A
diferença deu às duas visões de acordada um tal cunho de
fantasmagoria que Flora teve medo e pensou no Diabo.
Anda, Flora, ajuda-me, citando alguma
cousa, verso ou prosa, que exprima a tua situação. Cita Goethe,
amiga minha, cita um verso do Fausto, adequado:
A mãe dos gêmeos, a bela Natividade,
podia havê-lo citado também, antes deles nascerem, quando elas os
sentia lutando dentro em Si mesma:
Ai,
duas almas no meu seio moram!
Nisto
as duas se parecem, — uma os concebeu, outra os recolheu. Agora,
como é que se dá ou se dará a escolha de Flora, nem o próprio
Mefistófeles no-lo explicaria de modo claro e certo. O verso basta:
Ai,
duas almas no meu seio moram!
Talvez
aquele velho Plácido, que lá deixamos nas primeiras páginas,
chegasse a deslindar estas outras. Doutor em matérias escuras e
complicadas, sabia muito bem o valor dos números, a significação
dos gestos não só visíveis como invisíveis, a estatística da
eternidade a divisibilidade do infinito.
Era já morto desde alguns
anos. Hás de lembrar-te que ele, consultado pelo pai de Pedro e
Paulo, acerca da hostilidade original dos gêmeos, explicou-a
prontamente. Morreu no seu ofício; expunha a três discípulos novos
a correspondência das letras vogais com os sentidos do homem. quando
caiu de bruços e expirou.
Já
então os adversários de Plácido, — que os tinha na própria
seita, — afirmavam haver ele aberrado da doutrina, e, por natural
efeito, enlouquecido. Santos nunca se deixou ir com esses divergentes
da casa comum, que acabaram formando outra igrejinha em outro bairro,
onde pregavam que a correspondência exata não era entre as vogais e
os sentidos, mas entre os sentidos e as vogais. Esta outra fórmula,
parecendo mais clara, fez com que muitos discípulos da primeira hora
acompanhassem os da última, e proclamem agora, como conclusão
final, que o homem é um alfabeto de sensações.
Venceram
estes, ficando mui poucos fiéis à doutrina do velho Plácido.
Evocado algum tempo depois de morto, confessou ele ainda uma vez a
sua fórmula, como a única das únicas, e excomungou a quantos
pregassem o contrário. Aliás, os dissidentes já o haviam
excomungado também, declarando abominável a sua memória, com
aquele ódio rijo, que fortalece alguma vez o homem contra a
frouxidão da piedade.
Talvez
o velho Plácido deslindasse o problema em cinco minutos. Mas para
isso era preciso evocá-lo, e o discípulo Santos cuidava agora de
umas liquidações últimas e lucrativas. Não só de fé vive o
homem, mas também de pão e seus compostos e similares.
LXXXII
Em S. Clemente
Em S. Clemente
Ao
caso de poucas semanas, a família Batista saiu da casa Santos, e
tornou à Rua de S. Clemente. A despedida foi terna, as saudades
começaram antes da separação, mas a afeição, o costume, a
estima, — a necessidade, em suma, de se verem a miúdo compensaram
a melancolia, e a gente Batista levou promessa de que a gente Santos
iria vê-la daí a poucos dias.
Os gêmeos cumpriram cedo a promessa.
Um deles, parece que Paulo foi lá nessa mesma noite com recado da
mãe para saber se tinham chegado bem. Disseram-lhe que sim,
acrescentando Batista, para abreviar a visita, que estavam bastante
cansados. Os olhos de Flor a desmentiram esta afirmação; mas dentro
em pouco achavam se não menos tristes que alegres. A alegria vinda
da prontidão de Paulo, a tristeza da ausência de Pedro. Quisera-os
ambos naturalmente; mas, como é que as duas sensações se mostravam
a um tempo. eis o que não entenderás bem nem mal. Certamente, os
olhos iam diversas vezes para a porta, e uma vez pareceu à moça
ouvir rumor na escada; tudo ilusão. Mas estes gestos que Paulo não
viu, tão contente estava de se haver adiantado ao irmão, não eram
tais que a fizessem esquecer o irmão presente.
