LIX
Noite de 14
Noite de 14
Tudo se explicou à noite, em casa da
família Santos. O ex-presidente de província confessou as
esperanças de uma investidura nova; a esposa afirmou a eminência do
ato. Daí a publicidade da notícia, que pouco antes D. Cláudia só
dizia em segredo. Já não havia segredos que calar.
Paulo soube então tudo, e Pedro, que
conhecia alguns preliminares, acabou sabendo o resto. Ambos
naturalmente sentiram a separação próxima. A dor os fez amigos por
instantes; é uma das vantagens dessa grande e nobre sensação. Já
me não lembra quem afirmava, ao contrário, que um ódio comum é o
que mais liga duas pessoas. Creio que sim, mas não descreio do meu
postulado, por esta razão que uma cousa não tolhe a outra, e ambas
podem ser verdadeiras.
Demais, a dor não era ainda o
desespero. Havia até uma consolação para os dous gêmeos; é que a
moça ficaria longe de ambos. Nenhum deles teria o gozo exclusivo ao
pé da porta. Não há mal que não traga um pouco de bem, e por isso
é que o mal é útil, muita vez indispensável, alguma vez
delicioso. Os dous quiseram falar à amiguinha, em particular, para
sondá-la acerca daquela separação, já agora certa, mas nenhum
conseguiu este desejo. Vigiavam-se, isso sim.
Quando lhe falavam, era
sempre juntos, e de cousas familiares e ordinárias. O gesto de Flora
não traduzi a o estado da alma; este podia ser lépido, melancólico,
ou indiferente, não vinha cá fora. Em verdade, ela falava pouco. Os
olhos também não diziam muito. Mais de uma vez, Pedro deu com ela
fitando Paulo, e gemeu com a preferência, mas também ele era
preferido depois, e achava compensação; Paulo então é que rangia
os dentes, figuradamente. Natividade, toda entregue à sua recepção,
que era a última do ano, não acompanhou de perto as agitações
morais daquele trio. Quando deu por elas, chegou a senti-las também.
Pouco
a pouco, a gente se foi dispersando. Não era muita, e dominava a
nota íntima. Quando a maioria saiu, ficou só a porção mais
íntima, três ou quatro homens a um canto da sala, falando e rindo
de ditos e anedotas. Não conversavam de política, e aliás não
faltaria matéria. As moças, pela segunda ou terceira vez, trocavam
as impressões do grande baile recente. Também falavam de músicas e
teatros, das festas próximas de Petrópolis, da gente que ia naquele
ano, e da que só iria em janeiro. Natividade dividia-se com todos,
até que, podendo ficar alguns instantes com Aires, confiara-lhe o
seu receio acerca do amor dos filhos, e ao mesmo tempo o prazer que
lhe trazia a esperança de uma longa separação de Flora. O
conselheiro não desdizia do receio, nem da esperança.
—É uma esperança que o Batista
seja nomeado e leve a filha daqui, disse ela.
—Certamente, mas...
—Mas quê?
—Certamente a levará, mas a senhora
pode não conhecer bem aquela menina.
—Penso que é boa.
—Também eu penso assim. A bondade,
porém, não tem nada com o resto da pessoa. Flora é, como já lhe
disse há tempos, uma inexplicável. Agora é tarde para lhe expor os
fundamentos da minha impressão — depois lhe direi. Note que gosto
muito dela; acho-lhe um sabor particular naquele contraste de uma
pessoa assim, tão humana e tão fora do mundo, tão etérea e tão
ambiciosa, ao mesmo tempo, de uma ambição recôndita... Vá
perdoando estas palavras mal embrulhadas, e até amanhã, concluiu
ele, estendendo-lhe a mão. Amanhã virei explicá-las.
—Explique-as agora, enquanto os
outros parecem rir de algum dito engraçado.
Efetivamente,
os homens riam de algum dito ou trocadilho; Aires quis falar, mas
reteve a língua, e desculpou-se. A explicação era longa e difícil,
e não era urgente, disse ele.
—Eu mesmo não sei se me entendo,
baronesa, nem se penso a verdade; pode ser. Em todo caso, minha boa
amiga, até amanhã ou até Petrópolis. Quando espera subir?
—Lá para o fim do ano.
