Total de visualizações de página

sábado, 15 de março de 2014

Esaú e Jacó - Machado de Assis [parte 15]

LIX
Noite de 14

Tudo se explicou à noite, em casa da família Santos. O ex-presidente de província confessou as esperanças de uma investidura nova; a esposa afirmou a eminência do ato. Daí a publicidade da notícia, que pouco antes D. Cláudia só dizia em segredo. Já não havia segredos que calar.
Paulo soube então tudo, e Pedro, que conhecia alguns preliminares, acabou sabendo o resto. Ambos naturalmente sentiram a separação próxima. A dor os fez amigos por instantes; é uma das vantagens dessa grande e nobre sensação. Já me não lembra quem afirmava, ao contrário, que um ódio comum é o que mais liga duas pessoas. Creio que sim, mas não descreio do meu postulado, por esta razão que uma cousa não tolhe a outra, e ambas podem ser verdadeiras.
Demais, a dor não era ainda o desespero. Havia até uma consolação para os dous gêmeos; é que a moça ficaria longe de ambos. Nenhum deles teria o gozo exclusivo ao pé da porta. Não há mal que não traga um pouco de bem, e por isso é que o mal é útil, muita vez indispensável, alguma vez delicioso. Os dous quiseram falar à amiguinha, em particular, para sondá-la acerca daquela separação, já agora certa, mas nenhum conseguiu este desejo. Vigiavam-se, isso sim.
Quando lhe falavam, era sempre juntos, e de cousas familiares e ordinárias. O gesto de Flora não traduzi a o estado da alma; este podia ser lépido, melancólico, ou indiferente, não vinha cá fora. Em verdade, ela falava pouco. Os olhos também não diziam muito. Mais de uma vez, Pedro deu com ela fitando Paulo, e gemeu com a preferência, mas também ele era preferido depois, e achava compensação; Paulo então é que rangia os dentes, figuradamente. Natividade, toda entregue à sua recepção, que era a última do ano, não acompanhou de perto as agitações morais daquele trio. Quando deu por elas, chegou a senti-las também.
Pouco a pouco, a gente se foi dispersando. Não era muita, e dominava a nota íntima. Quando a maioria saiu, ficou só a porção mais íntima, três ou quatro homens a um canto da sala, falando e rindo de ditos e anedotas. Não conversavam de política, e aliás não faltaria matéria. As moças, pela segunda ou terceira vez, trocavam as impressões do grande baile recente. Também falavam de músicas e teatros, das festas próximas de Petrópolis, da gente que ia naquele ano, e da que só iria em janeiro. Natividade dividia-se com todos, até que, podendo ficar alguns instantes com Aires, confiara-lhe o seu receio acerca do amor dos filhos, e ao mesmo tempo o prazer que lhe trazia a esperança de uma longa separação de Flora. O conselheiro não desdizia do receio, nem da esperança.
        —É uma esperança que o Batista seja nomeado e leve a filha daqui, disse ela.
        —Certamente, mas...
        —Mas quê?
        —Certamente a levará, mas a senhora pode não conhecer bem aquela menina.
        —Penso que é boa.