Paulo saiu tarde, não só para o fim
de aproveitar a ausência de Pedro, mas ainda porque Flora o fazia
demorar, com o intuito de ver se o outro chegava. Assim que, a mesma
dualidade de sensação enchia os olhos da moça, até a hora da
despedida, em que a parte triste foi maior que a alegre, pois que
eram duas ausências, em vez de uma. Conclui o que quiseres, minha
dona; ela recolheu-se para dormir, e reconheceu que, se não dorme
com uma tristeza na alma. muito menos com duas.
Há muito remédio contra a insônia.
O mais vulgar é contar de um até mil, dous mil, três mil ou mais,
se a insônia não ceder logo. É remédio que ainda não fez dormir
ninguém, ao que parece, mas não importa. Até agora, todas as
aplicações eficazes contra a física vão de par com a noção de
que a tísica é incurável. Convém que os homens afirmem o que não
sabem, e, por ofício, o contrário do que sabem; assim se forma esta
outra incurável, a Esperança.
Flora, incurável também, se não
preferes a definição de inexplicável, que lhe deu Aires, a
graciosa Flora teve naquela noite a sua insônia. Mas foi um tanto
culpa sua. Em vez de se deitar quietinha e dormir com os anjos, achou
melhor velar com um dos dous deles, e gastar uma parte da noite, à
janela ou sentada, a recordar e a pensar, a cotejar e a completar,
metida no roupão de linho, com os cabelos atados para dormir.
A princípio pensou no que lá
estivera, e evocou todas as suas graças, realçadas pela virtude
particular de a ter ido ver à noite, sem embargo de se terem visto
de manhã. Sentia-se grata. Toda a conversação foi ali repetida na
solidão da alcova, com as entonações diversas, o vário assunto, e
as interrupções frequentes, ora dos outros, ora dela mesma. Ela, em
verdade, só interrompia, para pensar no ausente, — e portanto não
fazia mais que converter o diálogo em monólogo, o qual por sua vez
acabava em silêncio e contemplação.
Agora, pensando em Paulo, queria saber
por que é que o não escolhia para noivo. Tinha uma qualidade a
mais, a nota aventurosa do caráter, e esta feição não lhe
desprazia. Inexplicável ou não, deixava-se levar pelos ímpetos do
rapaz, que queria trocar o mundo e o tempo por outros mais puros e
felizes. Aquela cabeça, apenas masculina, era destinada a mudar a
marcha do Sol, que andava errado. A Lua também. A Lua pedia um
contacto mais frequente com os homens, menos quartos, não descendo o
minguante de metade. Visível todas as noites, sem que isso
acarretasse a decadência das estrelas, continuaria modestamente o
ofício do Sol, e faria sonhar os olhos insones ou só cansados de
dormir. Tudo isso cumpriria a alma de Paulo, faminta de perfeição.
Era um bom marido, em suma. Flora cerrou as pálpebras, para vê-lo
melhor, e achou-o a seus pés, com as mãos dela entre as suas,
risonho e extático.
—Paulo! meu querido Paulo!
Inclinou-se, para vê-lo de mais
perto, e não perdeu o tempo nem a intenção. Visto assim; era mais
belo que simplesmente conversando das cousas vulgares e passageiras.
Enfiou os olhos nos olhos, e achou-se dentro da alma do rapaz. O que
lá viu não soube dizê-lo bem; foi tudo tão novo e radiante que a
pobre retina da moça não podia fitar nada com segurança nem
continuidade. As ideias faiscavam como saindo de um -fogareiro à
força de abano, as sensações batiam-se em duelo, as reminiscências
subiam frescas, algumas saudades, e ambições principalmente, umas
ambições de asas largas, que faziam vento só com agitá-las. Sobre
toda essa mescla e confusão chovia ternura, muita ternura...
Flora recolheu os olhos, Paulo estava
na mesma postura; mas do lado da porta, metido na penumbra, a figura
de Pedro aparecia, não menos bela, mas um tanto triste. Flora
sentiu-se tocada daquela tristeza. Parece que, se amasse
exclusivamente o primeiro, o segundo podia chorar lágrimas de
sangue, sem lhe merecer a menor simpatia. Que o amor, conforme as
ninfas antigas e modernas, não tem piedade. Quando há piedade para
outro, dizem elas, é que o amor ainda não nasceu de verdade, ou já
morreu de todo, e assim o coração não lhe importa vestir essa
primeira camisa do afeto. Perdoa a figura; não é nobre, nem clara,
mas a situação não me dá tempo de ir à cata de outra.