—Então ainda nos veremos algumas
vezes.
—Sim, e se me não vir a mim, quero
que veja os meus rapazes, que os receba e estime. Eles o tem em
grande conta; não lhe fazem senão justiça. Pedro acha que o senhor
é o espírito mais fino, e Paulo o mais rijo da nossa terra...
—Veja como a senhora os educa,
ensinando-lhes a pensar errado, disse Aires sorrindo e fazendo um
gesto de agradecimento. Eu rijo?
—O mais rijo e o mais fino.
Os
últimos habituados da casa vieram dar boa noite à dona. Dez minutos
depois, Aires despedia-se do casal Santos.
A
noite era clara e tranquila. Aires recompôs uma parte do serão para
escrevê-la no Memorial. Poucas linhas, mas interessantes, nas quais
Flora era a principal figura:
Que o Diabo a entenda, se puder, eu,
que sou menos que ele, não acerto de a entender nunca. Ontem parecia
querer a um, hoje quis ao outro; pouco antes das despedidas, queria a
ambos. Encontrei outrora desses sentimentos alternos e simultâneos —
eu mesmo fui uma e outra cousa, e sempre me entendi a mim. Mas aquela
menina e moça... A condição dos gêmeos explicará esta inclinação
dupla; pode ser também que alguma qualidade falte a um que sopre a
outro, e vice-versa, e ela, pelo gosto de ambas, não acha de
escolher de vez. É fantástico, sei, menos fantástico é se eles,
destinados à inimizade, acharem nesta mesma criatura um campo
estreito de ódio, mas isto os explicaria a ele, não a ela... seja o
que for a nossa organização política é útil; a presidência de
província, arredando Flora daqui, por algum tempo, tira esta moça
da situação em que se acha como a asna de Buridan. Quando voltar, a
água estará bebida e a cevada comida, um decreto ajudará a
natureza.
Isto feito, Aires meteu-se na cama,
rezou uma ode do seu Horácio e fechou os olhos. Nem por isso dormiu.
Tentou então uma página do seu Cervantes, outra do seu Erasmo,
fechou novamente os olhos, até que dormiu. Pouco foi; às cinco
horas e quarenta minutos estava de pé. Em novembro, sabes que é
dia.
Quando lhe acontecia o que ficou
contado, era costume de Aires sair cedo, a espairecer. Nem sempre
acertava. Desta vez foi ao Passeio Público. Chegou às sete horas e
meia, entrou, subiu ao terraço e olhou para o mar. O mar estava
crespo. Aires começou a passear ao longo do terraço, ouvindo as
ondas, e chegando-se à borda, de quando em quando, para vê-las
bater e recuar. Gostava delas assim; achava-lhes uma espécie de alma
forte, que as movia para meter medo à terra. A água, enroscando-se
em si mesma, dava-lhe uma sensação, mais que de vida, de pessoa
também, a que não faltavam nervos nem músculos, nem a voz que
bradava as suas cóleras.
Enfim, cansou e desceu, foi-se ao
lago, ao arvoredo, e passeou à toa, revivendo homens e cousas, até
que se sentou em um banco. Notou que a pouca gente que havia ali não
estava sentada, como de costume, olhando à toa, lendo gazetas ou
cochilando a vigília de uma noite sem cama. Estava de pé, falando
entre si, e a outra que entrava ia pegando na conversação sem
conhecer os interlocutores; assim lhe pareceu, ao menos. Ouviu umas
palavras soltas, Deodoro, batalhões, campo, ministério, etc.
Algumas, ditas em tom alto, vinham acaso para ele a ver se lhe
espertavam a curiosidade, e se obtinham mais uma orelha às notícias.
Não juro que assim fosse, porque o dia vai longe, e as pessoas não
eram conhecidas. O próprio Aires, se tal cousa suspeitou, não a
disse a ninguém; também não afiou o ouvido para alcançar o resto.
Ao contrário, lembrando-lhe algo particular, escreveu a lápis uma
nota na carteira. Tanto bastou para que os curiosos se dispersassem,
não sem algum epíteto de louvor, uns ao governo, outros ao
exército: podia ser amigo de um ou de outro.
