—Sabia, e a prova é que
adivinhou outras cousas, que não posso contar e eram verdadeiras.
Você não imagina como o diacho da cabocla via longe. E tinha uns
olhos de espetar o coração.
—Isso
não disse por mais que Natividade lhe perguntasse; disse só que
seriam grandes e subiriam muito. Talvez venham a ser ministros de
Estado.
Perpétua parecia haver comprado os
olhos à cabocla. Enfiava-os pela amiga abaixo, até o coração, que
aliás não batia com força nem apressado, mas tão regular como de
costume. Entretanto, não sendo impossível que os dous rapazes
chegassem — aos altos deste mundo, Flora deixou de objetar e
aceitou a predição, sem outra palavra mais que um gesto, — sabes,
creio, — um gesto de boca, fazendo descair os cantos dela,
levantando os ombros levemente, e espalmando as mãos, como se
dissesse: Enfim, pode ser.
Perpétua acrescentou que, mudado o
regímen, era natural que Paulo chegasse primeiro à grandeza, — e
aqui espetou bem os olhos. Era um modo de apanhar os sentimentos de
Flora, acenando-lhe com a elevação de Paulo, pois bem podia ser que
viesse a amar antes o destino que a pessoa. Não achou nada. Flora
continuou a não se deixar ler. Não lhe atribuas isto a cálculo,
não era cálculo. Seriamente, não pensava em nada acima de si.
LXXXV
Três Constituições
Três Constituições
—Você
crê deveras que venhamos a ser grandes homens? perguntara Pedro a
Paulo, antes da queda do império.
—Não
sei; você pode vir a ser, quando menos, primeiro-ministro.
Depois de 15 de novembro, Paulo
retorquiu a pergunta, e Pedro respondeu como o irmão, emendando o
resto:
—Não
sei; você pode vir a ser presidente da República.
Já lá iam dous anos. Agora pensavam
mais em Flora que na subida. A boa moral pede que ponhamos a cousa
pública acima das pessoas, mas os moços nisto se parecem com velhos
e varões de outra idade, que muita vez pensam mais em si que em
todos. Há exceções, nobres algumas, outras nobilíssimas. A
história guarda muitas delas, e os poetas, épicos e trágicos,
estão cheios de casos e modelos de abnegação.
Praticamente, seria exigir muito de
Pedro e Paulo que cuidassem mais da Constituição de 24 de fevereiro
que da moça Batista. Pensavam em ambas, é verdade, e a primeira já
dera lugar a alguma troca de palavras acerbas. A Constituição, se
fosse gente viva e estivesse ao pé deles, ouviria os ditos mais
contrários deste mundo, porque Pedro ia ao ponto de a achar um poço
de iniquidades, e Paulo a própria Minerva nascida da cabeça de
Jove. Falo por metáfora para não descair do estilo. Em verdade,
eles empregavam palavras menos nobres e mais enfáticas, e acabavam
trocando as primeiras entre si. Na rua, onde o encontro de
manifestações políticas era comum, e as notícias à porta dos
jornais frequentes, tudo era ocasião de debate.
Quando, porém, a imagem de Flora
aparecia entre eles por imaginação, o debate esmorecia, mas as
injúrias continuavam e até cresciam, sem confissão do novo motivo,
que era ainda maior que o primeiro. Efetivamente, eles iam chegando
ao ponto em que dariam as duas constituições, a republicana e a
imperial, pelo amor exclusivo da moça, se tanto fosse exigido. Cada
um faria com ela a sua Constituição, melhor que outra qualquer
deste mundo.
LXXXVI
Antes que me esqueça
Antes que me esqueça
Uma cousa é preciso dizer antes que
me esqueça. Sabes que os dous gêmeos eram belos e continuavam
parecidos; por esse lado não supunham ter motivo de inveja entre si.
