe mostrar que em todas vinha a notícia, algumas com adjetivo, conceituado aqui, ali distinto, etc.


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