Quando
Aires saiu do Passeio Público, suspeitava alguma cousa,
e
seguiu até o Largo da Carioca. Poucas palavras e sumidas, gente
parada, caras espantadas, vultos que arrepiavam caminho, mas nenhuma
notícia clara nem completa. Na Rua do Ouvidor, soube que os
militares tinham feito uma revolução, ouviu descrições da marcha
e das pessoas, e notícias desencontradas. Voltou ao largo, onde três
tílburis o disputaram; ele entrou no que lhe ficou mais à mão, e
mandou tocar para o Catete. Não perguntou nada ao cocheiro; este é
que lhe disse tudo e o resto. Falou de uma revolução, de dous
ministros mortos, um fugido, os demais presos. O imperador, capturado
em Petrópolis, vinha descendo a serra.
Aires
olhava para o cocheiro, cuja palavra saía deliciosa de novidade. Não
lhe era desconhecida esta criatura. Já a vira, sem o tílburi, na
rua ou na sala, à missa ou a bordo, nem sempre homem, alguma vez
mulher, vestida de seda ou de chita. Quis saber mais, mostrou-se
interessado e curioso, e acabou perguntando se realmente houvera o
que dizia. O cocheiro contou que ouvira tudo a um homem que trouxera
da Rua dos Inválidos e levara ao Largo da Glória, por sinal que
estava assombrado, não podia falar, pedia-lhe que corresse, que lhe
pagaria o dobro; e pagou.
—Talvez fosse algum implicado no
barulho, sugeriu Aires.
—Também pode ser, porque ele levava
o chapéu derrubado, e a princípio pensei que tinha sangue nos
dedos, mas reparei e vi que era barro; com certeza, vinha de descer
algum muro. Mas, pensando bem, creio que era sangue; barro não tem
aquela cor. A verdade é que ele pagou o dobro da viagem, e com
razão, porque a cidade não está segura, e a gente corre grande
risco levando pessoas de um lado para outro...
Chegavam
justamente à porta de Aires; este mandou parar o veículo, pagou
pela tabela e desceu. Subindo a escada, ia naturalmente pensando nos
acontecimentos possíveis. No alto achou o criado que sabia tudo, e
lhe perguntou se era certo...
—O que é que não é certo, José?
É mais que certo.
—Que mataram três ministros?
—Não; há só um ferido.
—Eu ouvi que mais gente também,
falaram em dez mortos...
—A morte é um fenômeno igual à
vida; talvez os mortos vivam. Em todo caso, não lhes rezes por
almas, porque não és bom católico, José.
LXI
Lendo Xenofonte
Lendo Xenofonte
Como é que, tendo ouvido falar da
morte de dous e três ministros, Aires confirmou apenas o ferimento
de um, ao retificar a notícia do criado? Só se pode explicar de
dous modos, — ou por um nobre sentimento de piedade, ou pela
opinião de que toda a notícia pública cresce de dous terços, ao
menos. Qualquer que fosse a causa, a versão do ferimento era a única
verdadeira. Pouso depois passava pela Rua do Catete a padiola que
levava um ministro, ferido. Sabendo que os outros estavam vivos e
sãos e o imperador era esperado de Petrópolis, não acreditou na
mudança de regímen que ouvira ao cocheiro de tílburi e ao criado
José. Reduziu tudo a um momento que ia acabar com a simples mudança
de pessoal.
Almoçou tranquilo, lendo Xenofonte:
"Considerava eu um dia quantas repúblicas têm sido derribadas
por cidadãos que desejam outra espécie de governo, e quantas
monarquias e oligarquias são destruídas pela sublevação dos
povos; e de quantos sobem ao poder uns são depressa derribados,
outros, se duram, são admirados por hábeis e felizes..." Sabes
a conclusão do autor, em prol da tese de que o homem é difícil de
governar; mas logo depois a pessoa de Ciro destrói aquela conclusão,
mostrando um só homem que regeu milhões de outros, os quais não só
o temiam, mas ainda lutavam por lhe fazer as vontades. Tudo isto em
grego, e com tal pausa que ele chegou ao fim do almoço, sem chegar
ao fim do primeiro capítulo.
—Mas, S. Ex.a está almoçando,
dizia o criado no patamar da escada a alguém que pedia para falar ao
conselheiro.
Era
falso, Aires acabava justamente de almoçar; mas o criado sabia que o
amo gostava de saborear o charuto depois do almoço, sem interrupção.