Ao contrário, um e outro achavam em si qualquer cousa que acentuava,
se não melhorava, as graças comuns. Não era verdade, mas não é a
verdade que vence, é a convicção. Convence-te de uma ideia, e
morrerás por ela, escreveu Aires por esse tempo no Memorial, e
acrescentou: "nem é outra a grandeza dos sacrifícios, mas se a
verdade acerta com a convicção, então nasce o sublime, e atrás
dele o útil..." Não acabou ou não explicou esta frase.
LXXXVII
Entre Aires e Flora
Entre Aires e Flora
Aquela citação do velho Aires faz-me
lembrar um ponto em que ele e a moça Flora divergiam ainda mais que
na idade. Já contei que ela, antes da comissão do pai, defendia
Pedro e Paulo, conforme estes diziam mal um do outro. Naturalmente
fazia agora a mesma cousa, mas a mudança do regímen trouxe ocasião
de defender também monarquistas e republicanos, segundo ouvia as
opiniões de Paulo ou de Pedro. Espírito de conciliação ou de
justiça, aplacava a ira ou o desdém do interlocutor: "Não
diga isso... São patriotas também... Convém desculpar algum
excesso..." Eram só frases, sem ímpeto de paixão nem estímulo
de princípios; e o interlocutor concluía sempre:
Ora, o costume de Aires era o oposto
dessa contradição benigna. Hás de lembrar-te que ele usava sempre
concordar com o interlocutor, não por desdém da pessoa, mas para
não dissentir nem brigar. Tinha observado que as convicções,
quando contrariadas, descompõem o rosto à gente, e não queria ver
a cara dos outros assim, nem dar à sua um aspecto abominável. Se
lucrasse alguma cousa, vá; mas, não lucrando nada, preferia ficar
em paz com Deus e os homens. Daí o arranjo de gestos e frases
afirmativas que deixavam os partidos quietos, e mais quieto a si
mesmo.
Um dia como ele estivesse com Flora,
falou daquele costume dela, dizendo-lhe que parecia estudado. Flora
negou que o fosse; era inclinação natural defender os ausentes, que
não podiam responder por nada; demais, aplacava assim um dos gêmeos
com que falasse, e depois o outro.
—Posso
concordar com a senhora, porque é uma delícia ir com as suas
opiniões, e seria mau gosto rebatê-las, mas, em verdade, não há
cálculo. Com os mais, se concordo, é porque eles só dizem o que eu
penso.
—Pode
ser. A vida e o mundo não são outra cousa. A senhora não saberá
isto bem, porque é moça, e ingênua, mas creia que a vantagem é
toda sua. A ingenuidade é o melhor livro e a mocidade a melhor
escola. Vá desculpando esta minha pedanteria; alguma vez é um mal
necessário.
—Não
se acuse, conselheiro. O senhor sabe que eu não creio nada contra a
sua palavra, nem contra a sua pessoa; a própria contradição que
lhe acho é agradável.
—Também
concordo.
—Concorda
com tudo.
—Olha
aqui, Flora; dá licença, conselheiro?
Esqueceu-me dizer que esta conversação
era à porta de uma loja de fazendas e modas, Rua do Ouvidor. Aires
ia na direção do Largo de S. Francisco de Paula e viu a mãe e a
filha dentro, sentadas, a escolher um tecido. Entrou,
cumprimentou-as, e veio à porta com a filha. O chamado de D. Cláudia
interrompeu a conversação por alguns instantes. Aires ficou a olhar
para a rua, onde subiam e desciam mulheres de todas as classes,
homens de todos os ofícios, sem contar as pessoas paradas de ambos
os lados e no centro. Não havia burburinho grande, nem sossego puro,
um meio-termo.