Pedro aproximou-se, a passo lento,
ajoelhou-se também e tomou-lhe as mãos que Paulo apertava entre as
suas. Paulo ergueu-se e sumiu-se pela outra porta. O quarto tinha
duas. A cama ficava entre elas. Talvez Paulo fosse bramindo de
cólera; ela é que não ouviu nada, tão docemente vivo era o gesto
de Pedro, já agora sem melancolia, e os olhos tão extáticos como
os do irmão. Não eram tais que saíssem, como os deste, às
aventuras. Tinham a quietação de quem não queria mais sol nem lua
que esses que andam aí, que se contenta de ambos, e, se os acha
divinos, não cuida de os trocar por novos. Era a ordem se queres, a
estabilidade, o acordo entre si e as cousas, não menos simpáticos
ao coração da moça, ou por trazerem a ideia de perpétua ventura,
ou por darem a sensação de uma alma capaz de resistir.
Nem por isso os olhos de Flora
deixaram de penetrar os de Pedro, até chegar à alma do rapaz. O
motivo secreto desta outra entrada podia ser o escrúpulo de cotejar
as duas para julgá-las, se não era somente o desejo de não parecer
menos curiosa de uma que de outra. Ambas as razões são boas, mas
talvez nenhuma fosse verdadeira. O gosto de fitar os olhos de Pedro
era tão natural que não exigia intenção particular nenhuma, e
bastava fitá-los para escorregar e cair dentro da alma namorada. Era
gêmea da outra; não lhe viu mais nem menos que nesta.
Unicamente, — e aqui toco o ponto
escabroso do capítulo, — achou cá alguma cousa indefinível que
não sentira lá; em compensação sentiu lá outra que não se lhe
deparou cá. Indefinível, não esqueças. E escabroso porque nada há
pior que falar de sensações sem nome. Crede-me, amigo meu, e tu,
não menos amiga minha, crede-me que eu Preferia contar as rendas do
roupão da moça, os cabelos apanhados atrás, os fios do tapete, as
tábuas do tecto e por fim os estalinhos da lamparina que vai
morrendo... Seria enfadonho, mas entendia-se.
Sim, a lamparina ia morrendo, mas
ainda podia dar luz ao regresso de Paulo. Quando Flora o viu entrar e
ajoelhar-se outra vez, ao pé do irmão, e ambos dividirem entre si
as mãos dela, mansos e cordatos, ficou longamente atônita. Obra de
um credo, como diziam os nossos antigos, quando havia mais religião
que relógios. Voltando a si, puxou as mãos, estendeu-as depois
sobre a cabeça deles, como se lhes apalpasse a diferença, o quid, o
algo, o indefinível. A lamparina ia morrendo... Pedro e Paulo
falavam-lhe por exclamações, por exortações, por súplicas, a que
ela respondia mal e tortamente, não que os não entendesse, mas por
não os agravar, ou acaso por não saber a qual deles diria melhor. A
última hipótese tem ar de ser a mais provável. Em todo caso, é o
prélogo do que sucedeu, quando a lamparina chegou aos últimos
arrancos.
Tudo se mistura à meia claridade; tal
seria a causa da fusão dos vultos, que de dous que eram, ficaram
sendo um só. Flora, não tendo visto sair nenhum dos gêmeos, mal
podia crer que formassem agora uma só pessoa, mas acabou crendo,
mormente depois que esta única pessoa solitária parecia completá-la
interiormente, melhor que nenhuma das outras em separado. Era muito
fazer e desfazer, mudar e transmudar. Pensou enganar-se, mas não;
era uma só pessoa, feita das duas e de si mesma, que sentia bater
nela o coração. Estava tão cansada de emoções que tentou
erguer-se e ir fora, mas não pôde — as pernas pareciam de chumbo
e coladas ao solo. Assim esteve até que a lamparina, ao canto,
morreu de todo. Flora teve um sobressalto na poltrona, e ergueu-se:
—Que é isto?