Agora estava no canapé e ouviu o diálogo do patamar. A pessoa
insistia em dizer uma palavrinha.
—Não pode ser.
—Bem, eu espero; logo que S. Ex.a
acabe...
—O melhor é voltar depois; não
mora ali defronte? Pois volte daqui a uma hora ou duas...
A
pessoa era o Custódio e foi para casa, mas o velho diplomata,
sabendo quem era, não esperou que acabasse o charuto; mandou-lhe
dizer que viesse. Custódio saiu, correu; subiu e entrou assombrado.
—Que é isso, Sr. Custódio?
disse-lhe Aires. O senhor anda a fazer revoluções?
—Eu, senhor? Ah! senhor! Se V. Ex.a
soubesse...
—Se soubesse o quê?
Custódio
explicou-se. Vá, resumamos a explicação.
Na
véspera, tendo de ir abaixo, Custódio foi à Rua da Assembleia,
onde se pintava a tabuleta. Era já tarde; o pintor suspendera o
trabalho. Só algumas das letras ficaram pintadas, — a palavra
Confeitaria e a letra d. A letra o e a palavra Império estavam só
debuxadas a giz. Gostou da tinta e da cor, reconciliou-se com a
forma, e apenas perdoou a despesa. Recomendou pressa. Queria
inaugurar a tabuleta no domingo.
Ao
acordar de manhã não soube logo do que houvera na cidade, mas pouco
a pouco vieram vindo as notícias, viu passar um batalhão, e creu
que lhe diziam a verdade os que afirmavam a revolução e vagamente a
república. A princípio, no meio do espanto, esqueceu-lhe a
tabuleta. Quando se lembrou dela, viu que era preciso sustar a
pintura. Escreveu às pressas um bilhete e mandou um caixeiro ao
pintor. O bilhete dizia só isto: "Pare no D." Com efeito,
não era preciso pintar o resto, que seria perdido, nem perder ò
princípio, que podia sair. Sempre haveria palavra que ocupasse o
lugar das letras restantes. "Pade no D". Quando o portador
voltou trouxe a notícia de que a tabuleta estava pronta.
—Você viu-a pronta?
—Vi, patrão.
—Tinha escrito o nome antigo?
—Tinha, sim, senhor: "Confeitaria
do Império".
Custódio
enfiou um casaco de alpaca e voou à Rua da Assembleia. Lá estava a
tabuleta, por sinal que coberta com um pedaço de chita; alguns
rapazes que a tinham visto, ao passar na rua, quiseram rasgá-la; o
pintor, depois de a defender com boas palavras, achou mais eficaz
cobri-la. Levantada a cortina, Custódio leu: "Confeitaria do
Império". Era o nome antigo, o próprio, o célebre, mas era a
destruição agora; não podia conservar um dia a tabuleta, ainda que
fosse em beco escuro, quanto mais na Rua do Catete...
—O senhor vai despintar tudo isto,
disse ele.
—Não entendo. Quer dizer que o
senhor paga primeiro a despesa. Depois, pinto outra cousa.
—Mas que perde o senhor em
substituir a última palavra por outra? A primeira pode ficar, e
mesmo o d... Não leu o meu bilhete?
—Chegou tarde.
—E por que pintou, depois de tão
graves acontecimentos?
—O senhor tinha pressa, e eu acordei
às cinco e meia para servi-lo. Quando me deram as notícias, a
tabuleta estava pronta. Não me disse que queria pendurá-la domingo?
Tive de pôr muito secante na tinta, e além da tinta, gastei tempo e
trabalho.
Custódio quis repudiar a obra, mas o
pintor ameaçou de pôr o número da confeitaria e o nome do dono na
tabuleta, e expô-la assim, para que os revolucionários lhe fossem
quebrar as vidraças do Catete. Não teve remédio senão capitular.
Que esperasse: ia pensar na substituição; em todo caso, pedia algum
abate no preço. Alcançou a promessa do abate e voltou a casa. Em
caminho, pensou no que perdia mudando de título, — uma casa tão
conhecida, desde anos e anos! Diabos levassem a revolução! Que nome
lhe poria agora? Nisso lembrou-lhe o vizinho Aires e correu a
ouvi-lo.
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