Talvez algumas pessoas fossem
conhecidas de Aires e o cumprimentassem; mas este tinha a alma tão
metida em si mesma que, se falou a uma ou duas, foi o mais. De quando
em quando, voltava a cabeça para dentro, onde Flora e a mãe faziam
a sua consulta. Ouvia as palavras trocadas ainda agora. Sentia-se
curioso de saber se finalmente a moça escolhia a um dos gêmeos, e
qual destes. Vá tudo; tinha já pesar que não fosse algum posto não
lhe importasse saber se Pedro ou Paulo. Quisera vê-la feliz, se a
felicidade era o casamento, e feliz o marido, sem embargo da exclusão
— o excluído seria consolado. Agora, se era por amor deles, se
dela, é o que propriamente se não pode dizer com verdade. Quando
muito, para levantar a ponta do véu, seria preciso entrar na alma
dele, ainda mais fundo que ele mesmo. Lá se descobriria acaso, entre
as ruínas de meio celibato, uma flor descorada e tardia de
paternidade, ou, mais propriamente, de saudade dela...
Flora trouxe novamente a rosa fresca e
rubra da primeira hora. Não falaram mais de contradição, mas da
rua, da gente e do dia. Nenhuma palavra acerca de Pedro ou Paulo.
LXXXVIII
Não, não, não
Não, não, não
Eles, onde quer que estivessem naquele
momento, podiam falar ou não. A verdade é que, se nenhum consentia
em deixar a moça, também nenhum contava obtê-la, por mais que a
achassem inclinada. Tinham já combinado que o rejeitado aceitaria a
sorte, e deixaria o campo ao vencedor. Não chegando a vitória, não
sabiam como resolver a batalha. Esperar, seria o mais fácil, se a
paixão não crescesse, mas a paixão crescia.
Talvez não fosse exatamente paixão,
se dermos a esta palavra o sentido de violência, mas, se Ihe
reconhecermos uma forte inclinação de amor, um amor adolescente ou
pouco mais, era o caso. Pedro e Paulo cederiam a mão da pequena, se
houvessem de consultar só a razão, e mais de uma vez estiveram a
pique de o fazer; raro lampejo, que para logo desaparecia. A ausência
era já insofrível, a presença necessária. Se não fora o que
aconteceu e se contará por essas páginas adiante, haveria matéria
para não acabar mais o livro; era só dizer que sim e que não, e o
que estes pensaram e sentiram, e o que ela sentiu e pensou, até que
o editor dissesse: basta! Seria um livro de moral e de verdade, mas a
história começada ficaria sem fim. Não, não, não... Força é
continuá-la e acabá-la. Comecemos por dizer o que os dous gêmeos
ajustaram entre si, poucos dias depois daquele sonho ou delírio da
moça Flora, à noite, no quarto.
Vejamos o que é que estes ajustaram.
Vinham de estar com Aires no teatro, uma noite, matando o tempo.
Conheceis este dragão; toda a gente lhe tem dado os mais fundos
golpes que pode, ele esperneia, expira e renasce. Assim se fez
naquela noite. Não sei que teatro foi, nem que peça, nem que
gênero; fosse o que fosse, a questão era matar o tempo, e os três
o deixaram estirado no chão.
Foram dali a um restaurante. Aires
disse-lhes que, antigamente, em rapaz, acabava a noite com amigos da
mesma idade. Era o tempo de Offenbach e da opereta. Contou anedotas,
disse as peças, descreveu as damas e os partidos, quase deu por si
repetindo um trecho, música e palavras. Pedro e Paulo ouviam com
atenção, mas não sentiam nada do que espertava os ecos da alma do
diplomata. Ao contrário, tinham vontade de rir. Que Ihes importava a
notícia de um velho café da Rua Uruguaiana, trocado depois em
teatro, agora em nada, uma gente que viveu e brilhou, passou e acabou
antes que eles viessem ao mundo? O mundo começou vinte anos antes
daquela noite, e não acabaria mais, como um viveiro de moços
eternos que era.
Aires sorriu, porquanto ele também
assim cuidou, aos vinte e dous anos de idade, e ainda se lembrava do
sorriso do pai, já velho, quando lhe disse algo parecido com isso.