A lamparina apagou-se. Foi acendê-la.
Viu então que estava sem um nem outro, sem dous nem um só fundido
de ambos. Toda a fantasmagoria se desfizera. A lamparina (agora nova)
alumiava o seu quarto de dormir, e a imaginação criara tudo. Foi o
que ela supôs, e o leitor sabe. Flora compreendeu que era tarde, e
um galo confirmou essa opinião, cantando; outros galos fizeram a
mesma cousa.
—Ora, meu Deus! exclamou a filha de
Batista.
Meteu-se
na cama, e, se não dormiu logo, também não se demorou muito; não
tardou a estar com os anjos. Sonhou com o canto dos galos, uma
carroça, um lago, uma cena de viagem do mar, um discurso e um
artigo. O artigo era de verdade. A mãe veio acordá-la, às dez
horas da manhã, chamando-lhe dorminhoca, e ali mesmo, na cama, lhe
leu uma folha da manhã que recomendava o marido ao governo. Flora
ouviu satisfeita; acabara a grande noite.
LXXXIV
O Velho segredo
O Velho segredo
Natividade
dormiu tranquila, em Botafogo, mas acordou pensando nos filhos e na
moça de S. Clemente. Viera reparando nos três. Parecera-lhe antes
que Flora não aceitava um nem outro, logo depois que os aceitava a
ambos, e mais tarde um e outro alternadamente. Concluiu que ainda não
sentiria nada particular e decisivo; naturalmente iria com os tempos,
a ver qual destes a merecia deveras. Eles é que pareciam sentir
igual inclinação e igual ciúme. Daí alguma possível catástrofe.
A separação não suprimiria tudo — mas além de que, separadas as
famílias, nem tudo seria presente a seus olhos, as visitas podiam
ser menos frequentes e até raras. Tinha assim o que quisera.
Ao
demais, ia chegando o tempo de ir para Petrópolis — propriamente,
chegara. Natividade cuidava de subir com os filhos. Sempre haveria lá
no alto damas elegantes, diversões, alegria. Podia ser até que eles
achassem noivas, e bastava uma para um. O que ficasse sem ela teria a
liberdade de desposar Flora. Cálculos de mãe; vieram outros que os
modificaram, e outros que os restauraram. Quem for mãe que lhe atire
a primeira pedra.
Nenhuma
outra mãe atirou a primeira pedra à nossa amiga. Quero crer que a
razão disto não foi senão a própria discrição de Natividade.
Suspeitas e cálculos iam ficando no coração dela. Calou tudo e
esperou.
Ao cabo, Flora cada vez gostava mais
de Natividade. Queria-lhe como se ela fosse sua mãe duplamente mãe,
uma vez que não escolhera ainda nenhum dos filhos. A causa podia ser
que as duas índoles se ajustassem melhor que entre Flora e D.
Cláudia. A princípio, sentiu não sei que inveja amiga, antes
desejo, quando via que as formas da outra, embora arruinadas pelo
tempo, ainda conservavam alguma linha da escultura antiga. Pouco a
pouco, foi descobrindo em si mesma o introito de uma beleza, que
devia ser longa e fina, e de uma vida que podia ser grande...
Flora conhecia a predição da cabocla
do Castelo, relativamente aos dous gêmeos. A predição não era já
segredo para ninguém. Santos falara dela em tempo, apenas ocultando
a subida de Natividade ao Castelo; emendou a verdade, dizendo que a
cabocla é que viera a Botafogo. O resto foi revelado em confiança,
como ao finado Plácido, e ainda depois de alguma luta. Três ou
quatro vezes investiu e recuou. Um dia. a língua deu sete voltas na
boca, e o segredo saiu medroso e sussurrado, mas perdeu o medo pelo
gosto de mostrar que os rapazes seriam grandes. Enfim, o segredo foi
esquecendo. Mas Perpétua, por isto ou aquilo, contou-o agora à moça
Batista, que a ouviu incrédula. Que podia saber a cabocla do futuro?
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