        —Também eu penso assim. A bondade, porém, não tem nada com o resto da pessoa. Flora é, como já lhe disse há tempos, uma inexplicável. Agora é tarde para lhe expor os fundamentos da minha impressão — depois lhe direi. Note que gosto muito dela; acho-lhe um sabor particular naquele contraste de uma pessoa assim, tão humana e tão fora do mundo, tão etérea e tão ambiciosa, ao mesmo tempo, de uma ambição recôndita... Vá perdoando estas palavras mal embrulhadas, e até amanhã, concluiu ele, estendendo-lhe a mão. Amanhã virei explicá-las.
        —Explique-as agora, enquanto os outros parecem rir de algum dito engraçado.
Efetivamente, os homens riam de algum dito ou trocadilho; Aires quis falar, mas reteve a língua, e desculpou-se. A explicação era longa e difícil, e não era urgente, disse ele.
        —Eu mesmo não sei se me entendo, baronesa, nem se penso a verdade; pode ser. Em todo caso, minha boa amiga, até amanhã ou até Petrópolis. Quando espera subir?
        —Lá para o fim do ano.
        —Então ainda nos veremos algumas vezes.
        —Sim, e se me não vir a mim, quero que veja os meus rapazes, que os receba e estime. Eles o tem em grande conta; não lhe fazem senão justiça. Pedro acha que o senhor é o espírito mais fino, e Paulo o mais rijo da nossa terra...
        —Veja como a senhora os educa, ensinando-lhes a pensar errado, disse Aires sorrindo e fazendo um gesto de agradecimento. Eu rijo?
        —O mais rijo e o mais fino.
Os últimos habituados da casa vieram dar boa noite à dona. Dez minutos depois, Aires despedia-se do casal Santos.
A noite era clara e tranquila. Aires recompôs uma parte do serão para escrevê-la no Memorial. Poucas linhas, mas interessantes, nas quais Flora era a principal figura:
Que o Diabo a entenda, se puder, eu, que sou menos que ele, não acerto de a entender nunca. Ontem parecia querer a um, hoje quis ao outro; pouco antes das despedidas, queria a ambos. Encontrei outrora desses sentimentos alternos e simultâneos — eu mesmo fui uma e outra cousa, e sempre me entendi a mim. Mas aquela menina e moça... A condição dos gêmeos explicará esta inclinação dupla; pode ser também que alguma qualidade falte a um que sopre a outro, e vice-versa, e ela, pelo gosto de ambas, não acha de escolher de vez. É fantástico, sei, menos fantástico é se eles, destinados à inimizade, acharem nesta mesma criatura um campo estreito de ódio, mas isto os explicaria a ele, não a ela... seja o que for a nossa organização política é útil; a presidência de província, arredando Flora daqui, por algum tempo, tira esta moça da situação em que se acha como a asna de Buridan. Quando voltar, a água estará bebida e a cevada comida, um decreto ajudará a natureza.
Isto feito, Aires meteu-se na cama, rezou uma ode do seu Horácio e fechou os olhos. Nem por isso dormiu. Tentou então uma página do seu Cervantes, outra do seu Erasmo, fechou novamente os olhos, até que dormiu. Pouco foi; às cinco horas e quarenta minutos estava de pé. Em novembro, sabes que é dia.