Mais tarde, tendo adquirido do tempo a noção idealista que ora
possuía, compreendeu que tal dragão era juntamente vivo e defunto,
e tanto Valia matá-lo como nutri-lo. Não obstante, as recordações
eram doces, e muitas delas viviam ainda frescas, como se viessem da
véspera.
A diferença da idade era grande, não
podia entrar em pormenores com eles. Ficou só em lembranças, e
cuidou de outra cousa. Pedro e Paulo, entretanto, receosos de que os
adivinhasse e compreendesse o desprezo que lhes inspiravam as
saudades de tempos remotos e estranhos, pediram-lhe informações, e
ele deu as que podia, sem intimidade.
Ao cabo, a conversação valeu mais
que este resumo, e a separação não custou pouco. Paulo ainda lhe
pediu Offenbach, Pedro uma descrição das paradas de 7 de setembro e
2 de dezembro — mas o diplomata achou meio de saltar ao presente e
particularmente a Plora, que louvou como uma bela criatura. Os olhos
de ambos concordaram que era belíssima. Também louvou as qualidades
morais, a finura do espírito, tais dotes que Pedro e Paulo
reconheceram também, e daí a conversação, e por fim o ajuste a
que me referi no começo deste capítulo e pede outro.
XC
O Ajuste
O Ajuste
—Quanto
a mim, um de vocês gosta dela, senão ambos, disse Aires. Pedro
mordeu os beiços, Paulo consultou o relógio; iam já na rua. Aires
concluiu o que sabia, que sim, que ambos, e não trepidou em dizê-lo,
acrescentando que a moça não era como a República, que um podia
defender o outro atacar; cumpria ganhá-la ou perdê-la de vez. Que
fariam eles, dada a escolha? Ou já estava feita a escolha, e o
preterido teimava em a torcer para si?
Nenhum falou logo, posto que ambos
sentissem necessidade de explicar alguma cousa. Tinham que a escolha
não era clara ou decisiva. Outrossim, que lhes cabia o direito de
esperar a preferência, e fariam o diabo para alcançá-la. Tais e
outras ideias vagavam silenciosamente neles, sem sair cá fora. A
razão percebe-se, e devia ser mais de uma, — primeiro, a matéria
da conversação, — depois, a gravidade do interlocutor. Por mais
que Aires abrisse as portas à franqueza dos rapazes, estes eram
rapazes e ele velho. Mas o assunto em si era tão sedutor, o coração,
apesar de tudo, tão indiscreto, que não houve remédio senão falar
negando.
—Não
me neguem, interrompeu Aires; a gente madura sabe as manhas da gente
nova, e adivinha com facilidade o que ela faz. Nem é preciso
adivinhar; basta ver e ouvir. Vocês gostam dela.
Eles sorriam, mas já agora com tal
amargor e acanhamento que mostravam o desgosto da rivalidade, aliás
sabida deles. Tal rivalidade era também sabida de outros, devia
sê-lo de Flora, e a situação lhes parecia agora mais complicada e
fechada que dantes.
Tinham chegado ao Largo da Carioca,
era uma hora da noite. Um vitória da Santos esperava ali os rapazes,
a conselho e por ordem da mãe, que buscava todas as ocasiões e
meios de os fazer andar juntos e familiares. Teimava em emendar a
natureza. Levavas muita vez a passeio, ao teatro, a visitas. Naquela
noite, como soubesse que iam ao teatro, mandou aprestar a vitória
que os conduziu para a cidade, e ficou à espera deles.
—Bem,
continuou Aires, é certo que vocês gostam dela, e igualmente certo
que ela ainda não escolheu entre os dous. Provavelmente, não sabe
que faça. Um terceiro resolveria a crise, porque vocês se
consolariam depressa; também eu me consolei rapaz. Não havendo
terceiro, e não se podendo prolongar a situação, por que é que
vocês não combinam alguma cousa?
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