LX
Manhã de 15
 
Quando lhe acontecia o que ficou contado, era costume de Aires sair cedo, a espairecer. Nem sempre acertava. Desta vez foi ao Passeio Público. Chegou às sete horas e meia, entrou, subiu ao terraço e olhou para o mar. O mar estava crespo. Aires começou a passear ao longo do terraço, ouvindo as ondas, e chegando-se à borda, de quando em quando, para vê-las bater e recuar. Gostava delas assim; achava-lhes uma espécie de alma forte, que as movia para meter medo à terra. A água, enroscando-se em si mesma, dava-lhe uma sensação, mais que de vida, de pessoa também, a que não faltavam nervos nem músculos, nem a voz que bradava as suas cóleras.
Enfim, cansou e desceu, foi-se ao lago, ao arvoredo, e passeou à toa, revivendo homens e cousas, até que se sentou em um banco. Notou que a pouca gente que havia ali não estava sentada, como de costume, olhando à toa, lendo gazetas ou cochilando a vigília de uma noite sem cama. Estava de pé, falando entre si, e a outra que entrava ia pegando na conversação sem conhecer os interlocutores; assim lhe pareceu, ao menos. Ouviu umas palavras soltas, Deodoro, batalhões, campo, ministério, etc. Algumas, ditas em tom alto, vinham acaso para ele a ver se lhe espertavam a curiosidade, e se obtinham mais uma orelha às notícias. Não juro que assim fosse, porque o dia vai longe, e as pessoas não eram conhecidas. O próprio Aires, se tal cousa suspeitou, não a disse a ninguém; também não afiou o ouvido para alcançar o resto. Ao contrário, lembrando-lhe algo particular, escreveu a lápis uma nota na carteira. Tanto bastou para que os curiosos se dispersassem, não sem algum epíteto de louvor, uns ao governo, outros ao exército: podia ser amigo de um ou de outro.
Quando Aires saiu do Passeio Público, suspeitava alguma cousa,
e seguiu até o Largo da Carioca. Poucas palavras e sumidas, gente parada, caras espantadas, vultos que arrepiavam caminho, mas nenhuma notícia clara nem completa. Na Rua do Ouvidor, soube que os militares tinham feito uma revolução, ouviu descrições da marcha e das pessoas, e notícias desencontradas. Voltou ao largo, onde três tílburis o disputaram; ele entrou no que lhe ficou mais à mão, e mandou tocar para o Catete. Não perguntou nada ao cocheiro; este é que lhe disse tudo e o resto. Falou de uma revolução, de dous ministros mortos, um fugido, os demais presos. O imperador, capturado em Petrópolis, vinha descendo a serra.
Aires olhava para o cocheiro, cuja palavra saía deliciosa de novidade. Não lhe era desconhecida esta criatura. Já a vira, sem o tílburi, na rua ou na sala, à missa ou a bordo, nem sempre homem, alguma vez mulher, vestida de seda ou de chita. Quis saber mais, mostrou-se interessado e curioso, e acabou perguntando se realmente houvera o que dizia. O cocheiro contou que ouvira tudo a um homem que trouxera da Rua dos Inválidos e levara ao Largo da Glória, por sinal que estava assombrado, não podia falar, pedia-lhe que corresse, que lhe pagaria o dobro; e pagou.
        —Talvez fosse algum implicado no barulho, sugeriu Aires.
        —Também pode ser, porque ele levava o chapéu derrubado, e a princípio pensei que tinha sangue nos dedos, mas reparei e vi que era barro; com certeza, vinha de descer algum muro. Mas, pensando bem, creio que era sangue; barro não tem aquela cor. A verdade é que ele pagou o dobro da viagem, e com razão, porque a cidade não está segura, e a gente corre grande risco levando pessoas de um lado para outro...
Chegavam justamente à porta de Aires; este mandou parar o veículo, pagou pela tabela e desceu. Subindo a escada, ia naturalmente pensando nos acontecimentos possíveis. No alto achou o criado que sabia tudo, e lhe perguntou se era certo...
        —O que é que não é certo, José? É mais que certo.
        —Que mataram três ministros?
        —Não; há só um ferido.
        —Eu ouvi que mais gente também, falaram em dez mortos...
        —A morte é um fenômeno igual à vida; talvez os mortos vivam. Em todo caso, não lhes rezes por almas, porque não és bom católico, José.




LXI
Lendo Xenofonte

Como é que, tendo ouvido falar da morte de dous e três ministros, Aires confirmou apenas o ferimento de um, ao retificar a notícia do criado? Só se pode explicar de dous modos, — ou por um nobre sentimento de piedade, ou pela opinião de que toda a notícia pública cresce de dous terços, ao menos. Qualquer que fosse a causa, a versão do ferimento era a única verdadeira. Pouso depois passava pela Rua do Catete a padiola que levava um ministro, ferido. Sabendo que os outros estavam vivos e sãos e o imperador era esperado de Petrópolis, não acreditou na mudança de regímen que ouvira ao cocheiro de tílburi e ao criado José. Reduziu tudo a um momento que ia acabar com a simples mudança de pessoal.
Temos gabinete novo", pensou consigo.
Almoçou tranquilo, lendo Xenofonte: "Considerava eu um dia quantas repúblicas têm sido derribadas por cidadãos que desejam outra espécie de governo, e quantas monarquias e oligarquias são destruídas pela sublevação dos povos; e de quantos sobem ao poder uns são depressa derribados, outros, se duram, são admirados por hábeis e felizes..." Sabes a conclusão do autor, em prol da tese de que o homem é difícil de governar; mas logo depois a pessoa de Ciro destrói aquela conclusão, mostrando um só homem que regeu milhões de outros, os quais não só o temiam, mas ainda lutavam por lhe fazer as vontades. Tudo isto em grego, e com tal pausa que ele chegou ao fim do almoço, sem chegar ao fim do primeiro capítulo.

LXII
"Pare no D."

        —Mas, S. Ex.a está almoçando, dizia o criado no patamar da escada a alguém que pedia para falar ao conselheiro.
Era falso, Aires acabava justamente de almoçar; mas o criado sabia que o amo gostava de saborear o charuto depois do almoço, sem interrupção. Agora estava no canapé e ouviu o diálogo do patamar. A pessoa insistia em dizer uma palavrinha.
        —Não pode ser.
        —Bem, eu espero; logo que S. Ex.a acabe...
        —O melhor é voltar depois; não mora ali defronte? Pois volte daqui a uma hora ou duas...
A pessoa era o Custódio e foi para casa, mas o velho diplomata, sabendo quem era, não esperou que acabasse o charuto; mandou-lhe dizer que viesse. Custódio saiu, correu; subiu e entrou assombrado.
        —Que é isso, Sr. Custódio? disse-lhe Aires. O senhor anda a fazer revoluções?
        —Eu, senhor? Ah! senhor! Se V. Ex.a soubesse...
        —Se soubesse o quê?
Custódio explicou-se. Vá, resumamos a explicação.
Na véspera, tendo de ir abaixo, Custódio foi à Rua da Assembleia, onde se pintava a tabuleta. Era já tarde; o pintor suspendera o trabalho. Só algumas das letras ficaram pintadas, — a palavra Confeitaria e a letra d. A letra o e a palavra Império estavam só debuxadas a giz. Gostou da tinta e da cor, reconciliou-se com a forma, e apenas perdoou a despesa. Recomendou pressa. Queria inaugurar a tabuleta no domingo.
Ao acordar de manhã não soube logo do que houvera na cidade, mas pouco a pouco vieram vindo as notícias, viu passar um batalhão, e creu que lhe diziam a verdade os que afirmavam a revolução e vagamente a república. A princípio, no meio do espanto, esqueceu-lhe a tabuleta. Quando se lembrou dela, viu que era preciso sustar a pintura. Escreveu às pressas um bilhete e mandou um caixeiro ao pintor. O bilhete dizia só isto: "Pare no D." Com efeito, não era preciso pintar o resto, que seria perdido, nem perder ò princípio, que podia sair. Sempre haveria palavra que ocupasse o lugar das letras restantes. "Pade no D". Quando o portador voltou trouxe a notícia de que a tabuleta estava pronta.
        —Você viu-a pronta?
        —Vi, patrão.
        —Tinha escrito o nome antigo?
        —Tinha, sim, senhor: "Confeitaria do Império".
Custódio enfiou um casaco de alpaca e voou à Rua da Assembleia. Lá estava a tabuleta, por sinal que coberta com um pedaço de chita; alguns rapazes que a tinham visto, ao passar na rua, quiseram rasgá-la; o pintor, depois de a defender com boas palavras, achou mais eficaz cobri-la. Levantada a cortina, Custódio leu: "Confeitaria do Império". Era o nome antigo, o próprio, o célebre, mas era a destruição agora; não podia conservar um dia a tabuleta, ainda que fosse em beco escuro, quanto mais na Rua do Catete...
        —O senhor vai despintar tudo isto, disse ele.
        —Não entendo. Quer dizer que o senhor paga primeiro a despesa. Depois, pinto outra cousa.
        —Mas que perde o senhor em substituir a última palavra por outra? A primeira pode ficar, e mesmo o d... Não leu o meu bilhete?
        —Chegou tarde.
        —E por que pintou, depois de tão graves acontecimentos?
        —O senhor tinha pressa, e eu acordei às cinco e meia para servi-lo. Quando me deram as notícias, a tabuleta estava pronta. Não me disse que queria pendurá-la domingo? Tive de pôr muito secante na tinta, e além da tinta, gastei tempo e trabalho.
Custódio quis repudiar a obra, mas o pintor ameaçou de pôr o número da confeitaria e o nome do dono na tabuleta, e expô-la assim, para que os revolucionários lhe fossem quebrar as vidraças do Catete. Não teve remédio senão capitular. Que esperasse: ia pensar na substituição; em todo caso, pedia algum abate no preço. Alcançou a promessa do abate e voltou a casa. Em caminho, pensou no que perdia mudando de título, — uma casa tão conhecida, desde anos e anos! Diabos levassem a revolução! Que nome lhe poria agora? Nisso lembrou-lhe o vizinho Aires e correu a ouvi-lo.


Nenhum comentário: